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sexta-feira, 17 de outubro de 2008
MIGUEL SROUGI
Os médicos continuam infelizes
Dois bilhões de habitantes do planeta não têm acesso a medicamentos; obviamente, 0,3% deles vivem em países ricos, e 80%, na África
HÁ UM ANO, no Dia do Médico (18/10), escrevi sobre os médicos brasileiros. Mostrei que estavam infelizes, pois não conseguiam exercer na plenitude a sua vocação de combate ao sofrimento humano.
Atuavam imersos num sistema de saúde pública incompetente, perdulário e injusto, eram afrontados por salários incapazes de propiciar a vida digna e estavam acuados por entidades privadas de assistência, que cerceavam sua autonomia e criavam restrições perigosas às ações médicas.
Para completar o infortúnio, padeciam com a intransigência desconcertante da sociedade, incapaz de aceitar a derrota em fatos inexoráveis, como a decadência física pelo tempo, a existência de doenças incontornáveis ou a morte implacável.
Passado um ano, a infelicidade não se atenuou. Desconfio até que aumentou, e explico por quê. De acordo com a OMS, a saúde representa um estado de bem-estar físico, psicológico e social.
Numa interpretação pessoal, significa ter uma vida com significado. E, numa visão realista, sonho inatingível para muitos no mundo que habitamos.
Como podem os médicos estar felizes se, olhando para o seu entorno, deparam com uma massa humana desassistida, assolada pela indigência e pela marginalização? Estatísticas da ONU traduzem esse quadro. A cada ano, 18 milhões de pessoas morrem no mundo por causa da pobreza.
Dois bilhões dos habitantes do planeta não têm acesso a medicamentos; obviamente, 0,3% deles vivendo em países ricos, e 80%, na África. A esperança de vida para quem nasce no Japão é de 85 anos; em 13 países africanos, é menor do que 50 anos e, em Zâmbia, é de 40 anos.
Mais ainda: na África, morre uma em cada seis mulheres ao dar à luz, uma diferença galáctica do que sucede na Europa ocidental, onde essa tragédia atinge apenas uma em cada 8.700 mulheres.
A Organização Mundial da Saúde dá uma das explicações para essas injustiças, a chamada "desproporção 10/90": cerca de 90% dos recursos mundiais gastos na saúde são consumidos pelos 10% mais ricos da população, os restantes 90% dos habitantes do planeta recebem apenas 10% do total de recursos.
O que fica claro é que a saúde do mundo não depende apenas dos médicos que nele habitam, mas tem muito a ver com a pobreza, com a injustiça social e com a falta de consciência dos governantes -e, às vezes, também da sociedade.
Seriam os médicos brasileiros meros espectadores da tragédia mundial? Se ouvirmos o IBGE, certamente não. Dados produzidos em 2005 revelaram que existiam no Brasil 43 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza.
E, como na coreografia planetária, vítimas da fome, da exclusão, da violência, incapazes de compreender seus direitos e expressar reação.
Subjugados a um sistema de governança perverso, que foi capaz de pagar, em 2007, R$ 120 bilhões de juros da dívida brasileira e destinar apenas R$ 43 bilhões para toda a assistência à saúde do povo brasileiro.
Neste panorama, frustram-se os médicos brasileiros, que, imobilizados, não conseguem cumprir sua missão. E também fica angustiada a consciência médica, que sabe que sem saúde não existem seres livres.
Seria possível atenuar essas frustrações e angústias? Acho que sim. Se cada um dos que conseguem se manifestar exigir que nossos governantes façam das leis e do seu poder instrumentos de defesa dos desassistidos, e não objetos de proteção aos oportunistas, ímprobos ou poderosos.
Exigir que adotem ações genuínas para reduzir os efeitos da pobreza: criando infra-estruturas de apoio à existência humana digna; concedendo aos protagonistas o direito à expressão, para que se compreenda suas necessidades; valorizando a mulher, que nas sociedades carentes representam o núcleo de agregação e suporte das famílias;
combatendo sem tréguas a corrupção e a violência; e assumindo de forma sincera, e não apenas dissimulada, a determinação política de priorizar os recursos para as áreas sociais.
Falei dos 43 milhões que vivem nos limites da indecência, o que me remete ao outro Brasil, cuja renda per capita é oito vezes maior e os privilégios postam-se nos limites da imaginação.
Como médico e membro do grupo dos 140, sou tomado por uma angústia incontida ao imaginar que a nossa complacência poderá ser mal-interpretada, confundida com aquiescência. E a angústia torna-se quase insuportável ao supor que poderei cruzar com a multidão, ouvindo-a declamar, resignada, Chico Buarque de Holanda:
"Eu queria estar na festa, pá / Com tua gente / E, colher pessoalmente / Uma flor do teu jardim / Lá faz primavera, pá / Cá, estou doente / Manda urgentemente / Algum cheirinho de alecrim / Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar".
MIGUEL SROUGI, 62, médico, pós-graduado em urologia pela Harvard Medical School (EUA), é professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP.
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