terça-feira, 30 de junho de 2009



ESPERANÇAS

Apesar de todos os obstáculos
que encontro pela minha vida,
apesar dos contratempos que me deparo,
apesar das portas fechadas que vejo,
apesar das dificuldades que enfrento,
ainda assim, tenho a esperança.

A esperança vive em mim
amanhece comigo,
percorre o dia todo
e quando anoitece
ela está ainda mais fortalecida.

Quando meus pensamentos estão confusos
e minhas idéias não são decifráveis,
não desisto!
Lembro-me da esperança que me move...

Quando meu caminho está tortuoso,
e minhas chances são diminuídas,
lembro- me da esperança que devo ter sempre...

Esperança,
é a certeza de que algo de bom vai acontecer,
é a confiança que tudo vai dar certo.
Todos devemos ter essa esperança,
para que não nos sintamos caídos,
para que nosso dia seja menos tumultuado,
e para que nosso coração esteja menos pesado.

Desejo a você,
que também tenha sempre a esperança,
que ela permaneça sempre em seus pensamentos.

Desejo que você nunca desista,
porque enquanto houver a esperança,
nenhum sonho está perdido!

Vilma Galvão

Só que fico pensando quando dizes sempre: Não quero te dar esperanças.- Como foi sua folga hoje?

CLÓVIS ROSSI

Madoff e a inveja

BASILEIA - A condenação do megavigarista Bernard Madoff a 150 anos de prisão é o tipo de acontecimento que dá uma baita inveja do funcionamento do sistema legal norte-americano. Madoff é claramente o "branco de olhos azuis" que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva culpou pela crise.

Com uma agravante: ele deu um golpe, ao passo que os outros "brancos-de-olhos-azuis" se mexeram nos estritos limites da legalidade de um capitalismo desregulado e, por isso mesmo, selvagem. Madoff não é nem pobre nem negro -e, não obstante, vai para a cadeia perpétua.

Perpétua porque -e aqui há outro elemento a invejar- a legislação norte-americana determina que liberdade condicional só mesmo após cumprir 80% da pena. Significa que Madoff só ficará livre se sobreviver 120 anos.

Terceiro elemento para inveja: até aqui, as autoridades recuperaram US$ 1,2 bilhão do total de US$ 13,2 bilhões de seus golpes. No Brasil, desnecessário lembrar, nunca ninguém recupera nada de golpes dados contra o erário -e Madoff fez os seus trambiques contra particulares, não contra os cofres da nação. Note bem, caro leitor, que eu não tenho na boca o gosto de sangue.

Nem acho que criminosos dessa estirpe devam ser necessariamente condenados à prisão. Prisão é para quem representa risco de vida para os demais. Pode-se alegar que, com seus golpes, Madoff pôs em risco a vida de quem a ele confiou seu dinheiro. OK, mas a punição mais adequada é obrigá-lo a devolver tudo o que roubou. Enquanto não o faz, aí, sim, que fique na cadeia.

Note também, leitor, a rapidez com que o caso se resolveu. No Brasil, qualquer rolo envolvendo gente de olhos azuis e colarinho branco leva séculos para ir a julgamento -quando vai. E nenhum Madoff tapuia jamais foi preso.

crossi@uol.com.br


30 de junho de 2009
N° 16016 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


Reunião de família

O bom das festas de família são as pequenas inconfidências que surgem, antes acobertadas por séculos de cúmplices silêncios.

São a alegria do reencontro, após um mês, um ano, uma eternidade de distanciamento.

São o sentimento de que todos pertencem a um condomínio de lembranças compartilhadas.

São os mínimos segredos, antes mais ou menos ocultos, e de súbito divididos em sua inteira verdade.

São a sensação de que todos pertencem a um mesmo acervo de experiências que precisa ser reaprendido.

São a terna consciência de que, apesar da diáspora, nunca realmente nos apartamos.

São a redescoberta de recordações compartidas e desde muito caladas.

São a doce atmosfera de união na diversidade, pois há tanto separados somos no fundo iguais.

São as vivências repartidas de acontecimentos que entendíamos independentes.

São as alegrias esquecidas e que, sem aviso, voltam a tocar nossos corações.

São os netos que nascem, os filhos que se tornam adultos e a tia que tem 85 anos e a alma de uma menina.

São os sorrisos e as palavras dessa tia, que tornam presente o passado mais-que-perfeito.

São os simples olhares em que há todo um entendimento.

São a noção mágica de pertencer a um clã, a uma comunidade de afetos.

São as vozes e os risos que dão existência aos seres e às coisas.

São a reinvenção de muitas vidas, até ali dispersas, até ali reencontradas.

São a nua síntese de uma comunhão de caminhadas paralelas.

Assim são as festas de família: a reconstrução do que o tempo nunca poderá destruir.


30 de junho de 2009
N° 16016 - CLÁUDIO MORENO


Almas errantes

O homem antigo acreditava que o corpo e a alma eram entidades distintas, e que a função do primeiro era apenas servir de morada para a segunda. Embora não concorde com essa velha divisão – para mim, são coisas inseparáveis –, tenho de admitir que é uma bela metáfora, pois a estrutura de nosso corpo é mesmo muito semelhante à de uma casa: a alvenaria da carne é suportada pelas vigas dos ossos e pela tensão dos tendões, enquanto a coluna vertebral é o pilar que faz o peso do conjunto apoiar-se no alicerce dos pés.

A pele é a cobertura externa; na cabeça, o teto, o sótão e o telhado. No centro da casa, no fogo ancestral da lareira, o coração. É nesse interior protegido que a alma vive e respira.

Nessa casa de nove portas, qual delas servirá para que a alma possa sair? O homem primitivo acreditava numa saída especial, secreta, uma abertura imperceptível no alto do crânio – a décima porta, que ligaria o mundo interior ao mundo cósmico.

Na casa, seria a chaminé, por onde o sopro da alma podia subir livre aos céus para visitar lugares remotos, voltando depois mais sábia e mais instruída. Há dezenas de relatos dessas viagens, todas elas, como seria de esperar, ocorridas quando o corpo estava prostrado pelo sono, por doença ou pela bebida.

Plínio nos conta o curioso destino de Hermotimo de Clazomene, que costumava deixar o corpo por vários dias e só voltava depois de ter visto coisas desconhecidas e conversado com pessoas a uma grande distância dali. Certa feita, por traição de sua mulher, seu corpo foi entregue a inimigos, que simularam um funeral e o cremaram dentro dos ritos de costume.

Quando sua alma voltou, era tarde demais, pois tinha perdido para sempre o seu invólucro; para abrigá-la, os cidadãos de Clazomene, condoídos, construíram-lhe um templo em que mulher alguma podia pisar, para punir a memória de sua pérfida esposa.

Infeliz é aquela alma, no entanto, que se debate dentro de um corpo errado. Ao se contemplar no espelho – afinal, os olhos não são as janelas da alma? –, não reconhece aquele rosto que também a examina. Aquele corpo não nasceu junto com ela, não cresceu junto com ela, e por isso ela sente como se a tivessem instalado na casa de outra pessoa.

O que devia ser um lar passa a ser uma prisão, insuportável e vazia. Se ela tiver o talento de Michael Jackson, vai lutar com todas as forças para encontrar, um dia, o corpo que imagina ser o seu – vai tentar se aproximar, a cada nova cirurgia, daquela imagem sonhada que vai perseguir até a morte – pobre almazinha errante, perdida no exílio da existência.


30 de junho de 2009
N° 16016 - PAULO SANT’ANA


Dá para vencer o crack

Vesti ontem um casaco que causou sensação na Rua Padre Chagas e aqui na Redação.

Era um casaco de veludo, que lástima, veludo cotelê. E os frisos do casaco eram como manda a moda atual: estreitos.

Calhei muito bem dentro deste casaco que alguns setores salientes e entendidos de moda em Porto Alegre afirmaram que a cor (camelo) era apropriada para fim de outono ou início de inverno. E também afirmaram que meu passeio pela Padre Chagas com aquele casaco foi histórico.

Aliás, aquele casaco me inspirou a cantar o seguinte, tendo em vista os meus próximos dias:

Eu vou voltar aos velhos tempos de mim

Vestir de novo o meu casaco marrom

Tomar a mão da alegria e sair

Bye bye, Cecy “nous allons”.

Copacabana está dizendo que sim

Botou a brisa à minha disposição

Está bem, eu não sou o dono do mundo.

Eu sou o filho do dono.

Ontem, aqui na Redação, chamei o David Coimbra de invejoso, claro que brincando com ele para provocá-lo.

Ele respondeu seriamente: “Nunca te invejei. Ao contrário, eu te admiro com veneração. Desde quando eu era guri no IAPI, eu te assistia obcecadamente no Jornal do Almoço. Eu não te invejo, ao contrário, eu te admiro profundamente: tudo que eu desejo e sempre vou aspirar na vida é ser algum dia igual a ti.

É a segunda vez este ano que Salieri endeusa Mozart.

Fui ontem ao Painel que a RBS promoveu no BarraShoppigSul sobre a campanha Crack, Nem Pensar.

Tocou-me, entre outros comunicadores nossos, entrevistar um ex-usuário de crack.

Foi tão emocionante a entrevista que fiz com ele, que, em dado momento, nós dois, ao mesmo tempo, irrompemos num pranto convulso, as lágrimas emoldurando a narrativa que ele fez de como abandonou um vício depois de cinco anos.

Contou que, em determinado dia, foi despedido de seu emprego de pedreiro de obras civis. Recebeu R$ 1.800 por seus direitos trabalhistas e nem foi para casa, onde tinha uma mulher e um filho pequeno a esperá-lo na expectativa do sustento deles.

Ficou 15 dias fora de casa, na rua, no três primeiros dias ele gastou toda a sua indenização em pedras de crack, ou seja, 360 pedras da droga a R$ 5 cada uma. Fumou todas elas em 72 horas. Viajou pela fantasia mental que provoca a droga, esmagando a sua resistência psíquica, moral e física.

Voltou para casa 15 dias depois como um farrapo humano, após ter furtado e roubado em vários locais, tudo para comprar crack.

Em casa, segundo ele, usando de dois fatores fundamentais, a força de vontade e a esperança de que, se largasse o vício, poderia voltar a tratar da sobrevivência de seu filho e de seu casamento, deixou a droga, estando há meses sem dopar-se.

Foi então que, com aquele depoimento do ex-viciado diante das câmeras da TVCOM e do microfone da Rádio Gaúcha, eu e todo o auditório ficamos sabendo de uma grande novidade: é possível largar a droga, há gente que a larga, essa campanha da RBS é ainda mais sublime, é possível a um viciado em crack abandonar o vício, deixar de ser um drogado e reintegrar-se à família e ao meio social.

Portanto, a esperança pode ser a marca da nossa campanha. E, além da esperança, eu me muni também da fé de que a campanha é útil, é necessária e imprescindível.

Nós podemos derrotar as drogas, este é o grande horizonte que se oferece ao povo gaúcho.


Lavem as mãos

Agora ficou claro que a gripe está se disseminando mesmo. Não parece ser um vírus particularmente letal, o que é uma boa notícia, mas isso não quer dizer que não devamos tomar nossas precauções. E uma delas, talvez a mais simples, é lavar as mãos, medida que encabeça todas as listas de recomendações.

Mas que nem sempre é adotada. A associação entre lavagem das mãos e profilaxia de doenças não é tão óbvia assim. E há no gesto uma conotação do tipo “nada tenho a ver com isso”, inspirada por um personagem que está longe de ser um tipo simpático, Pôncio Pilatos.

O que explica o resultado de um estudo famoso feito nos Estados Unidos e que teve como cenário um banheiro público. Um observador ora estava escondido na privada (mas espiando as pessoas), ora estava junto à pia. Quando estava visível, a porcentagem de pessoas que lavavam as mãos aumentava muito – por causa, obviamente, da presença dele. O observador funcionava como superego, como autoridade moral.

Até profissionais de saúde têm resistência ao hábito. Um recente estudo feito em dois hospitais paulistas (um deles universitário) e publicado no internacional Brazilian Journal of Infectious Diseases, mostrou que menos da metade do pessoal do staff lavava as mãos.

O que confirma os dados obtidos em vários outros países, e evoca um trágico e conhecido episódio protagonizado por um famoso médico do século 19, Ignaz Semmelweiss. Húngaro, Semmelweiss trabalhava numa maternidade em Viena, então capital do império austro-húngaro.

Lá, descobriu que a febre puerperal, infecção muito comum em parturientes, e causada por uma bactéria à época desconhecida (um estreptococo), era transmitida às mulheres pelos médicos. Ao chegarem ao hospital, eles necropsiavam as pacientes falecidas na véspera (muitas de febre puerperal) e depois, sem lavar as mãos contaminadas, iam atender os partos.

Quando Semmelweiss advertiu-os a respeito, os profissionais ficaram furiosos: quem era aquele húngaro, aquele estrangeiro, para lhes dizer o que tinham de fazer? Hostilizado, Semmelweiss voltou para Budapeste, onde acabou enlouquecendo. Conta-se que andava pelas ruas, gritando: “Lavem as mãos! Lavem as mãos!”. Morreu no hospício.

Pobre Semmelweiss. Até como homenagem à sua memórias, precisamos lavar as mãos. O vírus da gripe ficará muito contente se não fizermos isso.

O Sant’Ana está aborrecido por ter completado 70 anos. Bobagem, Pablo. Esta é a idade ideal para ti. Para começar, as palavras “Santana” e “setenta” têm o mesmo número de letras, as mesmas três consoantes e uma mesma vogal; só diferem porque “setenta” tem esse “e”, que é, no entanto, uma conjunção que aproxima, que une, uma letra benéfica. Claro, não é a mesma coisa ter 30 anos e ter 70. Aos 30, a vida a gente finta; aos 70, se tenta.

Tentar é o tema da existência. E tu és, para o Rio Grande e para o Brasil, o exemplo clássico de alguém que tentou e venceu. O menino que era ajudante numa feira livre do Bom Fim venceu todos os desafios. Vencerás este também. É a garantia de veteranos como eu.

O novo parque gráfico da RBS, que homenageia Jayme Sirotsky, não é apenas um notável empreendimento tecnológico e industrial. É uma prova de confiança na atividade jornalística, e ocorre numa época mais que oportuna:

neste momento, colossos como o New York Times se atemorizam diante da crise. Mas a RBS vai em frente. E isso é, para nós, leitores e colaboradores de ZH, motivo de orgulho.

Presidente deposto em Honduras. A gente já viu esse filme, né?

segunda-feira, 29 de junho de 2009



29 de junho de 2009
N° 16015 - KLEDIR RAMIL


Datas – da série “Consertando o mundo”

Por sugestão de uma leitora, resolvi analisar nosso calendário de festas anuais e notei que várias datas estão em posição errada. A começar pelo Carnaval, que insiste em acontecer sempre no verão. O Carnaval é uma festa em que as pessoas dançam e pulam debaixo de um calor de rachar.

Seria muito mais apropriado se fosse no inverno. A temperatura mais baixa, tipo ar condicionado natural, faria as pessoas se divertirem sem suar tanto, o que deixaria o ar mais respirável. Com menos calor, diminuiria também o consumo de cerveja, tornando a festa mais civilizada, com menos brigas e acidentes de trânsito. E, ao mesmo tempo, resolveria o problema do cheiro de urina nas ruas.

A festa de São João deveria ser no outono. Manter uma fogueira acesa no inverno requer muita lenha, o que estimula o desmatamento das florestas, provocando desequilíbrio ecológico e o aquecimento global. Uma atitude politicamente correta seria transferir as festas juninas para a época da Páscoa, quando as árvores já estão secas mesmo e um galho a mais ou a menos não faria muita diferença. A Páscoa teria então que ser deslocada para, sei lá, dezembro.

Por sua vez, o Natal iria para o inverno e poderíamos, finalmente, curtir sem culpa os pinheiros com neve e toda aquela decoração glacial. E o cara que se veste de Papai Noel não sofreria tanto com o calor.

Existe dia da mulher, da criança, do idoso. Só o homem, coitado, não tem um dia pra chamar de seu. Não adianta vir com a piadinha de que a mulher tem só um dia e todos os outros 364 são do homem. Queremos um dia exclusivo para nós. Vou passar um twitter e convocar uma passeata.

E, já que estamos tocando no assunto, precisamos privilegiar o dia dos pais. Abril seria uma boa data. No início de agosto saímos prejudicados, pois o orçamento doméstico chega sem fôlego, depois de passar pelo dia da mães, dia dos namorados e férias de julho. Só recebemos migalhas.

Pra você ter uma ideia, ano passado, no dia das mães, dei um iPhone de presente pra minha mulher e no dia dos pais recebi um par de meias. Não é justo.

Para encerrar, o Ano Novo poderia ser festejado no dia 17 de dezembro, dia de São Gabirú, data máxima do calendário gregoriano, que marca a vitória triunfal do Sport Club Internacional sobre o Barcelona...

Enfim, é só uma sugestão.

Uma ótima segunda-feira e uma excelente semana.


29 de junho de 2009
N° 16015 - PAULO SANT’ANA


Quatro nádegas

Amaior frase de Shakespeare não é “o covarde morre mil vezes antes de morrer”.

A maior frase de Shakespeare é: “Não cabem quatro nádegas no mesmo trono”.

Esta frase de Shakespeare cabe perfeitamente na ânsia de afirmação com que se atiram os meus interinos nesta coluna, quando têm a oportunidade de escrever em meu lugar (querendo para sempre o meu lugar).

Esta frase de Shakespeare, de que quatro nádegas não cabem no mesmo trono, serve para mil situações.

Serve, por exemplo, para configurar a dualidade de poder existente no Internacional, onde Vitorio Piffero e Fernando Carvalho pretendem se eternizar no mando total do clube, exercendo-o simultaneamente, fingindo alternância no poder.

Só quero avisar que este estratagema de Piffero e Carvalho não vai dar certo, vai estourar, porque foi Shakespeare, um dos três maiores gênios da humanidade, que disse que não cabem quatro nádegas no mesmo trono. Vai estourar.

Se o Lula está planejando eleger Dilma Rousseff para exercer concomitantemente com ela os dois mandatos presidenciais próximos, vai acabar trombando com o gênio Shakespeare.

Para que os leitores tenham ideia da minha isenção, já que escrevi que no Internacional estão sentadas no trono há vários anos quatro nádegas, vou me ocupar também do Grêmio.

No Grêmio, o trono é ocupado por quatro nádegas há seis mandatos presidenciais, compreendendo quatro presidentes, dois deles reeleitos.

Em todos os seis mandatos com os últimos quatro presidentes, quem erigiu e/ou indicou os seus quatro sucessores foi Fábio Koff.

Ou seja, Fábio Koff exerceu conjuntamente o poder, por sua influência e vulto de maior presidente da história do Grêmio, dividindo assim o trono, veladamente, com Cacalo, Guerreiro, Obino e Odone, os quatro que sucederam a ele (Duda Kroeff não vale porque não se sabe ainda no que vai dar, desejo seu máximo sucesso).

E, como Shakespeare tinha previsto em sua frase colossal, o Grêmio deu no que deu nesses quatro mandatos citados, já foi uma vez para a segunda divisão (na primeira vez foi com Rafael Bandeira) e, apesar de ter sido vice-campeão da Libertadores com Odone na presidência, quando também voltou à primeira divisão, e tricampeão invicto em 1997 da Copa do Brasil, com Cacalo na presidência,

jamais nesse período de quatro presidentes associados no poder com Fábio Koff, sempre portanto nesses quatro mandatos com quatro nádegas no poder, chegou perto ou encostou na glória máxima de Tóquio, advinda com Koff na presidência, vindo neste período também a falir financeiramente, penando até hoje com times baratos e sem qualidade.

Não há dúvida de que, quando foi campeão mundial de clubes em 1983, só duas nádegas sentaram no trono, as de Fábio Koff.

Enfim, num plano rigoroso, quando sentaram quatro nádegas no trono presidencial gremista, o resultado, repito, no aspecto geral dos seis mandatos, foi trágico e desastroso.

Antes que me respondam com autoridade lá do Beira-Rio, adianto-me: não vale me mandar dizer que o poder exercido por quatro nádegas no trono do Inter deu-lhe o título mundial.

Não é verdade: em 2006, quando o Inter foi campeão mundial, só as duas nádegas de Fernando Carvalho sentaram no trono, Piffero era mero vice-presidente e, embora tenha todo o mérito, não dividia o poder presidencial com Carvalho, era apenas um aspirante à presidência.

Tenho outros mil exemplos de que, quando quatro nádegas sentam no mesmo trono, instala-se a tragédia no reino.

Por essa lucidez monumental do dramaturgo inglês, elejo finalmente William Shakespeare como o maior gênio de toda a história da humanidade.

No meu entender, neste trono de maior gênio do planeta em todos os tempos, ocupado por Shakespeare , não couberam nem cabem as duas nádegas de Sigmund Freud, sequer as duas nádegas de Leonardo Da Vinci.


29 de junho de 2009
N° 16015 - SERGIO FARACO


Os dragões não envelhecem

Atendia por Batata um personagem das ruas de Alegrete e também de suas marquises, sob cuja proteção, enquanto não vinha alguém escorraçá-lo, ele costumava repousar com seus sacos de mistérios.

Batata nasceu em 1934, no dia 19 de janeiro. Ele mesmo me deu essa informação quando estive na cidade, nos anos 90, e, vendo-o numa esquina, recostado nos sacos, reclamei de sua aparência: se em meu tempo de menino ele já debulhava pata naquelas velhas ruas – do Hospital de Caridade ao Povo da Lata, da Ponte Seca ao Armazém da Portuguesa –, como podia sua cabeleira conservar o preto original? Batata sorriu e quanta zombaria naqueles olhos de águia.

Como se dissesse: “E é a mim que chamam de Batata...”.

Milagre, lembrou-se de mim, ou, mais certo, fingiu que se lembrava, e comentou que eu andava “sumido”. Quis saber se eu ficaria em Alegrete e quando respondi que não, que logo iria embora, fez uma careta: “Pena! Não vai estar aqui no dia do meu aniversário”.

Pena mesmo, e aquele dia chegou sem que ninguém abraçasse o Batata, única instituição alegretense que permanecia em pé (sentada, no caso), impondo-se ao onívoro dragão que o poeta Hélio Ricciardi chamou de Já-Teve.

Não tinha mudado nada, ou melhor, se não na figura, mudara em outro sentido: carregava mais sacos do que antes. Era uma evidência de prosperidade e tenho dúvidas de que se possa dizer o mesmo da cidade que o desprezava.

Se bem que o Batata, esse Dorian Gray do Ibirapuitã, podia ser a encarnação do Já-Teve: também os dragões não envelhecem. Quem garante que não estivesse a acumular em sua suspeita sacaria toda a riqueza que, ano a ano, a cidade vem perdendo – sua lavoura, seu comércio, seus pecuaríssimos negócios –, e até mesmo sua população?

É uma teoria.

Se confirmada, imagine-se como poderá ser a nossa Londres do Futuro, no fim do século. Um lugarejo deserto e o vento assobiando nas varandas, a carregar folhas secas pelas ruas e fazendo vibrar as últimas vidraças, atrás das quais vinga uma vegetação mirrada e sem nome. De vez em quando um estrondo: uma porta que cai.

De vez em quando um rangido: a tesoura de um telhado que vai cair também. Nem uma alma. Nem um cão vadio. Nem um corvo. Nem mesmo um rato.

E de repente, no fim da rua, contra um horizonte onde se fundem o céu de chumbo e a terra gris, recorta-se a silhueta do dragão – o velho mendigo com sua eterna juventude e já sem sacos, porque, afinal, ele é o dono de tudo.


29 de junho de 2009
N° 16015 - L.F. VERÍSSIMO


Deuses

Se houve ou não fraude nas eleições do Irã ou até que ponto os protestos foram instigados de fora, não sei (afinal, eu não posso saber tudo!), mas a melhor notícia sobre as manifestações de rua naquele país é que elas parecem ter transcendido o mero inconformismo eleitoral.

O candidato derrotado nas eleições, Mousavi, seria melhor do que o Ahmadinejad, o que já não é dizer muito, mas era um produto da mesma ortodoxia e não representava uma mudança muito radical nos costumes políticos do país. Se não fosse uma alternativa aceitável ao atual presidente, com a bênção dos aiatolás, Mousavi nem seria candidato.

Mas pelo menos uma parte dos manifestantes, pelo que se viu e se leu, protestava justamente contra o sistema que dava tal poder sobre a política e a vida dos iranianos a líderes religiosos. Era uma clara manifestação de insurgência secular, de saco cheio com a prepotência teísta.

Uma revolta a ser imitada, para a boa saúde do planeta, onde quer que Deus, nas suas diferentes versões, seja invocado para justificar o obscurantismo e a violência. Principalmente no Oriente Médio, onde os monoteísmos se engalfinham há anos e cada versão de Deus tem suas razões para a intransigência.

Israel é um Estado laico, mas o fundamentalismo religioso aliado à extrema direita, hoje no poder, o leva a comportar-se, muitas vezes, como uma teocracia impiedosa. O Hamas se sobrepôs à secular Autoridade Palestina porque prometia uma violência mais efetiva contra Israel, mas também pelo seu apelo religioso, pela promessa de que tinha um deus forte.

A nação que, de um jeito ou de outro, domina a região, com a bênção dos americanos, a Arábia Saudita, além de ser uma das teocracias mais retrógradas, é uma das últimas monarquias absolutas do mundo. O Irã tem pelo menos a desculpa de que o deus dos aiatolás reina sobre uma república.

Mas isto é um pobre consolo para quem vive num país em muitos sentidos moderno e com uma cultura notável e deve resignar-se a ser tutelado em tudo – da escolha de candidatos à escolha da roupa apropriada – por meia dúzia de clérigos com linha direta para Deus.

Milímetros

Não sei se você se deu conta: o mundo esteve à beira de uma catástrofe nesses últimos dias. Por uma questão de milímetros, a final da Copa das Federações não foi entre África do Sul e Estados Unidos. O que obrigaria todos os cronistas esportivos do mundo a mudar de profissão, ou dedicar-se exclusivamente ao pingue-pongue. Foi por pouco.

domingo, 28 de junho de 2009



Honra ao mérito

A chance de um marceneiro dar aula num mestrado de arquitetura abre debate sobre méritos e talentos

A PARTIR de agora, para você ganhar um título de mestre não será mais necessário entregar aquelas gigantescas dissertações, repletas de citações, rodapés, tudo isso embrulhado na hermética linguagem universitária.

Basta um produto: música, pintura, reportagem, software ou artigo. Muitos de seus professores não ostentarão títulos acadêmicos, alguns deles talvez nem mesmo tenham diploma de ensino superior. Mas, necessariamente, precisa demonstrar reconhecida experiência no mercado de trabalho.

Essa é a consequência de uma portaria anunciada na semana passada, propondo uma nova avaliação para os mestrados profissionalizantes, destinados a pessoas que não querem dar aula nem fazer pesquisa, mas se aprimorar na sua profissão. A residência médica ou um MBA, por exemplo, já valeriam o mestrado.

O ministro Fernando Haddad me diz que, com essas mudanças, será mais fácil colocar nas universidades os talentos do mercado de trabalho, compartilhando sua experiência com os alunos. ""É exatamente o que muitos estudantes esperam de seus cursos, depois que terminam a graduação", explica.

A chance de um sofisticado marceneiro, com seu diploma de ensino médio, dar aula num mestrado de arquitetura de uma USP indica que estamos metidos num interessante debate sobre méritos e talentos.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, voltou a sinalizar, na semana passada, que, além do jornalismo, mais diplomas poderão deixar de ser obrigatórios -arquitetura, administração, educação, economia, e por aí vai.

Se um advogado, devidamente treinado em comunicação, pode trabalhar em jornal, por que um aluno de engenharia não poderia dar aula de física ou matemática numa escola pública? Bastaria que tivesse uma ajuda para saber transmitir seu conhecimento.

Para melhorar as escolas públicas, a cidade de Nova York chama os talentos da sociedade e oferece um curso de didática em apoio -são mandados para os piores lugares. Os resultados são bons, claro. Os alunos gostam de professores que adoram fazer coisas, sejam elas quais forem.

Esse tipo de questionamento pode parecer estranho agora num país elitista dominado por cartórios e corporações. Mas é apenas consequência da velocidade do conhecimento. Essa velocidade se traduziu na quinta-feira com a morte de Michael Jackson: quem deu primeiro a notícia foi um site de celebridades (TMZ).

O debate sobre o mérito profissional e acadêmico aparece das mais diversas formas -e ocorre, em boa parte, porque estamos buscando novas formas de medir eficiência, uma das novidades (embora engatinhando) da administração pública no Brasil.

Na semana passada, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou projeto para contratação de professores. Mas, depois de passar no concurso, terão de fazer um curso. Docentes temporários terão de se submeter a provas -assim como os dirigentes regionais de ensino. Só puderam criar bônus de desempenho para professor porque existem indicadores (trágicos, diga-se) sobre os alunos.

Centros de saúde e hospitais públicos tocados por entidades filantrópicas apanharam de todos os lados, especialmente dos sindicatos e grupos ligados ao PT. Diante dos resultados positivos, inquestionáveis pelos números, o governo federal, comandado pelo PT, chamou algumas dessas organizações para ajudar na gestão de mais hospitais públicos pelo país.

Sabemos que os alunos do ProUni têm desempenho melhor que os alunos regulares; é o que já constamos com os cotistas das universidades. Os números desmontam assim bobagens sobre o risco desses jovens piorarem a vida acadêmica. É o contrário.

Estão mudando os critérios para entrada no vestibular porque se considera que o mérito não está em decorar informações, mas desenvolver uma rede de habilidades e competências; premia-se quem aprende a aprender. O mercado premia quem aprende a fazer.

Essas mudanças são resultado previsível das sociedades democráticas em que se exige mais transparência, todos têm de dar conta de seus atos e, portanto, são mais avaliados e fiscalizados -e aí vai dos familiares de Sarney, no Senado, aos professores, montados em seus títulos.

Não é à toa que, cada vez com mais intensidade, a sociedade olha desconfiada os privilégios das corporações, seja de políticos, seja de professores, seja de jornalistas.

A recente greve da USP se desmoralizou porque uma das suas principais causas era a readmissão de um funcionário que teria sido demitido por justa causa em qualquer empresa; daí a novidade de alunos se rebelarem contra a greve.

PS- É um movimento mais rápido do que se imagina. É por isso que José Sarney, acostumado a ver há tanto tempo aquelas mamatas do Congresso, não poderia imaginar que uma bomba explodiria em seu colo -a tal ponto que, na semana passada, cresceu a pressão por sua renúncia. Não é o Senado que piorou, mas a fiscalização que melhorou.

gdimen@uol.com.br


Certeza da incerteza

No mundo atômico, são probabilidades que contam, não medidas precisas

Todo mundo gosta de ter certeza, de estar sempre certo, de acertar. Para muita gente, principalmente aquelas pessoas que chamamos de teimosas, ou, em casos mais drásticos, de arrogantes, incertezas e dúvidas refletem uma espécie de fraqueza de caráter.

Infelizmente, saber aceitar que é perfeitamente razoável não sabermos tudo, que não precisamos estar sempre certos, requer uma boa dose de humildade.

Especialmente quando você é daquelas pessoas que, de modo geral, estão sempre certas, sabem o que querem e não têm paciência para incertezas e imprecisões.

Esse tipo de personalidade aparece com frequência por toda parte: nos esportes (como o técnico de vôlei da minha adolescência), nos escritórios e hospitais e, claro, nas universidades.

O grande matemático e físico francês Pierre-Simon de Laplace, que viveu no final do século 18, acreditava tanto na física de Newton que dizia que uma supermente que soubesse as posições e velocidades de todos os átomos que existem poderia usar as leis da mecânica para prever o futuro.

Por exemplo, a mente poderia prever que você estaria lendo essa coluna, qual trecho dela estaria lendo etc. Esse determinismo era o emblema do Universo-relógio, onde tudo estaria predeterminado pelas leis da física.

Claro, nem todo mundo gostou da ideia. O Romantismo, por exemplo, foi uma reação ao racionalismo exagerado do Iluminismo.

Qual era lugar do livre arbítrio, do amor, da dúvida, nesse cosmo-máquina? Segundo esse ultrarracionalismo, incertezas são apenas produto da nossa incapacidade de construir uma mente poderosa o suficiente para englobar toda a realidade.

Laplace afirmaria que quanto mais avançarmos o nosso conhecimento, menores serão nossas incertezas sobre o mundo. Imagino que ele ficaria chocado com o que ocorreu no início do século 20, cem anos após a sua morte. Era o tempo da mecânica quântica e da relatividade, onde a noção de saber absoluto foi profundamente questionada.

Especialmente na mecânica quântica, o princípio de incerteza, proposto por Werner Heisenberg em 1927, expressa precisamente a impossibilidade de obtermos informação com precisão absoluta em sistemas de dimensões atômicas.

O princípio, em sua versão mas simples, afirma que é impossível medirmos a velocidade e a posição de uma partícula com precisão arbitrária: quanto maior a precisão na medida da posição, menor a precisão na medida da velocidade.

Lembrando que posição e velocidade são exatamente as quantidades de que a supermente precisaria para os seus cálculos determinísticos, vemos que a noção de um determinismo absoluto teve de ser abandonada. No mundo atômico, são probabilidades que contam, não certezas.

A perda de precisão absoluta, a substituição de certeza por probabilidade, incomodou (e incomoda) muita gente. Einstein, por exemplo, morreu convencido de que a teoria quântica, apesar de extremamente bem sucedida em explicar os átomos e suas propriedades, não era a palavra final.

Tal como a sua teoria da relatividade veio a generalizar a teoria da gravidade de Newton, ele estava convicto de que uma teoria mais profunda tomaria conta das incertezas quânticas. Muita gente procurou (e procura) por essa teoria, até agora sem sucesso.

De fato, experimentos demonstram que a teoria quântica tal qual a conhecemos hoje é mesmo muito eficiente. Por outro lado, existem ainda muitos mistérios em sistemas quânticos. Mas acho difícil que as incertezas desapareçam. Melhor que seja assim, para mantermos nossa humildade perante a natureza.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"

FERREIRA GULLAR

No país dos suspensórios

Pergunto: pode continuar fazendo leis quem não as respeita? Lei é para os outros...

UM NÚMERO CONSIDERÁVEL de bandidos presos recentemente (por assalto a banco, sequestro, latrocínio) estava em ação ou por efeito de progressão da pena ou de prisão albergue ("trabalham" de dia e voltam para dormir na prisão) ou estavam em liberdade graças a habeas corpus, isto é, por decisão de algum juiz.

A última notícia é que Elias Maluco, o assassino do jornalista Tim Lopes, em breve ganhará as ruas valendo-se da decisão do Supremo que concedeu o benefício de progressão da pena aos autores de crimes hediondos. Por isso é que muitos policiais dizem que a tarefa arriscada, que cumprem, de prender bandidos, equivale a enxugar gelo.

Enquanto o deputado Paulo Maluf apresenta, na Câmara, um projeto para intimidar os membros do Ministério Público, outros deputados governistas procuram impedir que o TCU intervenha na execução de obras públicas fraudadas. É que ainda há pouca corrupção no país.

Dezoito deputados estaduais do Paraná tiveram a carteira de motorista cassada pelo Detran, tantas foram as transgressões que cometeram. Carli Filho, como se vê, é apenas um exemplo entre muitos. Então, pergunto: pode continuar fazendo leis quem não as respeita? Sabe-se agora que o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, também do Paraná, teve sua carteira cassada por excesso de multas. Lei é para os outros...

Para o governo, praticamente não há inflação mas, segundo a Maria, minha secretária, o leite longa vida subiu de R$ 1,70 para R$ 2,80 ou R$ 3; o leite em pó, de R$ 4,50 para R$ 5,40 ou R$ 6,20; o açúcar, de R$ 0,80 para R$ 2,50; o tomate, R$ 1,50 para R$ 2,80 ou R$ 3.

Isso me lembra uma época distante, quando os índices de inflação divulgados pelo governo eram sempre mais baixos que a inflação real; é que, para calculá-los, incluía o preço dos suspensórios e de outros artigos que já quase ninguém comprava. Quais serão os suspensórios de hoje, não sei, mas que entram nos cálculos da inflação não tenho dúvida.

Com apoio do Ministério da Igualdade Racial, transita no Congresso um projeto de lei que obriga a contratação de 10 por cento de negros como modelos dos desfiles de moda e de atores nos filmes de publicidade. E os índios, não têm direito a cota? A impressão que dá é de que os defensores da igualdade racial estão tratando os índios de modo desigual.

Raramente se vê a CUT -tão atuante antes do governo Lula- vir à rua para protestar contra algo, a não ser quando sente seus privilégios ameaçados, como no caso da proposta de revogação do Imposto Sindical. E não é que, outro dia, mobilizou seu pessoal para protestar contra a criação da CPI da Petrobras?

A rigor, o que a CUT tem a ver com isso? Aliás, por que tanto medo de uma CPI, cuja presidência e relatoria são do governo, que detém, na proporção de oito por três, a maioria de seus membros? Mas não é só a CUT.

O próprio governo quer impedir de todos os modos que essa CPI funcione. Ou muito me engano, ou alguma coisa extremamente grave se oculta detrás de tanto temor.

Ultimamente, nos tribunais, réus, livres de algemas, avançam sobre os juízes para agredi-los. É que o STF proibiu algemá-los. Justiça avançada, essa nossa!

Cismado que sou com o mal uso do nosso idioma, gostei de ouvir, por duas vezes um locutor de televisão dizer que alguém, acidentado, "não corre risco de vida", em vez de "não corre risco de morte", expressão forjada por algum redator obtuso. Naquela noite, fui dormir aliviado.

Para a alegria da torcida, o árbitro que apitou o jogo Brasil X Egito marcou pênalti a nosso favor, aos 45 minutos do segundo tempo e, assim, vencemos a nossa primeira disputa na Copa das Confederações. Ele não viu que a bola fora defendida com o braço por um jogador egípcio.

O jogo teria, portando, terminado injustamente empate, não fora alguém o ter informado pelo ponto eletrônico. A tecnologia salvou o espetáculo. Não dá para entender por que a Fifa não adota recursos tecnológicos para evitar erros graves na arbitragem, como já fazem outros esportes?

Em mais um desastrado pronunciamento, Lula opinou contra os que, no Irã, acusam de fraudada a vitória de Ahmadinejad. Afirmou que, como no futebol, aquilo era choro de derrotado. A verdade é que as manifestações continuaram.

Custa crer que tanta gente insista em enfrentar a brutalidade da repressão policial, sem ter sérias razões para isso. Muitos governos democráticos condenaram a repressão, que prendeu e matou manifestantes. Obama disse ter dúvidas quanto à lisura do pleito. Lula, não, está com Ahmadinejad e não abre.

JULIO ABRAMCZYK - COLUNISTA DA FOLHA

A realidade da morte

A repercussão provocada pela morte (aparentemente súbita) de Michael Jackson está relacionada não só à perda sentida pelos seus admiradores mas igualmente ao fato de que o acontecimento, atingindo uma personalidade pública, nos remete rapidamente à realidade de que podemos morrer.

Segundo o professor Franklin Santana Santos, da disciplina de emergências clinicas do HC/FMUSP, a morte permanece uma figura sombria para muitas pessoas, cuja existência só é levemente por elas percebida.

No livro "A Arte de Morrer Visões Plurais", Santos analisa os aspectos culturais da morte e explica que ela mexe com a questão que mais inquieta a humanidade: a sobrevivência pós-morte. Para o médico, se não podemos esquecê-la ou negá-la, gostaríamos de pelo menos controlá-la através dos avanços médicos.

Entretanto, apesar de negarmos a morte de todas formas possíveis, a morte insiste em fazer parte do nosso dia a dia: ela invade a nossa vida pelo rádio, pelos jornais e pelo noticiário da televisão.

ROBERT MCCRUM
Ao mestre, com carinho

TRINTA E OITO ANOS MAIS JOVEM QUE T.S. ELIOT E HOJE COM 82 ANOS, A VIÚVA DO POETA, VALERIE, PREPARA A EDIÇÃO DE BILHETES E RECORTES DO CASAL, EM QUE REVELA A VIDA SÓBRIA E APAIXONADA QUE LEVAVAM

Casamento feliz

"Um fotógrafo do "Daily Express" nos flagrou no saguão nesta noite, e um homem do "Daily Mail" nos perseguiu até Roquebrune! Lua de mel maravilhosa, exceto por TSE ter contraído uma gripe e rachado um dente." Após a morte de Eliot, ela disse à BBC: "Ele obviamente precisava de um casamento feliz. Não morreria enquanto não o tivesse. Havia dentro dele um garotinho que nunca se libertara."

Apesar dos 38 anos de diferença entre eles, o segundo casamento de Eliot lhe trouxe a realização plena. Rosemary Goad diz: "Ele foi completamente rejuvenescido por Valerie".

Tendo feito parte do quadro de profissionais da Faber muito tempo depois da morte de Eliot, recordo-me de seu editor americano, Robert Giroux, me contando sobre a primeira visita feita pelos Eliot a Nova York, recém-casados.

No dia depois de chegar à cidade com sua jovem mulher, o escritor famoso telefonou para seu editor para fazer apenas um pedido: o hotel era ótimo, mas eles queriam uma cama de casal.

Todos concordam que Eliot encontrou enorme prazer em sua vida conjugal com Valerie, tendo escrito em um poema posterior ("A Dedication to My Wife", Uma Dedicatória a Minha Mulher) sobre "amantes cujos corpos cheiram um ao outro".

Nos cadernos de recortes, o casal reuniu uma série de suvenires ternos e mundanos, exemplares de papel de parede de quartos, bilhetes rabiscados em programas de teatro, recortes de jornais cuidadosamente datados e cardápios anotados de jantares requintados ("Valerie pediu crepe suzette").

Teatro e dança

Em festas literárias, os convidados observaram, fascinados, a figura cadavérica do poeta de mãos dadas com sua mulher jovem, loira e de seios fartos. Valerie, por sua parte, estava sempre a postos para afastar atenções indesejadas.

Os cadernos de recortes também trazem evidências de que Eliot, além de marido e amante, fez o papel de mentor e figura paterna para Valerie. Eles geralmente ficavam em casa à noite, mas, quando iam ao teatro, ele fazia anotações cuidadosas nos programas.

Depois de assistir a "Beyond the Fringe" [Além da Margem], Eliot rabiscou no verso de seu programa: "Quarteto de jovens espantosamente vigoroso: o espetáculo é ágil e bem produzido, um misto de brilhantismo, juvenilidade e mau gosto".

Observou especialmente Peter Cook e Alan Bennett, concluindo que "é agradável ver esse tipo de entretenimento sendo tão bem sucedido". Em outro recorte, ele diz ao "Daily Express": "Estou pensando em fazer aulas de dança outra vez, já que não danço há alguns anos". A alegria recém-encontrada na vida de Eliot se manifesta em seus trabalhos posteriores.

Na época de seu casamento, ele estava concluindo uma peça nova, "The Elder Statesman" [O Velho Estadista], em que uma figura pública sênior é comparada a um bicho-da-seda que durante anos sobrevive à base de folhas de amoreira muito amargas.

Sua filha lhe diz que é hora de desistir dessa dieta e sair para o mundo, como uma borboleta. A tragédia da felicidade recém-encontrada de Eliot foi que sua saúde, que nunca fora boa, estava começando a se enfraquecer.

Na Londres fria e poluída do pós-guerra, sofreu gravemente de gripe e bronquite, e seu coração era fraco. Valerie organizou as coisas para que Eliot tirasse férias durante o inverno, para convalescer, nas Bahamas e no Caribe.

Os cadernos deles contêm muitas fotos que os mostram relaxando ao sol. Eliot, de colete e boina branca de golfe, pode ter as barras das calças enroladas para cima, mas mesmo assim parece desajeitado e deslocado, como um bancário numa festa.

Além de visitas anuais à Jamaica, Valerie levava Eliot para passar períodos com sua mãe idosa em Leeds. Previsivelmente, a sra. Fletcher ficava maravilhada com seu genro e impressionada com sua aparência, que descrevia como "virginal".

Em junho de 1964, Eliot fez sua última visita a Leeds, cidade da qual aprendera a gostar.

Em outubro daquele ano, mergulhou num coma do qual não se previa que acordasse. Valerie segurou sua mão durante uma vigília que atravessou a noite, e, pela manhã, ele recobrou consciência.

Mais tarde, ela contou ao "Observer" que "ele me olhou como quem dissesse "consegui!'", e ela o levou para casa, em Kensington. Quando atravessou a soleira do apartamento, carregado, ele exclamou "viva, viva, viva!", e durante algum tempo recobrou suas forças.

Mas vivia à base de oxigênio, e no Natal seu coração começou a fraquejar novamente. Segundo Peter Ackroyd, cujo relato não autorizado da vida de Eliot ["T.S. Eliot", ed. Penguin] é de longe o melhor que está disponível, o poeta saiu de seu coma final para pronunciar o nome de Valerie e então morreu, em 4 de janeiro de 1965.

Valerie tinha 38 anos quando ele morreu. Durante anos guardou o apartamento deles em Kensington como santuário à memória de Eliot, sem mudar nada, chegando a guardar os frascos de oxigênio dos seus últimos dias de vida.

Extrato do caderno mais da folha de hj - O que o amor não faz na vida de duas pessoas não é..?

DANUZA LEÃO

Vício maldito

O fumo é um veneno, e quem fuma vai um dia pagar caro por ter achado alguma graça em acender um canudinho

É INACREDITÁVEL que a medida do governo de São Paulo proibindo o fumo em lugares fechados tenha sido contestada pela Justiça. Isso na contramão do mundo inteiro, que vem fazendo tudo que é possível para coibir o vício do fumo.

O fumo é um veneno, e quem fuma vai um dia pagar caro por ter achado alguma graça em acender um canudinho de papel cheio de porcarias, inalar a fumaça direto para os pulmões e depois soprar de novo a fumacinha; no mínimo, ridículo.

Nos anos 40, todos os filmes mostravam os atores e atrizes fumando, e isso fazia parte do glamour da época. Lembro da cena de um filme em que o ator punha dois cigarros na boca, acendia os dois e passava um deles para a atriz com quem contracenava.

Quanta burrice; quanta ignorância. Eu também fui burra e ignorante durante anos, e apesar de ter sido alertada por tanta gente, só parei de fumar no tranco, isto é, quando meus pulmões pediram socorro.

Fumar é um vício miserável, mais difícil de ser deixado do que qualquer droga pesada. Porque para comprar cigarros não é preciso subir o morro, procurar um traficante e ainda se arriscar a ser preso. Um maço de cigarros não custa quase nada, pode ser comprado na esquina, e fumar não é crime -ainda. Mas os fumantes já começam a ser olhados com maus olhos, e a verdade é que esse vicio é bem nojento.

Está aí uma coisa de que me arrependo muito: ter sido fumante. Quando vou subir uma escada ou mesmo uma pequena ladeira, e tenho que parar para respirar, sinto muita vergonha. Como eu gostaria de ser lépida e ligeira como já fui; e sei que a culpa disso não tem outra origem a não ser o cigarro.

É um suicídio lento, e o pior é que não costuma adiantar dizer aos jovens que não entrem nessa porque é uma roubada. Será que é preciso sentir os efeitos da droga para começar a tentar parar? Eu sei que não é fácil, mas não é possível que só a maturidade ensine coisas tão óbvias.

Ouvi dizer que os cigarros estão custando mais caro; pois deviam custar mais caro ainda. Uns R$ 50 por maço seria um preço razoável. E eu queria saber o que passou na cabeça desse juiz -ou desses juízes- que decidiu ser ilegal a medida do governo de proibir o fumo em lugares públicos fechados. Se os fumantes são uns idiotas -tanto quanto eu fui-, não sei o que dizer dessa Justiça que foi contra a medida. A indústria é poderosa, mas está se ferrando no mundo todo; e tomara que se ferre mais ainda.

Que vergonha eu tenho do tempo em que me achava moderna e rebelde e fazia a apologia do fumo. E que raiva eu tenho de mim mesma, quando quero andar mais rápido e não consigo, porque minha respiração falha. Como é que alguém pode fazer mal a si mesma? Por que, a troco de que, se os primeiros cigarros são tão desagradáveis e é preciso insistir para conseguir fumar, se achando o máximo, glamourosa e adulta?

Quando passo pela porta de um shopping e vejo umas pessoas fumando, já que no interior do shopping é proibido, tenho que me conter para não parar, sacudir uma delas pelos ombros e dizer "não seja idiota, pare com isso antes que seja tarde", mas sou obrigada a me controlar, pois não pegaria nada bem fazer isso.

Imagino que, se você me leu até agora, é porque não é fumante; se fosse, já teria passado para outra página do jornal.

Mas imagino também que você seja pai ou mãe de um jovem fumante e que gostaria muito que seu filho ou filha deixasse o vício. E não sei mais o que dizer, pois falar não costuma adiantar.

danuza.leao@uol.com.br

sábado, 27 de junho de 2009



28 de junho de 2009
N° 16014 - MARTHA MEDEIROS


Os ausentes

Não importa a situação: saiu de casa, esforce-se. Não precisa virar o mestre-de-cerimônias da noite, ao menos agracie seus semelhantes com dois ou três sorrisos. Não dói

EU não assisti ao programa, mas soube da história. O jornalista David Letterman recebeu Joaquim Phoenix para uma entrevista. O ator fez jus à fama de bad boy: não parou de mascar chiclete e só respondia com monossílabos e grunhidos, não facilitando o andamento da conversa. Letterman tentou, tentou, e como não conseguiu arrancar nada do sujeito, encerrou a entrevista com uma tirada ótima: Joaquin, uma pena que você não pôde vir esta noite.

Quando uma pessoa se dispõe a dar uma entrevista, tem que entrar no jogo: responder com generosidade ao que foi perguntado e valer-se de uma educação básica, caso tenha. É bom lembrar que a maioria das entrevistas não é feita apenas para dar ibope ao programa, e sim para ajudar na divulgação de algum projeto do convidado.

Ambos saem ganhando. Só quem não ganha é a plateia quando o convidado finge que está lá, mas não está. Madonna é até hoje o trauma da carreira de Marilia Gabriela, pelos mesmos motivos.

Claro que há quem defenda a atitude de Phoenix com o argumento da “autenticidade”, mas existe uma sutil diferença entre ser autêntico e ser grosso. É muita inocência achar que podemos prescindir de uma certa performance social. Espero não estar ferindo a sensibilidade dos “autênticos”, mas de um teatrinho ninguém escapa, a não ser que queiramos voltar a viver nas cavernas.

Não sou de me irritar facilmente, mas acho um desrespeito quando uma pessoa faz questão de demonstrar que não compactua com a ocasião. São os casos daqueles que se emburram em torno de uma mesa de jantar e não fazem a menor questão de serem agradáveis. Pode ser num restaurante ou mesmo na casa de alguém: estão todos confraternizando, menos a “vítima”, que parece ter sido carregada para lá à força. Às vezes, foi mesmo.

Sabemos o quanto uma mulher pode ser insistente ao tentar convencer um marido a participar de um aniversário de criança, assim como maridos também usam seu poder de persuasão para arrastar a esposa para um evento burocrático. Não importa a situação: saiu de casa, esforce-se. Não precisa virar o mestre-de-cerimônias da noite, mas ao menos agracie seus semelhantes com dois ou três sorrisos. Não dói.

Dentro da igreja, ajoelhe-se. No estádio de futebol, grite pelo seu time. Numa festa, comemore. Durante um beijo, apaixone-se. De frente para o mar, dispa-se. Reencontrou um amigo, escute-o.

Ou faça de outro jeito, se preferir: dentro da igreja, escute-O. Durante um beijo, dispa-se. No estádio de futebol, apaixone-se. De frente para o mar, ajoelhe-se. Numa festa, grite pelo seu time. Reencontrou um amigo, comemore.

Esteja! Se não quiser participar, tudo bem, então fique na sua: na sua casa, no seu canto, na sua respeitável solidão. Melhor uma ausência honesta do que uma presença desaforada.

Um ótimo domingo minha amiga, este que é o último de junho de 2009.


28 de junho de 2009
N° 16014 - MOACYR SCLIAR


Vive la France

NA Faculdade de Medicina, tive um professor que era capaz de dar uma aula inteira em francês. Francês era também o primeiro manual que usávamos no curso médico, o tratado de anatomia de Testut-Latarjet. E era em francês que dizíamos frases célebres, como: Dans la médécine comme dans lamour, ni jamais, ni toujours na medicina, como no amor, nem sempre, nem nunca.

Medicina e amor, ciência e sentimento: a cultura francesa era um mundo, e não é de admirar a vasta influência que teve no Brasil e em outros países, através de cientistas, como Louis Pasteur, o pai da microbiologia, de artistas como Cézanne, de escritores como Balzac, Victor Hugo, Flaubert, de poetas como o Baudelaire de Fleurs du Mal, com aquele verso que sintetiza toda a angústia do fazer literário:

“Hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!” (800 mil referências no Google): sim, o leitor é um hipócrita, mas é também, para o poeta, “meu semelhante, meu irmão”: uma relação ambígua, torturante e inspiradora.

E havia ainda o aspecto político. Para minha geração de jovens esquerdistas, a revolução francesa de 1789 (que fará 220 anos no próximo 14 de julho) era tão importante quanto a revolução russa de 1917. Com a mesma emoção com que entoávamos o hino da Internacional comunista (“De pé, ó vítimas da fome”), cantávamos a Marselhesa: “Às armas, cidadãos/ formai vossos batalhões”. Uma tradição que se continuou em intelectuais como Jean-Paul Sartre, para nós um símbolo de coragem e de coerência.

Claro, nem todos os franceses eram Sartre; durante a guerra muitos colaboraram com os nazistas, incluindo o excepcional escritor Louis-Ferdinand Céline. Mas isso, para nós, era apenas a exceção que confirmava a regra. A França era a nossa pátria espiritual.

Sobretudo Paris. Ah, Paris era o imã que atraía milhares de jovens, sobretudo os artistas, os escritores, os poetas. A “lost generation” americana (Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound, John Dos Passos, T. S. Eliot, Gertrude Stein) ali passou boa parte dos “loucos anos vinte”. Para nós, conhecer, Paris era um sonho.

O Quartier Latin, a Torre Eiffel, o Marais, Montmartre, o Louvre, a Saint Chapelle, o Sena, a Rive Gauche, sem falar em lugares surpreendentes, como o cemitério dos animais em Asnières-sur-Seine, onde estão enterrados mais de 40.000 bichos de estimação: gatos, cachorros, coelhos, peixes, um leão, muitos deles em túmulos belamente decorados.

Paris foi durante muito tempo a capital do mundo e conserva ainda esse mágico encanto, coisa que este notável jornalista que é Fernando Eichenberg, e que lá mora, nos lembra periodicamente. Aliás, tivemos e temos grandes divulgadores da cultura francesa aqui em Porto Alegre, como os professores Jean Roche e Ketty Nahoum.

Voltando aos tempos de colégio: lembro o professor Lovato, do Júlio de Castilhos, recitando com emoção os versos de Alfred de Vigny, evocando a medieval batalha de Roncevaux, na qual morreu o guerreiro Roland: “Roncevaux! Roncevaux! dans ta sombre vallée/ L’ombre du grand Roland n’est donc pas consolée?”.

Não, no sombrio vale de Roncevaux, a sombra do grande Roland não encontra consolo. Ele sente muita falta da “douce France”, a França que acalentou os sonhos do nosso mundo.


28 de junho de 2009
N° 16014 - PAULO SANT’ANA


O abraço de Dilma

F ui sexta-feira à inauguração do monumental Parque Gráfico Jayme Sirotsky, da RBS, nas imediações do aeroporto.

Eu não poderia ir porque tinha de escrever a coluna de sábado e esta que estão lendo, mas me senti realizado durante os 90 minutos da cerimônia.

É que eu testemunhei o drama do Nelson Sirotsky, que até quinta-feira estava enfermo, totalmente gripado, com febre de 40 graus e o pior para quem tinha de fazer o discurso de inauguração diante do presidente Lula: estava totalmente sem voz.

Pois com o auxílio de médico e de medicamentos, o Nelson acabou se curando parcialmente e pronunciando o discurso, com excelência de conteúdo e dicção.

Alguns detalhes à margem da cerimônia: quando as autoridades foram chamadas ao palco, a ministra Dilma Rousseff sentou na fila da frente das autoridades, na poltrona que lhe cabia.

Mal sentou, levantou-se, desceu três lances de escada e se dirigiu a mim, que estava sentado em um poleiro. Disse-me a ministra Dilma: “Rale-se o protocolo, Sant’Ana, eu quero te abraçar”.

E eu respondi a ela num entusiasmo temerário: “Que Deus lhe dê saúde para este e outros dois governos”.

O presidente Lula ouvia atentamente os discursos que antecediam o dele.

Batia tremulamente com o pé direito no chão, impulso que me pareceu de nervosismo.

Além disso, por vezes Lula cofiava com dois dedos seu bigode.

E sete poltronas além da dele refulgia a beleza do rosto de Dilma Rousseff, restaurado belamente por uma plástica. Se a ministra tiver a gentileza de me dizer quem foi seu cirurgião, mande-me o nome, que eu também vou restaurar minha lataria com o mesmo dono do bisturi.

E, no fim da cerimônia, o presidente Lula, entre os homenageados, avistou-me e disse: “Sant’Ana, dá cá um abraço”.

Eu juro que não sabia que ele me conhecia.

Foi uma notável cerimônia, organizadíssima, acho que só por ela os atos anuais de jubilação dos funcionários da RBS foram levemente superados.

Desculpem, mas não posso deixar de incorrer em nepotismo afetivo: acontece que no Caderno Kzuka de ZH, sexta-feira, foi publicado um texto do meu neto Gabriel Sant’Ana Wainer, que tem apenas 17 anos de idade. Vou transcrevê-lo a seguir. Como conheço a capacidade de meu neto, posso afiançar que este texto faz terceiro lugar na lista dos seus mais notáveis.

Ei-lo: “Gosto muito desta teoria. Aquelas pessoas que são sempre simpáticas com todo mundo, pra mim, têm algum problema que não querem mostrar. Claro, não sejamos hipócritas, não é possível alguém gostar de todo mundo. E não me venham com essa de que ser simpático com todos é uma questão de educação. Até porque sinceridade e transparência também o são.

Há pessoas com as quais simplesmente não se vai com a cara, e não tem nada de errado nisso. Não gostar de alguém é um direito. Imaginem se nós todos gostássemos de todo mundo, que mundo insuportavelmente agradável e gracioso seria esse.

Ninguém falando mal de ninguém, as pessoas todas de caras boas e sorridentes, todo mundo se cumprimentando gentil e educadamente. Que inferno! Se não existisse a antipatia, não haveria a simpatia.

Assim como, se não houvesse o barulho, não haveria o silêncio; sem o escuro não teríamos o claro; sem o salgado não existiria o doce e sem o feio não haveria o bonito. Tudo na vida tem suas compensações, e a simpatia não é exceção à regra.

Simpatia seletiva, porque não dá pra ser legal com todo mundo, não é?” Assinado: Gabriel Sant’Ana Wainer, 17 anos, aluno do 2º ano do Colégio Lourenço Castanho, de São Paulo. Leia mais textos do Gabriel no www.kzuka.com.br/andeipensando.


28 de junho de 2009
N° 16014 - DAVID COIMBRA


O mestre-sala dos mares

O bandido apanhava uma corda mediana de linho, atravessava-a de pequenas agulhas de aço das mais resistentes e, para inchar a corda, punha-a de molho, com o fim de aparecerem apenas as pontas das agulhas.

A guarnição formava e vinha, então, o marinheiro faltoso, algemado. O comandante, depois do toque de silêncio, lia a proclamação. Tiravam as algemas das mãos do infeliz e o suspendiam, nu da cintura para cima, no ferro que se prende à balaustrada do navio.

E então Alípio começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente gemia, suplicava, mas o facínora prosseguia. Os tambores, batidos com furor, sufocavam os gritos. Muitos oficiais voltavam o rosto para o lado. A marinhada, possuída de repulsa e de profunda indignação concentrada, murmurava: “Isso vai acabar.”

Quem eram os homens supliciados por Alípio? Negros, quase todos. Negros. Ex-escravos ou filhos de escravos que encontravam na Marinha sua única chance de sobrevivência. Muitos viam-se conscritos à força, arrebanhados nas localidades pobres quando tinham 10 ou 12 anos de idade. Depois de alistados, passavam 15 anos em serviço, recebendo soldos miseráveis e punições desumanas.

Negros eles eram. Eis porque os açoitavam com tanta crueldade. A lei brasileira só permitia 25 chibatadas, mas houve casos de faltas serem punidas com até 300. Ninguém reagia. Porque eles eram negros.

Conto isso para que se entenda a reação explosiva ocorrida no país devido ao caso Elicarlos versus Maxi López, dias atrás. Relembro: Maxi López teria chamado Elicarlos de “macaco” durante o jogo do Cruzeiro com o Grêmio. Não sei se é verdade, talvez não seja. Falo da reação. É positiva. Porque, agora, os negros reagem.

A primeira vez que reagiram, na história da República, foi justamente na época de Alípio. Na noite de 22 de novembro de 1910, um marinheiro havia sido condenado a levar 250 chibatadas no convés do Minas Gerais. Em meio ao martírio, ele desmaiou. Alípio continuou com o castigo.

Entre os marinheiros que assistiam à tortura estava o gaúcho João Cândido. Negro, alto, filho de ex-escravos, João Cândido era analfabeto, mas as viagens internacionais tinham lhe emprestado certo lustro. Aos poucos, começou a cevar a rebelião entre os marinheiros. Devia ser deflagrada no fim do mês, mas o castigo brutal que Alípio impôs ao seu colega antecipou tudo.

Naquela noite, o mais delicado creme da sociedade estava reunido nos salões do Clube da Tijuca, no Rio, para os festejos da posse do presidente Hermes da Fonseca. Em meio à apresentação da ópera Tannhauser, de Richard Wagner, um estrondo arrancou guinchos das damas e calou os instrumentos – um tiro de canhão fora disparado contra a Capital. A bala partira do Minas Gerais.

Era a Revolta da Chibata.

Depois de alguns dias ameaçando bombardear o Rio, os amotinados venceram. A punição pela chibata foi abolida e eles receberam anistia. Mas a traição estava preparada. Nos dias seguintes, o governo brasileiro engendrou sua vingança. Os marinheiros passaram a ser perseguidos, demitidos e presos. Assustados, reuniram-se na Ilha das Cobras para tentar se arregimentar. A Marinha aproveitou para bombardeá-los.

Mais de 500 morreram no ataque. Outras centenas viram-se enviadas ao degredo na Amazônia. João Cândido foi preso com outros 17 marinheiros. Na noite de Natal, os encarceraram numa cela minúscula com o chão coberto por água e cal. Ao amanhecer, 16 homens jaziam mortos. João Cândido sobreviveu para ser encerrado em um manicômio.

A mulher e a filha de João Cândido se suicidaram. Ele morreu em 1969. Em 24 de junho, completaria 129 anos. Na década de 70, João Bosco e Aldir Blanc teceram uma das mais belas composições da MPB em sua homenagem, O Mestre-Sala dos Mares. A ditadura militar não gostou da letra que tecia loas a um sublevado. Abaixo, a letra original, com as mudanças assinaladas:

Há muito tempo,

Nas águas da Guanabara,

O dragão do mar reapareceu,

Na figura de um bravo marinheiro,

A quem a História não esqueceu.

Conhecido como o Almirante Negro,

Tinha a dignidade de um mestre-sala,

E ao acenar pelo mar

Na alegria das regatas,

Foi saudado no porto

Pelas mocinhas francesas,

Jovens polacas

E por batalhões de mulatas!

Rubras cascatas

Jorravam das costas dos negros

Entre cantos e chibatas

Inundando o coração

Do pessoal do porão

Que a exemplo do marinheiro

Gritava: Não!

Glória aos piratas, às mulatas,

Às sereias!

Glória à farofa, à cachaça,

Às baleias!

Glória a todas as lutas inglórias

Que através da nossa História

Não esquecemos jamais!

Salve o Almirante Negro

Que tem por monumento

As pedras pisadas do cais

A censura pediu mudanças, e mudanças foram feitas. Só que os censores nunca se satisfaziam. Aldir Blanc tirava as referências ao sangue, à Marinha, e nada de os censores aprovarem. Até que ele perguntou:

– Mas o que é que vocês querem exatamente? E a resposta do censor, direta e lacerante como um golpe de Alípio:

– Sabe o que é? É essa história de negro, negro, negro...Como se vê, existe alguma razão para os negros acalentarem traumas no Brasil.


O papagaio era um gênio

Um livro curioso e divertido conta as façanhas de Alex, a ave que chegou a ganhar um obituário na revista The Economist graças à sua inteligência

Diogo Schelp ´- Rick Friedman/Corbis/Latinstock



UM EINSTEIN COM ASAS

Irene Pepperberg olha embevecida para Alex. Ele sabia contar, nomear cores, formas e materiais. Mais esperto do que muito marido por aí...

A última do papagaio não é piada. É uma história que põe em xeque certezas estabelecidas sobre o que diferencia um homem de um animal.

No dia 20 de setembro de 2007, o obituário da revista inglesa The Economist, uma das peças mais bem escritas do jornalismo, que homenageia personalidades internacionais, como músicos, estadistas e vencedores do Prêmio Nobel, noticiou a morte de um papagaio-cinzento de 31 anos chamado Alex.

Era, de fato, um pássaro especial. Alex tinha habilidades cerebrais que antes se pensava exclusivas dos seres humanos – e, com alguma boa vontade, dos primatas em geral. E, com algum pessimismo, não de todos os homens.

O papagaio sabia contar até seis e fazia cálculos simples, como somar dois mais três. Ele identificava cores e objetos pelo nome e usava corretamente conceitos abstratos como "nada" ou "diferente". Nos últimos anos de vida, Alex demonstrou até ser capaz de perceber a equivalência entre o numeral "6", por exemplo, e meia dúzia de objetos iguais – sem ter recebido treinamento específico para isso.

Os bastidores dos experimentos que revelaram a genialidade desse papagaio estão no livro Alex e Eu (tradução de Marcia Frazão; Record; 240 páginas; 38 reais), de Irene Pepperberg, professora de cognição animal das universidades Harvard e Brandeis, nos Estados Unidos. Você, leitora, trocaria seu marido por um papagaio?

Pois a pesquisadora americana comprou Alex quando ele tinha 1 ano de idade e, nas três décadas seguintes, devotou-se quase integralmente a testar os limites de sua inteligência. Sua dedicação era tamanha que abandonou empregos para realizar seu objetivo – e também o maridão.

Em vez de dona, Irene preferia considerar-se colega de trabalho do papagaio. No livro, que não tem pretensão científica, ela relata a sua convivência com esse adorável, ciumento e mandão a quem deu o nome de Alex. A autora também descreve como foi massacrada por outros cientistas pela ousadia em buscar traços de pensamento em uma ave, recorda a carreira instável e resume de maneira clara suas descobertas científicas.

Mas é nos detalhes da convivência diária com Alex que o relato de Irene seduz e desarma até o leitor mais cético, envolvendo-o em situações divertidas e repletas de demonstrações da inteligência de seu querido papagaio. Alex, por exemplo, usava nos contextos certos expressões como "pão" e "gostoso". Na primeira vez que experimentou um bolo, chamou-o espontaneamente de "pão gostoso".

Manifestações como essa, como a própria Irene reconhece, apesar de surpreendentes, não podem ser facilmente confirmadas dentro das regras rígidas da ciência. Para isso, precisariam ser repetidas dezenas de vezes. No entanto, o fato de Alex ficar entediado com os testes dificultava ainda mais as coisas.

Era comum acontecer de, depois de horas respondendo a perguntas dos pesquisadores, ele se cansar e pedir "quero voltar", para retornar à sua gaiola. Certa vez, Irene tentava apresentar os resultados de seus estudos a potenciais patrocinadores, mas tinha pouco tempo e Alex estava impaciente.

O teste consistia em a pesquisadora mostrar ao papagaio uma bandeja com combinações de letras agrupadas por cor. Irene dizia a cor de um dos grupos de letras e pedia a Alex para responder que som elas formavam: "shh", por exemplo.

Ele acertava as questões, mas antes de passar para a próxima pedia "quero noz". Irene não queria dar-lhe de comer antes de terminar o teste e continuou com as perguntas, até que Alex repetiu: "Quero noz! Nnn... óó... zzz". Ou seja, praticamente soletrou a palavra para a dona, para comunicar com mais ênfase o desejo de comer nozes. Alex não foi condicionado para isso e, aparentemente, conseguiu separar de maneira espontânea os fonemas do vocábulo.

Se houvesse uma boa amostra estatística desse comportamento, isso comprovaria que o papagaio tinha domínio sobre um elemento essencial da linguagem. Como não podia ser replicado, o episódio não tinha valor científico. Para Irene, no entanto, ficou a impressão de sua capacidade para tanto.

Saber o que se passa na cabeça de um papagaio é tão difícil quanto descobri-lo em uma criança pequena. Não dá para perguntar "o que você está pensando" a uma ave, mesmo uma que conhece 150 palavras, como era o caso de Alex, nem a um ser humano de 1 ano de idade e esperar que eles discorram longamente sobre o tema.

Para isso, precisariam ter controle completo de um sistema linguístico – a manipulação de símbolos, como palavras e gestos, para representar a realidade e se comunicar. A teoria mais difundida entre os cientistas, hoje, é que sem linguagem não há pensamento.

Irene Pepperberg e outros estudiosos do comportamento animal tentam mostrar que uma coisa não depende, necessariamente, da outra. Eles têm a seu favor o fato de a ciência já ter revisto algumas vezes o conceito de pensamento.

O atributo que faz do homem um ser único já incluiu habilidades como a de criar ferramentas, antecipar situações, ensinar e se comunicar. Os estudos de comportamento animal iniciados na década de 70 revelaram que essas e outras capacidades cognitivas estão presentes também em chimpanzés e golfinhos.

Antes desse período, predominava a escola comportamental, que considerava os animais não mais do que seres que apenas imitavam o ser humano em algumas de suas atitudes. "Experimentos como os que foram feitos com Alex tornaram obsoleta uma definição absoluta e única de ‘pensar’. O mais apropriado é falar em gradações de raciocínio", diz o neurocientista Renato Sabbatini, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Dito em outras palavras, o raciocínio humano é desenvolvido o suficiente para planejar pontes, aviões, sinfonias e usinas nucleares. Já o do chimpanzé lhe permite usar varetas para roubar mel de uma colmeia, mas não, até onde se sabe, olhar para as conquistas da civilização e matutar: "Puxa vida, eu aqui em cima desta árvore e os humanos dormindo em colchões de mola".

Em um tempo curto de vida, metade da longevidade média de um ser de sua espécie, Alex ajudou a questionar os argumentos normalmente usados para assegurar a superioridade humana sobre as espécies.

Como é possível que uma ave, cujo último ancestral comum ao homem viveu há 280 milhões de anos, conseguisse fazer cálculos simples de adição? No mínimo, isso significa que a evolução criou formas de inteligência em processos paralelos. Um resultado disso são as diferenças entre o cérebro de um primata, grande e com um córtex cheio de dobras, e o de uma ave, pequeno e liso.

Possivelmente, se tivesse vivido mais trinta anos, Alex poderia ter derrubado novas barreiras intelectuais entre bichos e homens. Será necessário estudar outros papagaios para descobrir se Alex era um ponto fora de curva. Se isso for verdade, da mesma forma que não se pode definir a humanidade com base no QI de Albert Einstein, não vai dar para classificar toda a papagaiada segundo os feitos de Alex.

"Alex pensava"

Irene Pepperberg, de 60 anos, passou metade da vida treinando e estudando o papagaio-cinzento Alex. Ao dar a seguinte entrevista a VEJA, por telefone, ela articulou cada palavra como se falasse com um papagaio. Ao fundo, era possível escutar os assovios dos pássaros de seu laboratório, situado nos arredores de Boston.

Qual é a relevância de saber se os animais pensam?
Nós dividimos o mundo com essas criaturas. Precisamos entender tudo sobre elas para que possamos respeitá-las, e não apenas tirar vantagem de sua existência. Há um longo caminho a percorrer nesse sentido.

Alex provou que uma ave com o cérebro do tamanho de uma noz com casca pode fazer as mesmas tarefas que macacos, golfinhos e crianças pequenas. Esse foi um grande avanço.

Alex era um gênio de sua espécie?
Ele foi muito estimulado. Nenhum dos meus outros pássaros, tampouco qualquer outro papagaio em condições de pesquisa, teve o mesmo tratamento. Por quinze anos, Alex foi minha única ave.

Ele interagia com humanos doze horas por dia. Nós conversávamos com Alex constantemente, fazíamos perguntas, comentávamos assuntos entre nós na sua presença e o envolvíamos na conversação. Nós nos detínhamos em cada palavra dita por Alex. Se ele pedia milho, nós dizíamos: "Está bem, você quer milho amarelo? A cor do milho é ‘amarelo’". Isso o ajudava a compreender mais um conceito de cor.

Alex pensava?

Sim. Ele conseguia processar informações de uma maneira muito complexa. Tinha uma capacidade de discernimento que lhe permitia juntar vários de seus conhecimentos para solucionar um problema.

O que significa "inteligência" e "pensar", no caso de Alex?
Quando Alex treinava a compreensão dos números, usava a inteligência. Eu mostrava a ele uma bandeja com números de cores diferentes misturados e perguntava: "De que cor é o seis?". Ele respondia corretamente.

A capacidade de pensar foi revelada em outra situação impressionante. Eu mostrava grupos com dois, três e seis objetos na bandeja, cada um de uma cor, mas Alex só repetia "cinco", justo o número ausente. Eu então lhe perguntei: "Está bem, qual é a cor do cinco?".

E, para minha surpresa, ele respondeu: "Nenhuma". Alex havia assimilado o conceito de ausência de um atributo, que tínhamos aplicado em outros treinamentos, e transferido para a ausência de um objeto. Isso é pensar.

Não com a mesma complexidade que um ser humano, é claro. Não creio que Alex teria sido capaz de aprender quatro línguas, por exemplo, ou ter o tipo de conversa que você e eu estamos tendo.

O fato de reconhecer, no livro, o valor afetivo que o papagaio tinha em sua vida pode ser usado para criticá-la como cientista?
Isso já aconteceu. Um de meus colegas escreveu uma resenha muito negativa de Alex e Eu na revista Nature. Não era o lugar certo para fazer isso. Afinal de contas, trata-se de uma revista científica, e meu livro não é acadêmico, é de memórias.

O argumento do autor foi que, ao falar das minhas emoções, eu invalidei as pesquisas com Alex.

Ele está enganado, porque os meus artigos científicos foram revisados com muito cuidado, saíram em publicações respeitadas e ganhamos prêmios por eles. Nunca deixei cair a barreira da objetividade entre mim e Alex enquanto ele estava vivo.

Lya Luft

Trilha de contradições

"Convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado errado"

"Viver é subir uma escada rolante pelo lado que desce." Já escrevi sobre essa frase. Sim, repito alguns temas, que são parte do meu repertório, pois todo escritor, todo pintor, tem seus temas recorrentes.

No alto dessa escada nos seduzem novidades e nos angustia o excesso de ofertas. Para baixo nos convocam a futilidade, o desalento ou o esquecimento nas drogas. Na dura obrigação de ser "felizes", embora ninguém saiba o que isso significa, nossos enganos nos dirigem com mão firme numa trilha de contradições.

Ilustração Atômica Studio

Apregoa-se a liberdade, mas somos escravos de mil deveres. Oferecem-nos múltiplos bens, mas queremos mais. Em toda esquina novas atrações, e continuamos insatisfeitos. Desejamos permanência, e nos empenhamos em destruir.

Nós nos consideramos modernos, mas sufocamos debaixo dos preconceitos, pois esta nossa sociedade, que se diz libertária, é um corredor com janelinhas de cela onde aprisionamos corpo e alma. A gente se imagina moderno, mas veste a camisa de força da ignorância e da alienação, na obrigação do "ter de": ter de ser bonito, rico, famoso, animadíssimo, ter de aparecer – que canseira.

Como ficcionista, meu trabalho é inventar histórias; como colunista, é observar a realidade, ver o que fazemos e como somos. A maior parte de nós nasce e morre sem pensar em nenhuma das questões de que falei acima, ou sem jamais ouvir falar nelas. Questionar dá trabalho, é sem graça, e não adianta nada, pensamos.

Tudo parece se resumir em nascer, trabalhar, arcar com dívidas financeiras e emocionais, lutar para se enquadrar em modelos absurdos que nos são impostos. Às vezes, pode-se produzir algo de positivo, como uma lavoura, uma família, uma refeição, um negócio honesto, uma cura, um bem para a comunidade, um gesto amigo.

Mas cadê tempo e disposição, se o tumulto bate à nossa porta, os desastres se acumulam – a crise e as crises, pouca trégua e nenhuma misericórdia. Angústias da nossa contraditória cultura: nunca cozinhar foi tão chique, nunca houve tantas delícias, mas comer é proibido, pois engorda ou aumenta o colesterol. Nunca se falou tanto em sexo, mas estamos desinteressados, exaustos demais, com medo de doenças.

O jeito seria parar e refletir, reformular algumas coisas, deletar outras – criar novas, também. Mas, nessa corrida, parar para pensar é um luxo, um susto, uma excentricidade, quando devia ser coisa cotidiana como o café e o pão. Para alguns, a maioria talvez, refletir dá melancolia, ficar quieto é como estar doente, é incômodo, é chato: "Parar para pensar? Nem pensar! Se fizer isso eu desmorono".

Para que questionar a desordem e os males todos, para que sair da rotina e querer descobrir um sentido para a vida, até mesmo curtir o belo e o bom, que talvez existam? Pois, se for ilusão, a gente perdeu um precioso tempo com essa bobajada, e aí o ônibus passou, o bar fechou, a festa acabou, a mulher fugiu, o marido se matou, o filho... nem falar.

Então vamos ao nosso grande recurso: a bolsinha de medicamentos. A pílula para dormir e a outra para acordar, a pílula contra depressão (que nos tira a libido) e a outra para compensar isso (que nos rouba a naturalidade), e aquela que ninguém sabe para que serve, mas que todo mundo toma.

Fingindo não estar nem aí, parecemos modernos e espertos, e queremos o máximo: que para alguns é enganar os outros; para estes, é grana e poder, beleza e prestígio; para aqueles, é delírio e esquecimento.

Para uns poucos, é realizar alguma coisa útil, ser honrado, apreciar a natureza, sentir o calor humano e partilhar afeto. Mas, em geral medicados, padronizados, desesperados, medíocres ou heroicos, amorosos ou perversos, nos achando o máximo ou nos sentindo um lixo, carregamos a mala da culpa e a mochila da ansiedade.

Refletindo, veríamos que somos apenas humanos, e que nisso existe alguma grandeza. Mas, convencidos de que pensar dói e de que mudar é negativo, tateamos sozinhos no escuro, manada confusa subindo a escada rolante pelo lado errado.

Lya Luft é escritora


A tecnologia ficou invisível

Os aparelhos eletrônicos serão embutidos em roupas e objetos. Estarão até dentro de nós. Alguns facilitarão nossa vida. Outros vão espreitar nossos movimentos
Fabiana Monte



Você acorda para trabalhar. No banheiro, o espelho indica seu peso, sua idade, o nível de colesterol e a pressão sanguínea informados por sensores implantados em seu corpo. Também mostra a série de exercícios físicos que você deve fazer para manter seu organismo saudável. Na cozinha, sua mãe prepara o café. A geladeira apresenta os produtos cujo prazo de validade está chegando ao fim e envia para o mural digital da cozinha a lista de itens que devem ser comprados.

O equipamento, com tela sensível ao toque e webcam integrada, também exibe fotos de seus amigos e parentes. É o aniversário de seu tio que mora no exterior. Você grava um vídeo desejando felicidades. Com a ponta do dedo, arrasta o arquivo até a foto do aniversariante. Pronto, a mensagem é enviada para o e-mail de seu tio.

Já no carro, você se dá conta de que esqueceu o endereço da reunião marcada para esta manhã. Com um comando de voz, seus e-mails aparecem no display do carro. Ao selecionar o endereço com o toque do dedo, o GPS indica o melhor caminho a seguir. Coisa de filme? Em alguns anos, sua rotina poderá ser assim.

A promessa que a ciência e a evolução tecnológica trazem para a humanidade é de um futuro conectado. Uma conectividade, garantem cientistas e estudiosos, bem diferente daquela à qual estamos acostumados atualmente.

Na próxima década, chips deverão estar presentes em sapatos, carteiras, gravatas, canetas, batons, em seu corpo e sob sua pele. Tudo terá inteligência e estará conectado. “A palavra ‘computador’ vai desaparecer, porque tudo será computador”, diz Jean Paul Jacob, pesquisador emérito da IBM que foi contratado há 46 anos pela empresa para o cargo de futurólogo da companhia americana. Como essas mudanças vão afetar nossa vida?

