sexta-feira, 31 de março de 2017


Jaime Cimenti


Se 

você consegue acordar cedo com as palavras e notícias catastróficas metralhadas pelos radiojornais e telejornais e levantar da cama; Se você mais uma vez desistiu de fugir dos bandidos e se mandar de mala e cuia para o Uruguai (muito frio), Miami (muito caro), Rio de Janeiro (muita violência), Portugal, Austrália, Nova Zelândia (muito longe), Canadá, Suécia, Dinamarca ou Noruega (caríssimo); Se você tem esperança profissional brasileira de que a Lava Jato é eficiente e duradoura como um eletrodoméstico nórdico e que não vai ser lavada e tornada obsoleta por alguma anistia tipo aquelas de parlamento italiano, que sujaram as mãos limpas;

Se você acha que ainda existe alguma verdade, alguma ética e que é possível revogar a Lei de Gerson e dar uma limpada geral na política, na economia e nos poderes públicos; Se você acha que dá para controlar muuuuuuitooo a corrupção, o propinoduto e as demais tretas e aplicar o dinheiro em saúde, educação e segurança;

Se você acha que a gente vai conseguir pensar mais no coletivo e não só nos interesses individuais, pensar um pouco mais no que pode fazer pelo País e não só no que o País pode fazer por nós, pensar que estamos no mesmo barco, no meio da tempestade; 

Se você acha que podemos aproveitar melhor nosso potencial turístico, nossas riquezas naturais, nossas qualidades pessoais e nossa rica e diversificada cultura; Se você acha que surgirão novos e bons líderes e partidos políticos, com propostas de união nacional em torno de interesses públicos verdadeiros; Se você acha que os administradores públicos conseguirão gastar bem o que tem e não gastarão o que não têm;

Se você acha que as pessoas obterão empregos, conseguirão poupar, não gastar o que não têm e observar o que fazem cidadãos de outros países, em termos de vida, consumo, hábitos e ideias; Se você ainda tem capacidade de sonhar e achar que sonhos se tornam realidade, ouvindo Pixinguinha, Villa Lobos, Tom Jobim, Ary Barroso, Chico, Gil, Caetano e tantos outros; 

Se você acha que é possível desarmar os bandidos, para não precisar armar os cidadãos e que é possível dar um jeito na criminalidade e deixar de viver com medo de sair para a rua e enfrentar a roleta-russa cotidiana das calçadas; Se você acha que é possível melhor entendimento entre as forças do capital e do trabalho e debate sereno, transparente e real sobre as questões da previdência social;

Se você acha que é possível, seguindo o modelo sueco, um País com menos ou sem excelências, privilégios, gastos públicos controlados, pompas e circunstâncias reduzidas, término de almoços e jantares PJ (pessoa jurídica) e PP (poder público), auxílios esquisitos, cartões de crédito corporativos e outros penduricalhos; Se você acha que é possível um teto para remunerações públicas; Se você acha que é possível conversarmos, respeitadas as diferenças e juntarmos, todos, os cacos desse Brasil fraturado, para bem de todos e para bens dos que ainda vão nascer;

Bom, aí então és um brasileiro consciente, esperançoso, realista e que, junto com os demais, pode tentar dar um jeito no que está aí. a propósito... Vêm aí as eleições. Tomara que na reforma política - aquela que não sai nunca - os parlamentares ouçam e respeitem os eleitores. Respeito, liberdade e democracia são ótimos e os cidadãos agradecem.

Há quem não queira votar em quem já está no poder. Há quem queira - parece que são milhões - renovar para valer e dar um solene cartão vermelho para os representantes que não os representam. Há cidadãos que já estão saindo no braço para cima de parlamentares em aeroportos. Violência não é bom para ninguém. Os políticos devem se dar conta que a cordialidade, o caráter lúdico, a ginga e a paciência dos brasileiros acabaram. 

Todos esperam que eles se toquem. Ou então serão tocados para fora. Ainda é tempo de eles ouvirem a gritaria das ruas.   

- Jornal do Comércio - (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/03/colunas/livros/554490-estranhas-memorias-de-porto-alegre.html)

Jaime Cimenti

Estranhas memórias de Porto Alegre 

Há quem diga que Porto Alegre ainda é uma província, uma açoriana tímida. Os mais críticos falam que é uma carroça. Porto Alegre sempre cultivou lendas e histórias, inventadas ou não, e sempre gostou de apelidos e nomes pitorescos para ruas e becos. 

Quem não lembra das histórias da noiva abandonada no altar da Igreja Santa Terezinha depois da delação de alguém ou da casa de gays masculinos na zona Sul? O livro 20 Relatos Insólitos de Porto Alegre (Libretos, 216 páginas, R$ 34,00), do consagrado e premiadíssimo jornalista e escritor Rafael Guimaraens, autor de Tragédia da Rua da Praia e A Dama da Lagoa, entre outros 15 livros publicados, justamente trata da alma de Porto Alegre, de suas estranhas histórias. 

Os 20 relatos misturam drama, romance, tragédia, memória, jornalismo e teatro, envolvendo personagens reais e cenários, incluindo locais que não existem mais. O trabalho é resultado de mais de uma década de pesquisas históricas e o autor, que já tem uma extensa obra dedicada à memória da cidade, utilizou toda sua vasta experiência e ótimo faro jornalístico para a seleção destas histórias. 

Segundo Guimaraens, as histórias são diferentes, mas guardam a estranheza que provocam nos leitores como fator comum. Narrando o suicídio de Honorina, viúva de Júlio de Castilhos que não suportou a dor causada pela morte do marido depois de 20 anos de vida em comum, o autor envolve o leitor, torna-o cúmplice. Ela se suicidou com um fogareiro, na antiga residência da família, onde hoje funciona o Museu Júlio de Castilhos. 

O dramático caso de amor entre o compositor erudito José de Araújo Vianna e a cantora e pianista Olinta Braga; o surgimento da mística em torno da moça assassinada que virou Maria Degolada, santa popular; e a maldição da Negra Inácia, que foi acusada de feitiçaria e assassinada pelos patrões, estão entre as narrativas do volume. Guimaraens utiliza formas narrativas e estilos diferentes para mostrar aspectos da memória de Porto Alegre, sem preocupar-se com juízos de valor ou avaliações morais. 

Os episódios marcantes e trágicos da encenação da peça Roda Viva em nossa cidade, em pleno período de anos de chumbo, de censura e violência, e a espetacular fuga da Ilha do Presídio a bordo de duas panelas, igualmente revelam facetas esquisitas de nossa Porto Alegre. Streep-tease no Bar Novidades; e O incrível sumiço do chefe de polícia estão também no livro, contados com inventividade e criatividade, mas com respeito à verossimilhança e à honestidade, próprios da boa literatura e do jornalismo de qualidade. 

Com mais esta ótima contribuição, Rafael Guimaraens com suas narrativas saborosas, mostra nossas memórias estranhas e nos faz compreender melhor esta cidade e seus habitantes. 

lançamentos 

A última camélia (Novo Conceito, 304 páginas), de Sarah Jio, autora de Neve na primavera e As violetas de março, best-sellers do N.Y. Times, narra sobre a última espécie de uma camélia rara e Flora, jovem americana que vai tentar obter a flor, numa mansão inglesa. 

Um amor e crimes estão se juntam na busca. Anotações de meu diário: um lema - hei de vencer (Viapampa, 248 páginas), de Vilson Ferretto, advogado consagrado, escritor e ex-vereador de Uruguaiana, revela décadas de uma vida intensa e produtiva, em páginas de um diário iniciado na juventude, em 1953. 

De menino nascido na roça, de família modesta, Vilson vive trajetória exemplar e inspiradora. Histórias de Taiwan, de Cláudia Presser Sepé, esposa de Yen Ko Chegn, taiwanês, traz nove contos folclóricos do país, que marcaram a infância e juventude de Yen. A obra conta com fotos feitas pelo casal e ilustrações de Cremilda Lenz Pereira. Lançamento nesta sexta-feira, na Fnac. - Jornal do Comércio 

(http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/03/colunas/livros/554490-estranhas-memorias-de-porto-alegre.html)


31 de março de 2017 | N° 18807 
DAVID COIMBRA

O filme do Presídio Central

Central talvez seja o mais importante filme já feito no Rio Grande do Sul em todos os tempos.

Todo brasileiro que se importa minimamente com o que ocorre a sua volta tem meio que obrigação de assistir ao filme. Não para conhecer as condições precárias em que vivem os detentos do Presídio Central de Porto Alegre. Isso não é novo. Histórias de cadeias desumanas já foram contadas e recontadas às dezenas, de todas as formas.

Eu mesmo conheço essa fórmula desde guri, quando me encantei com a leitura de Papillon, de Henri Charrière, e de O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. No cinema, assisti a O Expresso da Meia-Noite, Alcatraz, Um Sonho de Liberdade e ao brasileiro Carandiru, entre outros.

Logo, não haverá de ser qualquer filme de cadeia que irá me impressionar. Mas o grande mérito de Central não é contar uma “história de presídio”. É explicar o que está acontecendo na sociedade gaúcha, como está acontecendo e, sobretudo, por que está acontecendo.

Por que um jovem, tendo sido preso uma vez, se transforma em escravo das facções do crime e nunca mais consegue se libertar?

Por que o regime semiaberto pode ser mais perigoso para o detento do que o fechado?

Por que os chefes das facções lucram com a superlotação das cadeias?

Por que as drogas são importantes para a manutenção da paz no presídio?

E muito mais.

Não vou responder às perguntas, vou esperar que você assista ao filme e tire suas conclusões.

Sem viés ideológico à esquerda ou à direita, sem demonstrar pena ou raiva dos presos, o filme alcança um resultado substantivo e sólido muito provavelmente por ter sido obra de dois jornalistas de raiz. O roteirista, Renato Dornelles, é um experiente repórter de polícia, e a diretora, Tatiana Sager, já rodou por várias redações do Estado. Ambos, para gáudio meu, posso chamar de amigos.

Acompanhei o processo de gestação do filme e, de alguma maneira, tive pequena participação como auxiliar de parteiro. Em 2007, o Renatinho veio falar comigo, na Redação de Zero Hora, e disse que tinha escrito um alentado texto sobre uma facção do crime no Estado, a Falange Gaúcha, mas que ninguém havia se interessado pela história. 

Li o material e achei ótimo. Sugeri ao Renatinho que tentasse publicar no Diário Gaúcho, como uma série de reportagens. Ele gostou da sugestão, mas, como eu estava empolgado, me antecipei: procurei o então diretor de redação do Diário, o Alexandre Bach, e fiz propaganda da matéria. Quando o Renatinho foi falar com ele, a ideia já estava comprada.

Foi a partir daí que o Renatinho lançou o livro que deu origem ao roteiro.

Na confecção do filme, lançado 10 anos depois, Tatiana e Renatinho incrustaram um detalhe entre poderoso e dramático: colocaram a câmera na mão dos presos. Assim, são os próprios presidiários que filmam o interior do presídio e narram o que está se passando. Os presos são o poeta Virgílio que guia Dante pelos corredores do inferno.

Vá ver Central neste fim de semana. Você sairá diferente do cinema.



31 de março de 2017 | N° 18807 
CLÁUDIA LAITANO

Só para eles

Acho que, em muitos sentidos, sou uma mulher de sorte. Cresci com dois irmãos mais velhos e nunca senti nenhuma diferença significativa em relação à educação ou à liberdade que desfrutávamos em casa. No trabalho, vi muitas colegas mulheres alcançarem posições de destaque em todas as áreas ao longo dos anos e raramente percebi que estava sendo tratada de forma desrespeitosa ou condescendente – e ainda bem que foram poucas, porque lembro bem de cada uma delas.

Como dona de casa part-time e mãe em tempo integral, admito que nunca vi as tarefas domésticas serem divididas em partes exatamente iguais entre homens e mulheres, na minha casa ou na dos outros, mas, por sorte, fui abençoada por uma certa tranquilidade com relação a louças não lavadas, roupas não passadas e festinhas infantis terceirizadas. Ou seja, nunca perdi o sono (ou o tempo) para dar conta de tarefas que me pareciam secundárias em relação a outros interesses ou compromissos. 

Quando minha filha pedia mais atenção ou reclamava porque eu era a única mãe que nunca buscava os filhos na escola, respondia que um dia ela iria ter um trabalho bacana e que talvez também fosse obrigada a fazer escolhas difíceis. Acho que ela entendeu o recado, mesmo não gostando muito do argumento na hora, e hoje vejo com orgulho que, aos 18 anos, ela faz parte da geração de jovens feministas que está apertando alguns parafusos que a minha geração tinha deixado frouxos, exigindo oportunidades e fazendo perguntas que, muitas vezes, nem sequer nos ocorriam há 15 ou 20 anos.

Exemplo de um “parafuso frouxo” que sempre me incomodou? A velada misoginia daqueles almoços semanais de amigos e conhecidos em que até os chatos são bem recebidos – desde que tenham nascido homens. A mensagem subliminar do encontro exclusivo para homens é a de que eles não se sentem à vontade para serem eles mesmos na nossa companhia, seja porque não estamos à altura do seu intelecto e bom humor (risos), seja porque somos todas tão maravilhosas que eles não conseguiriam passar uma hora em nossa companhia sem serem afetados pelo impulso incontrolável de se exibir (mais risos).

Meu modesto sonho de igualdade cotidiana é banal e amplamente factível: que em todas as mesas de almoço, o gênero dominante seja o da camaradagem e do afeto, e não o da convenção e o da preguiça de mudar.


31 de março de 2017 | N° 18807 
NÍLSON SOUZA

O PARADOXO DE PINÓQUIO

Amanhã é 1º de abril, dia dos bobos para alguns, dia da mentira para todos. Deveria ser uma data em extinção. Não há mais um só dia para a mentira. Talvez nunca tenha havido. A internet e as redes sociais apenas tornaram mais visível e compartilhável essa tendência que todos temos de aumentar um ponto nos nossos contos.

A psicologia é implacável no seu diagnóstico: todos mentimos, ainda que tenhamos dificuldade em admitir isso. Mentiras sociais, na maior parte dos casos. Você está cheio de problemas, mas não hesita em responder ao vizinho que o cumprimenta:

– Tudo bem! Pronto, mentiu.

Você leva o filho para vacinar e garante, com o coração apertado:

– Não dói! Depois, quase chora junto com a criança.

São inúmeras as situações em que dizemos aquilo que não pensamos para garantir as boas relações sociais. Normalmente são afirmações que não fazem mal a ninguém, não causam prejuízos a outras pessoas, mas que, a rigor, não são verdadeiras. Mentirinhas, portanto, nada que se possa comparar com as mentiras maldosas que ferem, causam danos e ocultam crimes.

Mente-se, também, por ingenuidade. Pessoas que acreditam em tudo o que ouvem ou leem muitas vezes repassam inverdades sem perceber que estão contribuindo para a disseminação de boatos. Há, evidentemente, os que adoram uma teoria da conspiração. Esses até têm consciência de que determinada notícia pode não ser verdadeira, mas, quando serve a seus propósitos e a suas ideias, preferem legitimá-la a questioná-la. Fica a impressão de que a socialização da mentira dilui a culpa de quem a propaga.

Mente-se, ainda, por brincadeira, mentirinha de amizade, tolerável e perdoável, até mesmo porque costuma ser seguida da verdade reveladora.

Por fim, mente-se para enganar, destruir, ferir, ludibriar, roubar – e essa mentira criminosa, infelizmente, é tão frequente, que não cabe num único dia.

Mas o assunto não se esgota aí. Como ensina a Legião Urbana numa de suas canções, mentir para si mesmo é sempre a pior mentira.

E aí caímos no célebre Paradoxo de Pinóquio. Se admitirmos que todos mentimos, estaremos falando a verdade ou mentindo?

Parabéns para nós neste 1º de abril!

quinta-feira, 30 de março de 2017



30 de março de 2017 | N° 18806
LITERATURA

Antígona para o nosso tempo

KATHRIN ROSENFIELD defende que é hora de reler Sófocles para entender o presente
Desde que se radicou no Brasil, em 1984, a professora de literatura e filosofia da UFRGS Kathrin Rosenfield, de origem austríaca, surpreendeu-se com a permanência do mito de Antígona no imaginário latino-americano, do movimento das Mães da Praça de Maio, na Argentina, ao pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, no Brasil. 

Chamou sua atenção certa apropriação ideológica da personagem como símbolo da luta dos oprimidos contra os opressores na tragédia de Sófocles, Antígona defende o direito de enterrar o irmão Polinice, contra a vontade do rei Creonte.

– Antígona se tornou uma heroína, mas a história é mais sutil e provavelmente mais próxima dos problemas que enfrentamos no Brasil hoje. Como recomeçamos quando não temos mais bonzinhos de um lado e mauzinhos de outro, mas um caos a tal ponto que todo mundo está desautorizado? – questiona a professora.

Lendo a peça de Sófocles por meio da tradução realizada pelo poeta alemão Friedrich Hölderlin (1770 – 1843), Kathrin entende a história não como um embate entre uma santa e um poderoso, mas entre duas linhagens de nobreza que disputam legitimidade. O argumento está exposto no livro Antígona, Intriga e Enigma – Sófocles lido por Hölderlin (Perspectiva), publicado no final do ano passado, que terá lançamento em Porto Alegre hoje, às 19h30min, no Instituto Ling, com entrada franca.

Como um bom vinho que melhora com o tempo ou uma redução gastronômica que concentra sabores, nas imagens evocadas por Kathrin, o livro traz uma síntese de um ensaio de maior fôlego lançado em 2000, Antígona – De Sófocles a Hölderlin (L&PM), esgotado nas livrarias. A autora avalia que o lançamento é mais maduro e acessível do que o volume anterior, no qual havia se cercado de uma ampla fundamentação intelectual para contrapor sua tese frente à autoridade dos helenistas, de um lado, e dos especialistas em Hölderlin, de outro.

DA TEBAS TRÁGICA AO BRASIL DE HOJE

Foi o início de uma série de trabalhos. Em 2002, Kathrin publicou o livro Sófocles & Antígona pela coleção Filosofia Passo-a-passo, da editora Zahar. Dois anos depois, orientou o diretor Luciano Alabarse em uma encenação da peça em Porto Alegre, com tradução de Lawrence Flores Pereira. A versão de Pereira apareceu em livro em 2006, em edição da Topbooks, com introdução e notas de Kathrin. Ele participará do evento hoje lendo trechos da tradução.

Para Kathrin, Hölderlin foi um dos mais rigorosos leitores de Sófocles ao compreender que a mente grega funcionava de maneira diferente da cristã. No processo histórico de simplificação da tragédia no clichê entre o bem e o mal, perdeu- se a noção de deinos, conceito grego que significa, ao mesmo tempo, maravilhoso e terrível. Essa é Antígona, argumenta a professora:

– É uma situação muito contemporânea, que admiramos quando assistimos a um bom thriller no cinema. Não queremos mais histórias em que uns são bons e outros são maus. Nos filmes de detetive, o interesse do espectador moderno é sempre pelas figuras ambíguas, que oscilam entre os dois extremos.

As última três décadas de história do Brasil, que coincidem com a experiência de Kathrin no país, oferecem um cenário apropriado para reler Antígona sob a chave que ela propõe. Durante este período, a sociedade assistiu à ascensão e à queda de fenômenos eleitorais. A crescente descrença da população em relação às representações políticas de diferentes espectros ideológicos comprova que o Brasil contemporâneo vive a questão da legitimidade do poder como a Tebas trágica. Kathrin compara:

– Nosso momento é muito semelhante ao de Antígona. Estamos em uma confusão mental. Se tivermos que intervir politicamente, por quem optaríamos? Não temos mais ninguém. Como se constrói a legitimidade assim?

Constituindo um díptico, o livro Antígona, Intriga e Enigma terá sequência com um estudo sobre Édipo que a autora pretende publicar também pela editora Perspectiva entre o final deste ano e o início do próximo.

fabio.pri@zerohora.com.br


30 de março de 2017 | N° 18806 
DAVID COIMBRA

A revelação

“Mocó” era como chamávamos um canto dos fundos do Colégio Amstad, onde íamos vagabundear. Fico especulando, agora, em retrospectiva, se aquilo era um jardim ou uma fonte desativada. Não sei. Era um espaço aberto entre os arbustos, delimitado por umas pedras, nas quais sentávamos. Os mais velhos deslizavam para lá a fim de fumar escondidos das professoras. Eu não fumava, mas ia para conversar conversas clandestinas, coisas que não podiam ser ouvidas nem pelas crianças, nem pelos adultos.

O Amstad fica nos altos do IAPI, acima do Alim Pedro, entre o cemitério e o postão. Fiz a 8ª série lá. Dia desses, recebi uma foto da nossa turma. Eu de pantalona de brim e uma camisa amarela de que gostava muito, bem magrinho, o cabelo começando a encrespar. Devia ter uns 13 ou 14 anos. Hoje, os guris dessa idade vão aos rolezinhos do beijo.

O Paulo Germano estava me falando dos rolezinhos do beijo, que reúnem até 20 mil adolescentes em São Paulo e já estão descendo para Porto Alegre. Eles se encontram para, a princípio, se beijar, mas tudo pode acontecer.

Para mim, nos tempos do Amstad, isso seria impossível, impensável, inimaginável. E, falando em imaginar, imagine que, uma tarde, numa dessas vezes em que escorregamos para aquele jardinzinho, um dos caras mais velhos acendeu um cigarro, soprou a fumaça para o alto e revelou, para nosso espanto e admiração, que havia “feito de tudo” com certa menina da aula em uma festa. Arregalei os olhos. Como assim, “feito de tudo”?

– Passei a mão nela todinha – explicou. Todinha! Fiquei assombrado. Todinha!

Não fazia nem uma semana, nós estávamos sentados nos bancos de pedra que ficavam em frente à Coorigha e a Alice contou:

– O Bira botou a Karen na Mobilette dele, foi lá para cima do Alim Pedro e lá... passou a mão nos seios dela!

Dei um salto e protestei: – Não acredito que a Karen fez isso!

E agora aquele cara vinha falar que havia passado a mão na nossa colega “todinha”!

Nele acreditei. Nossa colega parecia mais desinibida do que a Karen. Pedi mais detalhes e ele foi descrevendo a cena: apalpou aqui, alisou ali, afofou acolá.

Até acolá. Eu, estupefato com a ousadia dele, incentivava:

– E aí? E aí?

– Aí... – ele fez um suspense. – Na hora em que eu ia tirar a calça dela... Ela mandou parar. Disse que não podia.

– Por quê? Por quê??? – Estava monstruada! Acredita?

Monstruada? Eu não fazia ideia do que poderia ser aquilo. Mas é óbvio que não ia passar vergonha. Exclamei:

– Não! Ele, suspirando: – Pois é...– Que coisa...

Ainda lembro de quando a aula terminou e desci o morro do Alim Pedro com minha pastinha debaixo do braço, pensando que raios, afinal, deveria ser esse troço de monstruada. As mulheres se transformavam em monstros ou o quê? Ao chegar em casa, corri ao dicionário. Não encontrei a maldita palavra. À noite, perguntei para a minha mãe. Ela riu:

– É “menstruada”!

E me explicou o fenômeno. Quando me contou que uma coisa daquelas acontecia com as mulheres, quase não acreditei. Como era possível? Passei a olhar para elas com fascínio ainda maior. Que seres intrigantes, recordo-me de ter pensado, ou simplesmente sentido. É o que sinto ainda. Como era ingênuo. Pobre de mim, que vivi em um tempo em que não havia rolezinho do beijo.


30 de março de 2017 | N° 18806 
CARLOS GERBASE

ETERNOS INIMIGOS?


A recente polêmica travada no jornal O Globo entre Bruno Wainer (da Downtown, poderosa distribuidora de filmes brasileiros) e o diretor Cacá Diegues (de Xica da Silva, Bye Bye Brasil e Deus É Brasileiro), travada com civilidade, mas com golpes fortes de lado a lado, me lembrou o melhor documentário de vida animal de todos os tempos (na minha modesta opinião): Leões e Hienas: Eternos Inimigos. Produzido pela National Geographic, com direção de Dereck e Beverly Joubert, tem imagens muito fortes e um texto espetacular, que nos leva a pensar em conflitos que acontecem bem longe da savana africana.

Wainer escreveu: “Acredito que as razões para essa grande quantidade de filmes produzidos que não encontram espaço nas telas de cinema é que, salvo honrosas exceções, estes são realizados na sua origem sem planejamento, sem compromisso com resultado, sem parceria com um distribuidor. A verdade é que os maiores sucessos do cinema brasileiro nasceram da colaboração estreita entre distribuidores e produtores”. Em outras palavras: produtores, roteiristas e diretores não sabem o que o público quer e não perguntam para quem sabe. Portanto, “fracassam” quase sempre.

Diegues respondeu: “O que Bruno Wainer escreve poderia ser esquecido, se não representasse perigosa concepção conservadora, concentracionária e financista, capaz de atrair incautos responsáveis pelo nosso cinema. (…) O cinema é uma indústria, mas não é apenas uma indústria. Reduzi-lo a isso seria como reduzir a indústria farmacêutica, por exemplo, a seu resultado de vendas. O cinema é uma economia criativa, muito mais complexa que a banalidade de uma indústria de resultados imediatos”. Em outras palavras: não dá pra julgar filmes só pela sua bilheteria.

A questão é: esse conflito, que reaparece de tempos em tempos desde a invenção do cinema, um dia terá fim? Ou estamos condenados a assistir para sempre a um documentário chamado Cineastas e Distribuidores: Eternos Inimigos? O final do documentário sobre leões e hienas não é muito otimista: “Nem sempre é fácil testemunhar essas batalhas. Mas, no fim de tudo, talvez possamos aprender mais sobre nós mesmos e as batalhas constantes que habitam nossas almas. Criaturas de instinto, incapazes de mudar seu destino, esses eternos inimigos continuarão lutando para sempre”.


30 de março de 2017 | N° 18806 
L.F. VERISSIMO

Representação

Há muito mais operários, trabalhadores no campo e empregados em geral – enfim, povão – do que a soma de todos os empresários, evangélicos, rentistas, latifundiários e etc. do nosso Brasil. O que quer dizer que a grande, a eterna crise que vivemos é uma crise de representatividade. Minorias com interesses restritos têm suas bancadas amestradas no Congresso. 

A imensa maioria do país tem representação escassa, em relação ao seu tamanho, e o que passa por “esquerda” na oposição mal pode-se chamar de bancada, muito menos de coesa. Só a ausência de uma forte representação do povo explica que coisas como a terceirização e a futura reforma da Previdência passem no Congresso como estão passando, assoviando. 

Os projetos de terceirização e reforma da Previdência afetam justamente a maioria da população, a maioria que não está lá para se defender. Li que a lei das privatizações vai ser mais “dura” do que sua versão original, que não agradou aos empresários. Os empresários pediram para o Temer endurecer. Os empresários têm o ouvido do Temer. O povo era um vago murmúrio, longe das conversas no Planalto.

Não há muita diferença entre o que acontece hoje e como era na Velha República, em que o país era governado por uma casta autoungida, que só representava a si mesma. Agora é até pior, pois a aristocracia de então não se disfarçava. Hoje temos uma democracia formal, mas que também representa poucos e se faz passar pelo que não é.

Claro, sempre é bom, quando se critica o Congresso, destacar as exceções, gente que na sua briga para torná-lo mais representativo quase redime o resto. Que se multipliquem.

ROTAÇÃO

Da série “quem diria...”. Uma das razões para impedir que um comunista chegasse um dia à presidência dos Estados Unidos era o temor de que o país passasse a ser governado pelo Kremlin. A possibilidade de um comunista ser eleito era remota, mas o medo era real e alimentou o macarthismo e as atividades do FBI durante anos. Corta para hoje, e a revelação de que o FBI está investigando a possibilidade de o Kremlin ter ajudado na eleição do... Trump! Um espécime acabado de reacionarismo americano. Outra prova da rotação da Terra.

quarta-feira, 29 de março de 2017



29 de março de 2017 | N° 18805 
MARTHA MEDEIROS

A baixa cotação dos off-lines

Ela estava sentada à minha frente, gloriosa aos 79 anos, uma mulher ainda bela, com a inteligência intacta, amante dos livros e do cinema, com o bom humor em pleno funcionamento, mas com uma deficiência comum a outros que nasceram na Idade da Pedra Lascada: entende bulhufas de computadores. Não usa smartphone, nem tablet, nem iPad. Está alheia ao universo virtual, que, segundo ela, não lhe faz a menor falta. Perguntou a mim: “Tenho esse direito?”.

Ela mesma respondeu: “Descobri que não, não tenho”.

Vive sozinha há uns 25 anos e os filhos moram em suas próprias casas: a família é unida, mas eles não são onipresentes. Nem ela deseja que estejam na sua cola, é independente o suficiente para fazer suas compras, praticar exercícios, encontrar suas amigas, ir ao banco.

Ah, ir ao banco.

Ela é correntista de um grande banco que foi absorvido por outro grande banco, coisa que todo cliente é obrigado a aceitar sem direito a dar pitaco. Ok, nenhum problema. Só que é uma mulher que gosta de ter tudo na ponta do lápis, até porque este “tudo” não é tanto assim. Ela faz contas, como qualquer cidadã. 

Através do extrato do seu cartão de crédito, confere seus gastos mensais. Até que soube que seu banco, agora sob nova direção, não emitiria mais extratos de papel, apenas extratos online. Ela pensou: isso é bom, economia de celulose, mas eles certamente abrirão exceção para quem está fora das redes. E muito calmamente foi até sua agência solicitar a continuidade do recebimento do extrato pelo correio.

Foi tratada como se fosse um alienígena, um ser primitivo a ser estudado por arqueólogos. Saiu de lá sem a solução para essa questão que lhe parecia tão simples, e é.

Pergunta ainda não respondida: idosos (e nem tão idosos) são obrigados a se informatizar? Humilhá-los é uma forma de punição pelo atrevimento de não terem um iToken?

Se você não viu o filme Eu, Daniel Blake, vencedor do Festival de Cinema de Cannes do ano passado, procure assistir por algum canal pago ou pelo DVD: trata da alienação forçada e injusta imposta àqueles que pegaram a revolução tecnológica no meio do caminho e não são mais considerados pessoas que valham o esforço de um atendimento analógico.

A bela septuagenária aqui citada não é um personagem de cinema. É apenas mais uma entre tantos senhores e senhoras que se sentem excluídos por seus digníssimos gerentes de conta, que parecem esquecer que existe vida além dos aplicativos. Até onde sei, o dinheiro de alguém de 35 anos vale o mesmo que o dinheiro de quem tem o dobro dessa idade. Ou não? Bancos, lojas, repartições: não matem seus antigos clientes antes do tempo.



29 de março de 2017 | N° 18805
EDITORIAIS

A HORA DA VERDADE

A retomada dos debates sobre projetos do pacote fiscal do governo do Estado, suspensos desde o ano passado, é uma questão que diz respeito a todos os gaúchos e, por isso, precisa ser acompanhada com atenção daqui para a frente. Sem a aprovação das medidas ainda pendentes – algumas das quais exigem o aval de pelo menos 33 dos 55 parlamentares, por se constituírem em Propostas de Emenda à Constituição (PECs) –, o Estado tende a enfrentar problemas para aderir ao plano de recuperação fiscal proposto pelo governo federal. Um eventual agravamento na situação da dívida para com a União tornaria ainda mais difícil o panorama das finanças públicas do Estado, que já impõe prejuízos generalizados.

Diante do quadro difícil enfrentado hoje, em que o poder público não consegue manter sequer a folha salarial em dia, muito menos fazer investimentos, é óbvio que a responsabilidade não é apenas do governo. Parlamentares, independentemente de estarem ou não na base de apoio, precisam pensar menos em diferenças e divergências partidárias e mais na urgência de contribuir para a recuperação do equilíbrio entre receita e despesa.

A particularidade de muitas agremiações políticas já estarem de olho nas movimentações com vistas à campanha eleitoral do próximo ano não serve como desculpa para adiar o enfrentamento dos projetos à espera de exame dos parlamentares. Este é o momento de a sociedade acompanhar mais de perto quem está preocupado de fato em garantir um futuro menos instável para o setor público gaúcho e, em consequência, para o Estado de maneira geral.



29 de março de 2017 | N° 18805
ARTIGOS | GILBERTO SCHÄFER

A PREVIDÊNCIA E O TETO DE GASTOS

A ideia é simples. Qualquer cidadão que gasta mais do que ganha fica endividado, perde o crédito e só consegue novos empréstimos a juros mais altos. Com o governo, não é diferente. Depois do limite dos gastos, a taxa de juros está caindo, a bolsa subindo, o dólar e a inflação caindo, e o investimento e o crescimento melhorando. Há sinais de que o desemprego começará a cair já neste primeiro trimestre de 2017.

Mas a batalha não está ganha, porque precisamos resolver a principal causa do aumento do gasto público, que é o desequilíbrio da Previdência Social. Daqui a 10 anos, se nada for feito, a despesa da Previdência será mais de R$ 100 bilhões acima do que ela seria em caso de aprovarmos a reforma. Para que se tenha uma ideia de como esse valor é alto, todo o gasto em saúde no ano de 2016 somou R$ 98 bilhões. 

Por isso, se a reforma não for aprovada, para se manter o limite de gastos, vai ser preciso cortar na saúde, na educação, na segurança, no saneamento básico. Será que vale a pena fazer todos esses cortes, e continuar permitindo que as pessoas se aposentem aos 50 anos de idade? Manter aposentadorias especiais e de alto valor para servidores públicos e políticos?

Se a reforma não for aprovada e o governo for obrigado a abandonar o limite de gastos, os danos à economia serão grandes. Voltaremos ao quadro de recessão e inflação alta. Em 20 anos, os gastos com Previdência tomarão conta de quase todo o orçamento.

O povo gaúcho sabe melhor do que ninguém o que acontece quando acaba o dinheiro no cofre do governo: salários e aposentadorias parcelados, cortes nos serviços públicos. É isso o que está acontecendo com o Rio Grande do Sul. Foi isso o que aconteceu com a Grécia, e é isso o que vai acontecer com o Brasil, caso não se faça a reforma da Previdência.

REFORMA ARDILOSA E INCONSTITUCIONAL

Desde que assumiu a Presidência, Temer desfralda a reforma da Previdência como bandeira. Alega um déficit, contestado por muitas fontes acreditadas, como os auditores fiscais da Receita Federal, por exemplo, e apresenta a reforma como panaceia para o déficit fiscal, ignorando as pessoas por trás dos números e seus direitos de aposentados, pensionistas e beneficiários.

Enviou a PEC 287/2016 à Câmara dos Deputados em dezembro passado, após três meses de debate interno no governo. Em meio à tramitação legislativa, o assunto foi sendo apropriado pela sociedade civil e a pressão aumentou, e se fez sentir nas bancadas de situação e oposição. Alertado por sua base de que a reforma não passaria da forma proposta, Temer então resolveu excluir os servidores estaduais e municipais.

A medida gera, como elenca o mestre em Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia Paulo Modesto, desconstitucionalização abrangente, assimetria de regimes, quebra da unidade de carreiras de Estado, insegurança jurídica, alteração de um extenso conjunto de normas, ruptura com nossa história constitucional.

O prazo para apresentação de emendas à PEC esgotou-se e o presidente a cada dia tem mudado o seu discurso em relação à reforma, propondo concepções que não foram objeto de emenda à PEC, que ultrapassam em muito os limites constitucionais do art. 60 da Constituição Federal que trata das Emendas Constitucionais. A proposta é uma inovação total e não condiz com a seriedade de uma reforma constitucional.

Está claro que o objetivo do governo é desmobilizar a sociedade e os servidores públicos, dividindo-os, a fim de abrir caminho para a privatização da Previdência. A ardilosa manobra do governo, contudo, deve ser tomada com um estímulo para o fortalecimento da mobilização dos servidores e trabalhadores que serão prejudicados com todos os itens da PEC. A PEC, inicialmente caracterizada pelo draconismo, agora também carrega o estigma de um repulsivo ardil.


