quarta-feira, 22 de outubro de 2025


 22 de Outubro de 2025
CARPINEJAR

Fogão a lenha

Na residência dos avós, em Guaporé, o fogão a lenha ficava na sala. Ele se destacava mais do que a televisão. O sofá era virado para o seu altar sempre aceso. Iluminava a nossa roda de chimarrão no amanhecer e de chá de camomila no entardecer.

Servia para aquecer. E também para os belisquetes, com a chapa derretendo queijo ou sapecando polentas. No inverno rigoroso e úmido, apressava a secagem das roupas, com o varal dentro de casa, complementado pelas costas da geladeira.

Vivíamos para a reposição da lenha. Um trabalho interminável, de duas em duas horas. Os netos se revezavam na missão de recolher achas e gravetos da provisão empilhada no fundo do pátio.

Lembro-me perfeitamente do som de rangido da portinhola quando alimentávamos o fogo. Era tão nítido quanto o das goteiras depois das chuvas pesadas que tiravam as telhas do lugar - meu avô me dava importância dizendo que eu acertava ao colocar os baldes exatamente nos pontos das infiltrações, que exibia um talento raro para detectar vazamentos.

Permanecíamos todos próximos, conversando à toa, falando da vizinhança, enredados pelo aroma da madeira queimada. Uma leve neblina terrosa, com o cheiro silvestre da roça, dominava o nosso olfato, despertava-nos para a dimensão onírica da convivência.

Produzíamos o nosso próprio calor. Assim como a vó fazia o pão em casa, no formato de tijolo; assim como buscávamos os ovos no galinheiro; assim como preparávamos a salada com os produtos da horta; assim como as vestes partiam da máquina de costura Singer preta da área de serviço. A despensa e os armários não dependiam da rua.

Ter os avós por perto, ajudando na criação, permitia-nos outra noção de tempo, com mais respeito e paciência para as palavras. Estávamos envolvidos diretamente na dinâmica do lar. Não levantávamos o tom, não brigávamos por espaço, não abríamos o berreiro. O incentivo à autonomia ampliava a nossa infância. Podíamos ser quem quiséssemos, inclusive nós mesmos. Estranhamente, nessa época, eu me sentia livre e responsável.

No fim, deitávamos no pelego avermelhado no chão, acompanhando o crepitar das chamas.

Eu descalçava o Kichute. Recordo que nunca usei, quando menino, um tênis do meu número: comprava-se de dois acima, para durar mais, para economizar alguns anos de crescimento.

Acordava na cama sem saber como havia parado ali, ou quem me havia levado no colo, ou como já estava de pijama. Orbitava num terreno de segurança.

Desfrutava da magia do deslocamento, uma abdução do afeto.

Dormia profundamente pelas histórias contadas ao redor da fogueira, pelas canções de ninar dos causos do interior, que dissolviam as fronteiras entre adultos e crianças. Não existia idade para se assustar ou se encantar.

Adormecer significava confiar plenamente nas vozes dos meus nonos. Eu me entregava, despojado de qualquer resistência, ao silêncio da noite. 

CARPINEJAR

Nenhum comentário: