domingo, 12 de outubro de 2008



12 de outubro de 2008
N° 15756 - MOACYR SCLIAR

Retrato da infância

Não tenho muitas fotos de minha infância – fotos eram coisas relativamente caras para o modesto orçamento da família – mas, das poucas que tenho, existe uma que me parece particularmente significativa e nostálgica: a foto que figura nesta página.

Ela foi tirada (“clicada”, para usar um termo atual) em Passo Fundo, onde moramos por uns poucos anos. Foi num baile de Carnaval – e eu, que teria uns três ou quatro anos, estou ali devidamente fantasiado.

É justamente a primeira coisa que me chama a atenção nessa foto, a fantasia. Estou vestido de cossaco. O que me intriga. Meus pais eram imigrantes, judeus russos que tinham vindo com suas famílias para o Rio Grande do Sul.

E eles vinham por duas razões: primeiro, estavam em busca do sonho brasileiro, de uma vida melhor numa terra que antecipavam generosa. Depois, estavam tratando de salvar a própria pele.

A Rússia era (e ainda hoje em parte o é) uma região convulsionada por conflitos étnicos, nos quais os judeus eram vítimas preferenciais. Suas aldeias eram invadidas por bandos armados que roubavam os poucos bens, queimavam as casas, matavam os homens, violentavam as mulheres.

E esses bandos eram, freqüentemente, compostos por cossacos, famosos como cavaleiros e famosos pela fúria. Os judeus odiavam e temiam os cossacos.

Por que, então, minha mãe fantasiou-me desta maneira? Seria por saudade da Rússia, lar hostil, mas lar de qualquer maneira?

Ou haveria nessa fantasia algo de deboche, como se ela estivesse dizendo: “Agora vocês não podem fazer mais nada contra nós, estamos no Brasil”? É uma pergunta que ficará sem resposta, uma mensagem que não chegou a seu destino.

A segunda coisa que me chama a atenção é a expressão do menino que ali está.

Muito carnavalesco ele obviamente não é; provavelmente não está nem aí para o Rei Momo. Parece perplexo e assustado, o guri, mais perplexo do que assustado. O que estou fazendo aqui? Por que me vestiram com essa roupa? Para que serve esta faca que tenho na cintura? O que querem, afinal, de mim?

Infância é, em grande parte, isso, uma série de interrogações. Às vezes, testemunho de uma divertida curiosidade; outras vezes, de angústia diante dos mistérios, e dos terrores, do mundo.

O tempo passa, e a perplexidade não desaparece. Mudam as perguntas, apenas: “É grave, isso que eu tenho, doutor?” Ou: “Como é que eu faço para pagar esta dívida?” Ou: “Onde é que vou arranjar trabalho?”

Mas, olhando esta foto, uma coisa eu concluo: se há algo que podemos fazer por nós mesmos é preservar, dentro de nós, a criança que um dia fomos.

Fantasiada ou não, isso não importa. O importante é que a criança esteja lá.

Nenhum comentário: