terça-feira, 21 de outubro de 2008



21 de outubro de 2008
N° 15765 - MOACYR SCLIAR


Terra de ninguém, terra de muitos

Muitas pessoas (alguns médicos, inclusive) dizem que a medicina é, afinal, uma profissão igual às outras. A gente vai ao mecânico para consertar o freio do carro, e vai ao ortopedista para consertar um joelho que está doendo.

Antes fosse tão simples.

Acontece que o carro, na melhor das hipóteses, é uma extensão de nosso corpo, e o joelho é o nosso corpo. Mas há mais um, e importante detalhe: a medicina freqüentemente trabalha na fronteira entre a vida e a morte. De novo, pode-se alegar que um freio de carro funcionando mal também nos coloca nessa fronteira.

No caso da medicina, porém, é o profissional que vai nos escoltar, vai estar conosco na terra de ninguém que marca o limite de nossa existência, e onde os problemas muitas vezes desafiam nossa compreensão, nossa melhor capacidade de julgamento.

Desligar o respirador tornou-se o símbolo maior desses problemas, como se viu no último fim de semana com o caso da pobre Eloá Cristina Maciel.

Qualquer médico – mais, qualquer pessoa, porque as pessoas hoje estão bem informadas a respeito – sabe que uma grande destruição de massa encefálica é lesão grave, irreversível, freqüentemente incompatível com a vida.

No passado, a morte era uma conseqüência lógica dessa situação. Hoje, a moderna tecnologia permite que a vida, ao menos a vida que se traduz no funcionamento de outros órgãos, coração, rins, pulmões, se conserve. Mas se conserve – até quando? Quem diz que chegou o momento de interromper o esforço para preservar as funções vitais?

Gera-se daí uma cena que comecei a viver ainda como estudante de medicina.

Eu estava ali, no hospital (Santa Casa, Pronto Socorro) observando os médicos – nesse caso sempre é uma equipe, tem de ser uma equipe –, lutando desesperadamente pelo paciente. De repente, e por uma espécie de consenso, ficava claro: não havia mais nada a fazer. Mas alguém precisava dizê-lo.

Era necessário uma palavra, um monossílabo que fosse, e o chefe da equipe se encarregava de pronunciá-lo, a um custo emocional que mal se pode calcular.

Isso explica o conceito de morte cerebral.

É um conceito minuciosamente estudado e divulgado (só no Google, há quase 7 milhões de páginas a respeito) e que se apóia em vários critérios baseados no exame clínico, no eletroencefalograma e em outros exames. Podemos dizer com segurança: é o melhor que a ciência pode oferecer.

E podemos dizer que é uma coisa sábia aceitar esses critérios. Pelo menos eles tem uma tradução objetiva e oferecem uma resposta para a pergunta que inevitavelmente nos angustia: quando termina a vida humana? Quando podemos dizer que uma pessoa já não está entre os vivos?

Precisamos de uma resposta para estas perguntas. Uma resposta humana, porque não somos Deus, mas uma resposta. Uma resposta que seja objetiva, consensual, e que, acima de tudo, envolva compaixão.

É importante lembrar que não só uma vida depende dessa resposta; a possibilidade do transplante de órgãos (com a qual a família de Eloá, generosamente, concordou) faz com que para muitas pessoas esta resposta seja absolutamente decisiva.

É a maneira de transformar a terra de ninguém na terra de muitas pessoas, ali trazidas pela esperança que ao fim e ao cabo é o que nos mantêm vivos.

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