29 de março de 2017 | N° 18805 
DAVID COIMBRA

O que dizer na hora do assalto

Especialistas em segurança dizem que, se você se transformar em vítima de assalto ou sequestro, o certo a fazer é fornecer ao bandido informações pessoais a seu respeito. Ele tem que sentir que você é um indivíduo, que, se puxar o gatilho e lhe enfiar um cilindro de chumbo no peito, estará acabando com uma história. É o princípio do sujeito que, sob a mira de uma arma, ao levantar as mãos, avisa:

– Tenho três filhos pequenos para criar!

Caso o agressor se identifique com esta situação, vacilará na hora de dar o tiro.

Pensando nisso, concluo que talvez o melhor não seja usar essa história dos filhos. Em geral, bandidos não são bons pais. Mas todos eles têm mãe. Assim, se você passar por um assalto, o que ocorre amiúde em Porto Alegre, apresse-se em dizer:

– Tenho que cuidar da minha mãe velhinha!

O importante é personalizar, entende? É fazer com que você tenha um rosto, com que seja alguém. Em vez de ser uma vítima desconhecida, um número na vida do agressor, tipo “o segundo cara que matei”, você tem vida própria. Você é uma pessoa.

Já se a sua intenção for atacar, você pode transformar uma pessoa em objeto ou ideia. Basta rotular o indivíduo. As esquerdas sempre foram muito boas neste processo. Agora, as direitas aprenderam. Olhe para a Maria do Rosário, por exemplo. Maria do Rosário tornou-se um símbolo do garantismo exagerado, do coitadismo brasileiro. Se você perguntar “quem” é Maria do Rosário, muitas pessoas responderão “o que” ela é: “Maria do Rosário defende bandido”. Claro, isso é o que essas pessoas acham que Maria do Rosário é. Trata-se de uma injustiça. Maria do Rosário defende os direitos humanos.

Este processo de personalização é o que Lula está fazendo, com bom sucesso, em seus movimentos de defesa das acusações de corrupção. Acuado, Lula partiu para o contragolpe. Ele não fala das acusações. Ele fala dele.

Em primeiro lugar, sugere que vai se lançar candidato à Presidência. Duvido. A candidatura de Lula tem teto, e ele sabe disso. Sua rejeição é gigantesca. Esforçando-se muito, passaria para o segundo turno, mas aí seria a delícia de qualquer adversário. O Tiririca ganha do Lula no segundo turno.

Mas isso pouco importa. O que importa é a ideia de que Lula é uma viabilidade política e que, por isso, está sendo perseguido. E quem o persegue? Lula construiu a tal personalização: é o juiz Sergio Moro. Lula tem plena ciência de que o juiz não denuncia nem investiga, mas lhe é conveniente dar uma cara ao inimigo, a fim de apontar seus defeitos: Moro é vaidoso, a mulher de Moro tem um perfil no Facebook, ou até, como alegou Ciro Gomes, Moro usa gravata-borboleta. Ter raiva de Moro é fácil, ter raiva da Justiça é mais complicado.

Ao mesmo tempo, o confronto virtual de Lula com Moro serve à maioria da classe política, hoje sofrendo de síndrome do pânico devido aos avanços da Lava-Jato. Então, Cunha, Calheiros, Jucá, Sarney et caterva gritam contra o que chamam de abuso de autoridade e patrocinam um punhado de projetos de lei a fim de constranger o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal. A eles se juntam empresários, intelectuais e até parte do Judiciário.

Eles são muitos. Eles são muito fortes. Eles querem que o que é continue como sempre foi. Vai ser difícil resistir.



29 de março de 2017 | N° 18805 
PEDRO GONZAGA

O INÍCIO E O FIM

Os dois se olham. Alguns passos os separam. Um dia, um deles tinha acreditado que tudo era uma questão de dar os passos certos. Em lugares assim, entre luzes favoráveis e móveis de madeira, ambos começaram tantas relações ao longo da vida, como, algumas vezes, também as terminaram. 

Seus olhares voltam a se encontrar, demoram-se, enleiam-se, mas como saber o que vai para além desse filtro úmido, poroso e ao mesmo tempo inescrutável, o olhar do outro? Agora resta a distância, e tudo o que a distância representa. De quem terá sido o gesto? 

A mão que corre lenta sobre a toalha. Sentados, um frente ao outro, esperam as palavras certas, ou ao menos as palavras adequadas. Em algumas ocasiões, as palavras terão sido sobre vencer os receios, noutras, sobre aceitar a primazia dos fados. Os dedos se entrelaçam levemente, depois se apertam com força. Já nada há entre os dois. Veem-se, de súbito, desnudados. 

Neste congelamento do instante, sabem tudo o que precisam saber, sabem as bocas, sabem as peles, sabem os ossos: o início do amor, o fim do amor. Veem-se, de súbito, desnudados. Já nada há entre os dois. Os dedos se entrelaçam levemente, depois se apertam com força. Em algumas ocasiões, as palavras terão sido sobre vencer os receios, noutras, sobre aceitar a primazia dos fados. 

Sentados, um frente ao outro, esperam as palavras certas, ou ao menos as palavras adequadas. A mão que corre lenta sobre a toalha. De quem terá sido o gesto? Agora resta a distância, e tudo o que a distância representa. Seus olhares voltam a se encontrar, demoram-se, enleiam-se, mas como saber o que vai para além desse filtro úmido, poroso e ao mesmo tempo inescrutável, o olhar do outro? 

Em lugares assim, entre luzes favoráveis e móveis de madeira, ambos começaram tantas relações ao longo da vida, como, algumas vezes, também as terminaram. Um dia, um deles tinha acreditado que tudo era uma questão de dar os passos certos. Alguns passos os separam. Os dois se olham.

terça-feira, 28 de março de 2017



28 de março de 2017 | N° 18804 
CARPINEJAR

A perfeição mata a sinceridade

Quando fico nervoso, eu explodo rapidamente. As veias da cabeça saltam, bufo e grito, a reação é instantânea. Não guardo para depois. Sou primário e infantil. É aquela sensação de rasgar a roupa de Hulk, mas troco de pele, de rosada para rubra. Os olhos se agigantam em fogo. Falo palavrão, ofendo e me defendo como posso. Não queira conversar comigo, não escutarei mais nada, totalmente possuído. Também me entrego rapidamente na tristeza e na alegria. Mas logo passa e me recomponho e corrijo o exagero. Pelo menos, todos ao meu redor têm certeza da minha normal falibilidade.

No fundo, ofereço facilidades para a minha família. Não escondo os meus sentimentos. Não enterro as desavenças em nenhum quintal da memória.

Duro é conviver com quem embrabece e não se entrega. Nem diz o que perturbou. Não dá sinais de cólera.

Há pessoas que são educadas excessivamente para explodir e enganam o interlocutor. Acreditam que magoar-se é uma fraqueza, desconfiam da intimidade e se protegem na bolha impassível da soberba. Não expõem os pontos fracos para parecerem mais fortes do que realmente aguentam. Culparão o chão pelo tropeço e jamais assumirão as oscilações naturais de humor.

Demonstram o contrário do que sentem. Quando estão nervosas, tornam-se cada vez mais calmas. Não aceleram as palavras, retardam o modo de pronunciar cada uma delas, como uma estranha soletração. São xingados de volta e respondem com elegância, como se nada tivesse acontecido de errado. Dissimulam, trocam de assunto, fogem do conflito. Podem estar destruídas por dentro, não revelam os escombros. Mantêm a aparência indiferente, controlada, sem desvio facial e aumento de tom de voz.

Elas são as que mais sofrem pela impossibilidade de sofrer na hora. Saúde é sofrer pontualmente. Sofrer no momento em que aconteceu o desenlace emocional. Assim ressentimentos caducam, não há vitimização, não há vingança e recalque, não há transferência de pecados.

Equilíbrio é perder a postura de vez em quando para não sobrecarregar a alma. Dissabores emergem para serem desfeitos no ato, com desculpa e retratação.

Adiar costuma aumentar a importância de um simples aborrecimento.

A maior violência vem da inibição. Não comunicar o que incomoda e ser partidário de que a outra pessoa não é capaz de entender e respeitar os limites.

Melhor ser um esquentadinho do que um requentado. A perfeição mata lentamente a sinceridade.



28 de março de 2017 | N° 18804
SEGURANÇA

Assaltado ao prestar socorro

APÓS CAPOTAR NA RS-324, em Marau, ladrões roubaram Kadett de condutor que parou para ajudar

Um motorista parou para prestar socorro aos ocupantes de um Sandero que capotou na ERS-324, em Marau, no norte do Estado, e acabou sendo assaltado pelas vítimas do acidente. O caso foi registrado na madrugada de ontem, no quilômetro 80 da rodovia, próximo ao trevo sul, no limite com o município de Vila Maria.

Em entrevista ao Timeline Gaúcha, da Rádio Gaúcha, André Pires dos Santos, 25 anos, afirmou que a primeira reação foi socorrer as pessoas no carro:

– Parei porque o veículo vinha na minha frente se acidentou, acabou capotando, fui socorrer. A primeira ação da gente é socorrer alguém, ver se tem alguém machucado.

Para quebrar os vidros do automóvel, Santos utilizou um alicate que havia saltado do porta-malas do Sandero com outros objetos e estava próximo do veículo. Depois de ajudar os três homens que estavam no carro, o jovem foi surpreendido. Um dos homens saiu de dentro do Sandero com uma mochila e uma arma longa.

– Quando vi uma arma daquele tamanho, percebi que eles não estavam de brincadeira. Pelo que descrevi depois para a Brigada, os policiais me disseram que podia ser um fuzil – contou o jovem.

Na sequência, o criminoso armado colocou a mochila nas costas e fugiu pelo mato. Os outros dois homens, que carregavam uma maleta semelhante às utilizadas para transporte de dinheiro, foram em direção ao Kadett de Santos. 

Ele ainda tentou detê-los jogando o mesmo alicate que havia usado para resgatá-los contra um dos vidros. Chegou a segurar a direção, mas não conseguiu impedir que a dupla escapasse levando o carro. Os criminosos acabaram levando junto, dentro do Kadett, todas as ferramentas de trabalho do jovem, que é montador de equipamentos aviários.

SANDERO UTILIZADO POR TRIO ERA ROUBADO

Santos avalia que o trio tenha capotado após se assustar com um giroflex instalado no portão de uma empresa próxima ao local. Além do Sandero acidentado, os criminosos deixaram para trás uma pistola 9 milímetros municiada, dois coletes balísticos, um rádio comunicador, luvas e outros objetos.

O trabalhador lamentou ter perdido o Kadett verde, placas IGA 9527, que não tinha seguro, mas se disse aliviado de ter saído ileso do incidente:

– Graças a Deus, não aconteceu nada, foi só o carro.

A Brigada Militar fez buscas na região mas não localizou a dupla com o veículo nem o criminoso que fugiu pela mata. De acordo com o delegado Norberto dos Santos Rodrigues, o Sandero havia sido roubado em Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, em 13 de fevereiro:

– Estamos investigando para chegar aos criminosos.


BRUNO TEIXEIRA | BRUNO.TEIXEIRA@RDGAUCHA.COM.BR

AO VER UM ACIDENTE

1 Em primeiro lugar, mantenha a calma. Antes de qualquer coisa, você deve garantir a sua própria segurança.
2 Sinalize o local do acidente usando o triângulo, use os faróis do automóvel ou então galhos de árvores.
3 Em seguida, identifique o local tomando um ponto de referência ou o endereço. Verifique quantas são as vítimas, qual a gravidade da situação e acione serviços de emergência. Em caso de rodovia estadual, ligue para o 198. Em estradas federais, 191. Também vale ligar para o Samu, 192, ou para o 190 da BM.
Fonte: Fonte: Comando Rodoviária da Brigada Militar


28 de março de 2017 | N° 18804 
DAVID COIMBRA

As pessoas que não concordam comigo

São irritantes essas pessoas que não concordam comigo. Ah, a democracia é assim. E eu com isso? A democracia é ótima como regime político. Quanto a todo o resto, não mesmo. Não me venha com democracia.

Ah, o debate de ideias sempre é interessante. Interessante para quem? Eu não me interesso pelo debate de ideias. Interesso-me pela concordância. Concordou? Amigo. Não concordou? Tiau.

Ah, as divergências fazem crescer. E quem é que disse que quero crescer? Quero ficar bem assim como estou. Quer crescer divergindo? Vá divergir de outro.

Uns perguntam: “Você queria unanimidade? Queria que todos gostassem de você?”. Claro que sim! É evidente que quero ser unanimidade e é evidente que quero que todos gostem de mim. Você não gosta? Não gosto de você também. Tiau.

Um dia li um artigo de algum cara que se acha inteligente falando sobre a bolha do Facebook. As pessoas criam bolhas no Facebook, escreveu o cara esse, e nessas bolhas todos pensam da mesma forma.

Isso é maravilhoso. Preciso descobrir uma bolha legal e entrar nela. Infelizmente, conheço várias pessoas que pensam diferente de mim, alguns até amigos. Eles ficam postando textos completamente imbecis. Sinto vontade de pular da sacada a cada vez que leio.

Alguém aí talvez proteste: “Você está dizendo que os textos são imbecis só porque não concorda com eles!”.

Lógico! É exatamente isso. Imagina se eu diria que é imbecil um texto com o qual concordo. O imbecil seria eu.

Mas sei por que eles postam esses textos. É para me provocar. Para fazer com que reclame: “Que coisa bem imbecil você acabou de escrever! Como é que você emburreceu dessa forma? Antes, quando você concordava comigo, você era esperto”.

Só que não farei isso. O que farei será rolar os olhos nas órbitas, rilhar os dentes, respirar fundo e me calar. Serei ponderado. Serei... democrático (argh). Mas, na verdade, o que queria dizer é que essa opinião é estúpida. Por quê? Porque é.

A velha história: Se você for discutir com todos os idiotas do mundo, você não fará mais nada na vida. Assim, por absoluta falta de tempo, vou silenciar. Seguirei minha sina. Seguirei carregando a minha cruz. Seguirei fazendo de conta que respeito as oposições, quando, na verdade, as desprezo.

Ou então usarei de ironia. Você percebeu que estou sendo irônico o tempo todo, não?

Claro que sim, claro que percebeu. Você é inteligente. Afinal, você pensa como eu.



28 de março de 2017 | N° 18804 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

ERA PIOR. ERA?

