03
de maio de 2015 | N° 18151
ROBERTO
ROMANO
Latinos?
Amigos do Rio Grande, meus respeitos! Recebi a honra
de escrever na Zero Hora em companhia de ilustres colegas e jornalistas. O
nosso convívio, penso, pode ser destinado ao diálogo sobre questões éticas,
estéticas e políticas. Escolhi para a primeira conversa um tema espinhoso.
Usamos
sem cautelas a palavra “latino” para indicar quem vive abaixo do México. A
recusa do apelativo, não raro, é punida com linchamentos ideológicos. Numa
reunião acadêmica, fui proibido de questionar o fato e a palavra. E o evento
era um “debate”. Discordar, pouco a pouco, se transforma em sinônimo de crime.
Mas pensemos o dogma.
O
termo “América Latina” surge em 1856 com Francisco Bilbao e Torres Caicedo. Ele
se amplia com o padre Lamennais e se vulgariza sob Napoleão III. Mesmo com
Lamennais, teórico e suposto progressista – de fato um conservador desiludido –
ele assume forma problemática. Para a política internacional da França, importa
que os EUA não controlem o México.
“Se”,
escreve o imperador ao General Forey em 1862, “o México mantiver sua independência
e integridade territorial, e com ajuda da França um governo estável se
estabelecer ali, podemos restaurar a força e o prestígio da raça latina no
‘outro’ lado do Atlântico (…) é nosso dever intervir no México com nossa
bandeira”. E mais: “estamos interessados em manter os EUA como poderosa
república; não é interesse nosso que ele se aposse de todo o Golfo do México e
governe as Índias Ocidentais e a América do Sul, controle toda a produção do
Novo Mundo”. Leia-se M. Rojas, Los Cien Nombres de America (1991).
O
nome se reforça com a imposição sangrenta ao México de um governante
estrangeiro, o patético Maximiliano de Habsburgo. A latinidade oficial nasce
numa concorrência entre imperialismos. O mito legitima canhões e baionetas de
Napoleão III, cujo alvo era garantir “mercado para nossas fábricas,
matéria-prima para nossas manufaturas” na mesma carta ao general Forey).
O
“latino” atribuído à nossa gente surge em conflitos políticos, econômicos,
ideológicos e religiosos que envolviam a Europa, os EUA e as nações que
conseguiram independência no século 19.
A fórmula “América Latina” não denota uma cultura comum
gerada no Latium via Espanha e Portugal. Ela traz o selo de uma invenção
diplomática (mentirosa como toda razão de Estado) para definir o território de
caça francês, contra a notória voracidade norte-americana de espaço.
A
propaganda gálica indica os protestantes do Norte como ateus presos ao mercado.
Já a França seria espiritual. No fato, Paris quer a riqueza americana, jamais o
diálogo com nosso espírito, demasiado primitivo segundo seus filósofos. Vicente
Romero tem outra versão, plausível. A ela voltarei se preciso. As vítimas devem
optar entre imperialismos: qual rapina é menor? Vencidos os franceses, nossa
gente é estigmatizada como “latina”. Nos EUA de hoje, o termo designa cidadania
inferior.
O
apelativo silencia que os indígenas e seus filhos são alheios à cultura de
Cícero. Eles eram muitos antes dos europeus. Após o seu genocídio nos EUA, na
América Central e do Sul, congregam povos que vincam a nossa fala e vida ética.
Africanos nada possuem que os ligue à cultura “latina”. Dela, recebem morte e
dor. Os afrodescendentes não são “minoritários”, pois só aqui eles contam
101.923.585 (IBGE). Se passamos aos alemães, ucranianos, poloneses, russos,
japoneses, húngaros, holandeses, chineses, coreanos, sírios, libaneses, turcos
e outras etnias, piora o equívoco do “latino”.
E o
fato existe no continente inteiro. Analiso o tema na revista Art-Press (How
“latin” is Latin America?, no endereço bit.ly/1du0ycy). O termo “latino” não
significa, de modo imediato, liberdade democrática.
Em
vez de retomar algo que nos prende às ideologias do século 19, importa pensar o
Brasil como síntese dinâmica de múltiplas e diferentes culturas, política inclusive.
Tensões entre elas ocorrem, mas todas entram na paleta de nosso povo sem nada
dever aos pretensos donos, gálicos ou saxões, do mundo.
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