quarta-feira, 22 de outubro de 2008



22 de outubro de 2008
N° 15766 - SERGIO FARACO


O anjo e seu mestre

Carro vermelho não quero nem de graça, o único que tive só me trouxe problemas. Bem, tive outro, um Fusca, mas Fusca não conta. Não é carro. É membro da família.

Meu vermelho problemático foi um Willys Interlagos.

Às quatro horas da manhã de uma segunda-feira, seguia eu de Alegrete para Uruguaiana, onde teria de abrir a repartição antes das oito. A estrada, em meados dos anos 60, era de terra, e eu trafegava em velocidade compatível.

A bateria de 6 volts gerava luz deficiente e, em dado momento, os faróis de um veículo começaram a me ofuscar. Reduzi a marcha e, ao cruzar por ele, estava quase parando. Ora, nas pontes a estrada estreitava, só passava um. E nem vi a ponte.

O caminhão passou por onde deveria passar e eu... pelo lado! O carro embicou no barranco e, como um pêndulo ao contrário, emborcou dentro do arroio. A capota de fibra de vidro se partiu e me imprensou debaixo d’água, na mais densa escuridão.

Sem poder respirar, tomei muita água, mas de tanto espernear pude dar com uma saída. Mais tarde, enquanto içavam o carro, percebi que escapara pela abertura do vidro de trás: a tampa do motor traseiro ficara apoiada numa grande pedra.

O conserto levou meses.

Eu continuava trabalhando em Uruguaiana e, nos fins de semana, ia para Alegrete. Num domingo à noite, tornei a ganhar a estrada no reconstituído Interlagos. Tudo andou bem até a ponte do Rio Inhanduí.

Era uma ponte de madeira com trilhos. Com os estrépitos das rodas nas pranchas, um cão que dormia junto às grades laterais assustou-se e correu.

Quis desviar, perdi os trilhos no rodado dianteiro e o carro se atravessou, escorregando na madeira molhada de sereno. No final da ponte, sua posição era perpendicular à estrada. Trancou de lado na terra, capotou e, patas arriba, desceu o barranco. E lá estava eu outra vez imprensado.

Um chiado, estalidos, era um princípio de incêndio e tentei sair, vejam só, pelo lugar em que estivera o vidro da ventarola, onde não passaria um bebê. Mas sempre pude escapar.

E por onde? Pelo buraco do vidro de trás. Você acredita se eu disser que a tampa do motor estava novamente sobre uma pedra?

Tiradentes, num delírio, pleiteava 10 vidas para substituir-se aos inconfidentes condenados. Eu sempre quis uma só e, em duas ocasiões, por pouco não a perco.

Devo-a ao meu Anjo da Guarda, claro, mas desconfio de que também a Sísifo: meu protetor é tão bom em rolar pedras que só pode ter aprendido a técnica com um especialista.

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