Andei em um atendimento de emergência semana passada (nada grave, tudo sob controle) e por isso vizinhei com gente improvável para a minha rotina. Balconistas e taxistas, médicos de saúde pública e os colegas que dão aulas noturnas em escola pública, eles encontram gente de outros mundos sociais regularmente, mas meu cotidiano me isola entre alunos de classes mais ou menos confortáveis, no âmbito geral da classe média – daí por que não convivo nem com ricos, nem com pobres, nem com iletrados. (Motivo também de eu desconfiar dos meus juízos sistematicamente, por sinal.)

Estou ali e uma senhora, com aspecto de cansada, enquanto é atendida diz, em voz alta, que quer chegar aos 80 anos. A enfermeira, atenciosa, diz que vai sim, e pergunta quantos anos a senhora já tem.

– Setenta e nove e meio! – diz, e ri com aquele riso ameno de quem já viu coisas nesta vida.

Em seguida entra seu marido, que me saúda, eu devolvo a gentileza e pergunto se está tudo bem.

– Não muito bem. E se corrige, também com um ar maroto de gente experiente:

– Já foi pior, né, vizinho?

E sem me dar muito tempo prossegue:

– Quando eu era pequeno, tinha que rachar lenha de manhã cedo pra mãe fazer comida, não existia geladeira, eu tinha que caminhar léguas pra ir a qualquer parte... Hoje, eu quase nem caminho: vou só de ônibus, e depois duas quadras e já estou em casa. O senhor também?

Fiquei sem saber se dizia que só vou de carro, e apenas sorri.

O fatalismo e o conformismo característicos da gente simples, e dos doentes já velhinhos, se combina aqui com um tanto de sabedoria. A vida foi mais difícil concretamente, claro.

O que diria este senhor se soubesse que um blogueiro foi levado à presença da autoridade policial, com autorização de um juiz (e interrogado sem a presença de seu advogado), a partir da terrível evidência de que havia curtido páginas de políticos de esquerda, pertencentes a partidos formalmente organizados (Folha de S. Paulo, 24/3, Poder)? Já foi pior?

segunda-feira, 27 de março de 2017



27 de março de 2017 | N° 18803 
CÍNTIA MOSCOVICH

80 ANOS IMORTAIS

Se vivo fosse, nosso saudoso Moacyr Scliar, falecido em 2011, teria cumprido 80 anos no dia 23 de março, quinta-feira passada. Uma data redonda, embora tristíssima, não podia passar em branco – e, em evento na Livraria Cultura, na Capital, foi lançado o volume Nossa Frágil Condição Humana (Companhia das Letras), organizado e prefaciado pela professora Regina Zilberman.

Autor de mais de 5 mil crônicas publicadas em Zero Hora e em veículos nacionais, Scliar foi um humanista de inquieta erudição e, por óbvio, homem de opiniões consistentes – e sempre disposto à conciliação. As 68 crônicas que compõem o livro, escritas entre 1977 e 2010 e que têm o judaísmo como mote, demonstram essas virtudes, que também eram naturais em sua ficção.

Como considera Regina Zilberman, pode ser que Scliar não tenha sido o primeiro autor brasileiro a se valer da temática judaica em seus textos. Antes dele, o gaúcho Marcos Iolovitch, em 1940, lançou Numa Clara Manhã de Abril e, em 1956, o polonês-brasiliense Samuel Rawet publicou Contos do Imigrante. Foi Scliar, no entanto, que conferiu uma abordagem mais robusta ao tema, valendo-se em muito da rica simbologia da tradição e, sobretudo, do humor e da ironia.

Consagrado logo no início de carreira com livros fabulosos como O Exército de um Homem Só e A Guerra no Bom Fim, Scliar comoveu e divertiu leitores de todos os feitios e abriu caminho para que outros autores, como Bernardo Ajzenberg, Tatiana Salem Levy, Bernardo Kucinski, Michel Laub – e eu – pudéssemos nos valer do legado da tradição judaica. Scliar nos permitiu participar da literatura em sentido amplo, sem que fôssemos enredados por esquemas de “gueto”, por reducionismos fáceis ou por esquemas classificatórios.

Em Nossa Frágil Condição Humana, o leitor poderá encontrar ponderações sobre o judaísmo, claro, mas também sobre o quebra-cabeças da vida. Principalmente, encontrará essa vocação conciliatória que sempre buscou a solução mais justa, esquivando-se de queixas e acusações – vocação a que chamaríamos, sem favor, de sabedoria.


27 de março de 2017 | N° 18803 
DAVID COIMBRA

Prisão de ventre

Esse iogurte, Activia, faz sucesso porque prisão de ventre é mal comum entre as mulheres. Conheci algumas que, em viagens, por exemplo, simplesmente não obravam.

Dom Pedro I era quem gostava de empregar esse bom verbo “obrar”. Em suas cartas para a Marquesa de Santos, ele várias vezes descrevia como e quanto havia obrado no dia, talvez imaginando que essas informações produzissem efeito afrodisíaco na amante. Na proclamação da independência, inclusive, há quem diga que ele havia se detido às margens plácidas do Ipiranga para obrar. São os pormenores intestinais da nossa história.

Mas, no caso das mulheres que não obram, não será iogurte a solução do problema. A questão é psicológica. É que há mulheres que sentem vergonha de ir aos pés, e agora passo de Dom Pedro para o Guerrinha. O Guerrinha aprecia esse termo tão gaúcho, “ir aos pés”. Quando trabalhávamos juntos, na Redação de Zero Hora, ele às vezes se erguia do seu lugar e anunciava, sonoramente:

– Vou aos pés!

A comunicação pública sempre provocava risos na Editoria de Esportes e manifestações de repulsa no Segundo Caderno, que era contíguo. Dona Celia Ribeiro, que trabalhava bem ao lado do Guerrinha e é uma mulher fina, não poucas vezes levantou uma sobrancelha em desaprovação.

A diferença de comportamento de uma editoria tipicamente masculina, como era o Esporte, para uma tipicamente feminina, como era o Segundo Caderno, prova o que digo: muitas mulheres sentem vergonha dessas atividades intestinas.

Só que há homens que também sofrem desse mal. O mais célebre deles talvez tenha sido Robespierre, o revolucionário francês chamado de “o incorruptível verde-mar”. Esse verde-mar era uma alusão à cor do rosto de Robespierre, que tinha tal tonalidade porque ele era um homem definitivamente trancado. Isso fez de Robespierre uma pessoa amarga. Ele jamais ria. Carregava sempre um caderninho, onde anotava os nomes de quem suspeitava ser inimigo da Revolução. De ter o nome colocado no caderninho para ter o pescoço colocado na guilhotina do carrasco Samson havia, em geral, um dia de diferença. Robespierre foi o próprio Terror.

Agora, mais de dois séculos depois de o próprio Robespierre ter a cabeça separada do corpo pela guilhotina, os cientistas descobriram que ele padecia de outra doença, uma deficiência imunológica raríssima e muito mais terrível, que lhe corroía as entranhas.

O incorruptível era um homem torturado. Desconfio até que esse apelido, “o incorruptível”, foi-lhe pespegado devido ao seu mau humor. Um sujeito que não ri parece não ser apegado ao gozo da vida e, não sendo apegado ao gozo da vida, não parece ser suscetível a tentações materiais.

Fico pensando se não é esse um de nossos problemas. Talvez nós, brasileiros, sejamos apegados em demasia ao gozo da vida. Aos prazeres da carne. Donde, tanta corrupção. Mas podemos evoluir. Nós também estamos passando por nossa revolução e, um dia, quem sabe, haveremos de descobrir que a soma dos prazeres não tem como resultado a felicidade.