quarta-feira, 22 de outubro de 2008



22 de outubro de 2008
N° 15766 - DAVID COIMBRA


A bola não cai nunca

Aquele negão, a gente o chamava de Negão. Nem sei qual era o nome dele. Para todo mundo era Negão, ponto. Andava sempre descalço. No paralelepípedo quente do verão, na laje gelada do inverno, para o Negão tanto fazia.

Caminhava impávido sobre pezões escanchados, do tamanho de cadernos de espiral. O Negão arrastava os pés até pelas rosetas afiadas dos morros do IAPI, imagina no areão, que era onde se dava a maioria das peladinhas.

O areão ficava em frente ao Alim Pedro, ao lado do pedestal de pedra no qual devia estar fincada uma estátua de discóbolo. O discóbolo foi roubado por algum amante da arte grega que residia na vila, já contei essa história.

A turma chegava lá para jogar uma pelada, quatro contra quatro. Logo apareciam dois:

– Tem furo? – Entra um pra cada lado.

Mais um: – Tem furo? – Entra nos sem camisa.

Quando a gente via, tinha 19 num time, 20 no outro. O jogo virava um mistifório, uma assuada, como diria o Mendes Ribeiro.

Ninguém se entendia, a bola não parava, era canelada e cotovelaço e cascudo para todo lado, uma correria, um gritedo, a poeira do areão levantava do chão e não dava para ver nada do que acontecia. Mas às vezes até se via. Às vezes não jogava tanta gente assim. Numa dessas, o Negão estava jogando.

Aí aconteceu o lance.

Foi uma dividida. A bola quicou entre o Amilton Cavalo e o Negão. O Cavalo foi eqüinamente nela, foi com tudo, quase relinchando. Sei porque ele entrou desse jeito.

É que ali adiante, sentadinhas numa elevada do Alim Pedro, como se fosse arquibancada, estavam Alice, Sândi e Débora, três das petúnias mais olorosas da Zona Norte de Porto Alegre.

Nunca nenhuma mina ia ver nossos jogos, e naquele dia elas estavam lá, dentro das suas sainhas plissadas, torcendo por nós, emitindo gritinhos, jogando para o alto aqueles bracinhos delgados e macios, aiai...

Por que estavam no campo, eis o mistério. Deviam estar voltando do colégio e pararam para se divertir gozando de nós, sabe-se lá. Seja.

O certo é que Cavalo só podia entrar feito um animal na bola. Queria levantar a torcida inusitada. Mas o Negão ficou frio. Só esperandinho. Quando o Cavalo saltou sobre a bola, ele fez o seguinte: bateu na bola com aquela sua pata que era um paralelepípedo.

Mas bateu com a sola dura do pé, fazendo a bola quicar de novo no chão de areia batida e subir outra vez. E subiu e subiu e subiu, percorrendo a altura do corpo do Cavalo e lhe penteou os cabelos pretos e o Cavalo se esticou todo, uff!, e jogou a cabeça para trás e não adiantou. Levou o balãozinho.

O Negão saiu com ela todo pimpão do outro lado, para gáudio das gurias ali adiante. Qualquer pretensão amorosa do Cavalo se esboroou com aquele chapéu humilhante.

Vou dizer: o Negão jogava num time profissional de hoje, juro que jogava. Bom de bola. Tinha técnica. Ou, pelo menos, ele faria aqueles truques circenses que os jogadores modernos adoram fazer.

Foi o Batista quem chamou a atenção sobre isso, no Bate Bola de domingo passado, na TV Com. O torcedor liga a TV e vê o treino da Seleção Brasileira. Os jogadores estão lá, brincando com a bola.

Equilibram a bola na cabeça, no calcanhar, no joelho, na nuca, nos ombros, na orelha, passam a bola um para o outro sempre no ar, aquela bola não cai nunca.

Aí o torcedor pensa: na hora do jogo, eles vão fazer aquilo tudo, é impossível um ser humano normal roubar a bola de um artista desses, brasileiro com uma bola no peito, em vez de coração. Mas, em campo, qualquer colombiano vai lá e complica. Como pode? O torcedor fica perplexo, a imprensa critica, o Dunga explica:

– É que eles jogaram com duas linhas de quatro...

O que simplifica a vida: da próxima vez que um técnico anunciar que vai jogar com duas linhas de quatro, os times não precisam nem entrar em campo: é zero a zero, está tudo combinado, um ponto para cada um, não precisa mais incomodação.

Agora, se o Negão jogasse na Seleção não seria assim. O Amilton Cavalo que o diga.

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