Algumas das facilidades descritas na abertura desta reportagem (como a geladeira com internet) são prometidas há anos pela indústria, sem nunca passar do protótipo. Mas um número crescente de produtos inovadores já está sendo produzido. Eles mostram como é possível incorporar a capacidade computacional a objetos e equipamentos que vão além de laptops, GPS (Global Positioning System), celulares multifuncionais e sensores usados por atletas para controlar batimentos cardíacos e velocidade de corrida.

O próprio conceito de chip passará por mudanças. Deixará de ser feito de silício. Henrique Eisi Toma, coordenador do laboratório de nanotecnologia molecular da Universidade de São Paulo (USP), diz que a ciência vive um momento semelhante à transição da válvula para o transistor.

A nova geração de chips será construída em nanoescala. Seus componentes serão tão pequenos – mil vezes menores que as dimensões atuais – que serão construídos molécula por molécula. “A nanoescala, ao contrário da microescala – que ficou restrita à eletrônica –, vai mexer com tudo da sociedade”, diz Toma.

Uma das promessas para a área de saúde é o protótipo da iPill, da Philips, uma pílula inteligente criada para tratar doenças do aparelho digestivo como colite e câncer do cólon. O remédio é capaz de identificar a região do trato intestinal em que está alojado (devido às diferenças do nível de acidez entre o estômago e áreas do intestino) e liberar doses pré-programadas de substâncias para combater o mal.

A cápsula de 26 milímetros tem microprocessador, bateria, sensor de acidez, transmissor de rádio, termômetro e uma bomba para liberar os medicamentos. Ela se comunica com uma unidade controladora fora do corpo por meio de rádio, informando a temperatura local. O microprocessador controla a administração da droga, que é liberada pela bomba da cápsula, segundo as prescrições do médico.

Os aparelhos tradicionais também vão adquirir formas mais dinâmicas. Um dos desafios é aprimorar o equipamento mais íntimo e multifuncional que usamos hoje: o celular. Centros de design da Motorola na Coreia, na China, no Reino Unido, na América do Norte e na do Sul desenvolveram um estudo que apresenta 12 conceitos de como serão os telefones móveis em 2033.

Segundo eles, diversos objetos que temos à mão, como chaveiros, anéis, pulseiras, relógios e porta-retratos, ganharão funções de comunicação, hoje restritas ao telefone e ao computador. Nós os usaremos alternadamente, segundo nossa conveniência.

Um protótipo da empresa, o Metamorfose, feito com material flexível, mudará de forma, tamanho e funções a um simples chacoalhar de mãos. Ele poderá ter o formato de telefone, de um cartão de crédito ou de uma tela.

É um conceito parecido com o do Morph, da Nokia, que também prevê que o material plástico do aparelho será autolimpante. As empresas ainda não têm tecnologia para construir tais equipamentos, mas acreditam que o design deverá seguir esse caminho.

Aparelhos tão surpreendentes terão novas formas de se comunicar conosco. Hoje, dependemos de teclados, botões ou mouses para comandá-los. Isso vai mudar. O Projeto Natal, da Microsoft, dá algumas dicas de como poderá evoluir essa nova relação. Composto de sensor de movimentos, câmera e microfones acoplados ao videogame Xbox 360, o aparelho inova por não ter controles. Você usa o próprio corpo para interagir com o console.

O sistema usa um sensor para monitorar o movimento do corpo do jogador, sua face e voz. O produto ainda não tem data para ser lançado. Mas a fabricante de brinquedos Mattel começou a vender em fevereiro um brinquedo que usa a força da mente. O desafio do jogo Mind Flex é fazer uma bola ultrapassar obstáculos em uma base.

Para isso, o jogador veste uma espécie de fone de ouvido, com sensores na testa e nos lóbulos das orelhas. Eles medem os impulsos elétricos dos neurônios do jogador e identificam seu nível de concentração. Quanto mais concentrado ele estiver, maior será sua capacidade de controlar o movimento e a velocidade da bola.

A Mattel lançou um jogo em que você controla uma bolinha com a força do pensamento

A perspectiva dos pesquisadores é que a comunicação com as máquinas venha a ser mais natural. Hoje, eles estudam como os aparelhos podem entender melhor nossas ordens e nossos humores. É o que fazem os 50 pesquisadores e professores da Tauchi (Unidade de Interação entre Homens e Computadores da Universidade de Tampere), na Finlândia.

Eles estudam técnicas para acessar informações e aplicações exclusivamente por meio da visão. Seu principal uso, por enquanto, é permitir a comunicação de pessoas que sofrem de deficiências motoras. Mas as funções podem evoluir para outros públicos.

Kari-Jouko Raiha, coordenador da Tauchi, acredita que os computadores ganharão mais independência ou autonomia para tomar ações sem que você precise dar um comando. A Tauchi desenvolveu um programa que monitora a movimentação dos olhos enquanto você lê um texto em idioma estrangeiro.

A invenção combina software com um equipamento chamado “eye tracker”, uma pequena câmera de vídeo com uma fonte de luz infravermelha que ilumina o olho para monitorar sua movimentação.

O pesquisador afirma que o padrão de movimentos da visão muda quando deparamos com uma palavra desconhecida. E o sistema é capaz de identificar essa alteração, informando a tradução da palavra, sem que você precise solicitá-la previamente.

Outro projeto do instituto finlandês está ligado a sistemas capazes de reconhecer e se adaptar a mudanças emocionais do usuário. Eles também são compostos de software e do “eye tracker” e poderiam ser usados em escolas.

O sistema perceberia quando os alunos deixassem de prestar atenção ao conteúdo e realizaria as mudanças necessárias para reconquistar os estudantes.


27 de junho de 2009
N° 16013 - NILSON SOUZA


Nomes

Catava bergamotas na banca da feira ecológica que frequento aos sábados quando um cidadão falante, que já vi por lá outras vezes, aproximou-se e puxou conversa. Ouvi com atenção os seus relatos e respondi com a civilidade característica daquele ambiente. Entre rúculas, berinjelas e tomates, as pessoas se tornam extremamente gentis. De repente, o homem me olhou fixo e perguntou:

– Qual é mesmo a sua graça?

Graça? Informei-lhe o meu nome, evidentemente, mas não achei a mínima graça naquela pergunta com cheiro de mofo. Ninguém faz uma pergunta dessas para um jovem. Imagino o que minha afilhada adolescente responderia se ouvisse questionamento semelhante:

– Hã? Isso se não saísse rindo.

E o pior é que o cidadão não se espantou com meu nome. Recebeu a informação com naturalidade. Ou talvez nem tenha ouvido, sei lá. Mas não pude deixar de pensar num recente texto que li a respeito da influência dos nomes na vida das pessoas, especialmente na vida profissional.

Dizem os especialistas que os empregadores pegam o currículo dos candidatos e se fixam imediatamente no nome. E aí já formam a primeira impressão, que pode ser definitiva. Se o nome é atraente para o julgador, o candidato já larga bem na entrevista. Se parece antiquado, não é incomum que o sujeito seja recebido com desconfiança.

Nomes realmente condicionam destinos, embora não exatamente da forma como gosta de registrar nosso imortal companheiro Moacyr Scliar. Ele costuma colecionar referências do tipo João Pontes para um engenheiro de obras ou Fernando Cura para um médico.

Já existe até livro sobre o assunto, provavelmente uma antologia de coincidências, pois ninguém coloca nome nos filhos pensando na futura atividade profissional do bebê.

No caso dos que levam a profissão no nome, normalmente o que conta é o sobrenome – o que remeteria a família inteira para o mesmo ofício. Antigamente ainda tinha algum fundamento: os sobrenomes eram formados pela profissão (Zé Ferreiro), pela procedência (Chico de Assis) ou por características especiais (Giuseppe Quattrocchi, um italiano que usava óculos).

Mas hoje o que predomina é o modismo e a força da mídia. Artistas de novelas, jogadores de futebol e modelos famosas reproduzem-se como coelhos nos cartórios de registros de nascimento.

E isso não condiciona nada: nenhum outro Édson tornou-se Pelé, nem qualquer Diego pode reivindicar a coroa de Maradona e vai levar alguns séculos para surgir outra Gisele. Ainda assim, os jovens que receberam esses nomes levam uma vantagem na vida: tão cedo ninguém vai perguntar-lhes qual é a sua graça.


27 de junho de 2009
N° 16013 - CLÁUDIA LAITANO


Somos todos Neda

Às vezes – poucas vezes –, a ignorância pode ser uma vantagem. Assistir a um clássico em completa inocência do seu conteúdo e ser surpreendido por uma cena sobre a qual várias gerações de críticos já escreveram é um exemplo.

Minha teoria é a seguinte: apenas o espectador desavisado, quase ignorante, é capaz de desfrutar em toda sua plenitude um filme já exaustivamente citado, analisado, interpretado.

Saber menos, nesses casos, é sentir mais. Aconteceu comigo, anos atrás, assistindo a Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, e topando inocentemente com uma das cenas mais impactantes da história do cinema.

Ao longo das últimas décadas, a clássica sequência em que centenas de escravos, para proteger a identidade do herói vivido por Kirk Douglas, proclamam: “Eu sou Spartacus” foi citada de inúmeras formas – em filmes, programas de TV e até em comerciais, fazendo rir ou fazendo pensar. Mas qual o segredo dessa cena? Por que até hoje ela impressiona e continua sendo reproduzida em diferentes contextos?

O que me ocorre é que talvez essa coragem dos escravos que se levantam para proteger o líder ameaçado seja de uma dimensão mais obviamente humana do que a coragem dos grandes heróis, o que a torna mais próxima da compreensão da maioria de nós. Não estamos falando aqui do heroísmo de Davi diante de Golias, de Daniel na cova dos leões ou mesmo de Chico Mendes enfrentando os seringueiros.

O líder que arrisca sua vida pelo bem comum merece nossa admiração e respeito, mas o pequeno gesto grandioso do indivíduo que se apoia em outros pequenos heroísmos para levar adiante uma causa desperta nossa mais profunda empatia, pois este é um lugar no qual, sem muito esforço, conseguimos nos colocar. Pessoas unidas por uma causa comum são sempre maiores do que elas mesmas. Uma torcida é maior que um time, uma família é maior que seus membros.

E quando a causa exige alguma dose de coragem pessoal, a ação coletiva transforma a fragilidade individual na força de um grupo. Se a história dependesse apenas de líderes e heróis, estaríamos ferrados. A maioria das pessoas nasceu para fazer parte da multidão, não para ser Spartacus.

Horas depois da execução da jovem Neda Agha-Soltan em uma rua de Teerã, durante um protesto no último sábado contra o resultado das eleições iranianas, cartazes, camisetas e blogs começaram a estampar os slogans “Eu sou Neda” ou “Somos Todos Neda”.

Neda, 27 anos, era funcionária de uma agência de viagem, aprendeu turco para trabalhar como guia, estudava canto e não era particularmente politizada – ainda que, como boa parte dos iranianos, estivesse indignada com o resultado das eleições.

Segundo o relato de amigos e familiares, Neda não era uma liderança nata ou sequer uma pessoa de temperamento exaltado. Era uma jovem voltando de uma aula de canto, talvez dotada apenas daquela coragem discreta de quem não nasceu para ser herói.

Por um lance de acaso associado à tecnologia, alguém com um celular registrou os últimos minutos de sua vida – o corpo ensanguentado, os olhos desafiadoramente abertos.

O vídeo foi visto por milhões de pessoas, e Neda acabou se transformando em um Spartacus involuntário – o rosto bonito e sereno de um movimento que, mesmo antes de sua morte, já contava com a simpatia de boa parte do mundo.

A história, violenta e imprevisível como uma bala perdida, apanhou Neda no meio rua, depois de uma aula de canto – e todos nós ficamos feridos.