terça-feira, 14 de outubro de 2008



14 de outubro de 2008
N° 15758 - LUÍS AUGUSTO FISCHER


Cartola, um século

Contemporâneo da primeira geração profissional do samba, antes de ser Cartola ele foi oficialmente Angenor de Oliveira, um menino carioca nascido no Catete, bairro de classe média, em 1908. A família desfrutava de confortável posição social mas teve problemas financeiros e por isso foi morar no morro da Mangueira, entre a gente mais pobre.

Destino é destino, e Cartola lidou com ele de modo singular: ajudou a inventar a primeira Escola de Samba, a Mangueira, no morro em que viveu, tendo sido o responsável pela definição da combinação das cores verde e rosa, o que significa que, sem exagero, sua obra corre o mundo todo.

Poderia ter tido sucesso ainda jovem, mas por essas coisas que ocorrem (e pelo temperamento dele, que misturava uma certa rebeldia de comportamento com uma total entrega às paixões) ele só veio a gravar um disco em 1974, muito depois de ganhar o imortal apelido – nascido de sua profissão de pedreiro, em cujo exercício ostentava um improvisado chapéu-coco para evitar sujar os cabelos.

Entre o começo da vida, sambista futuroso, e o sucesso, que alcançou só nos últimos anos de vida (faleceu em 1980), andou em vários desvios.

Foi expulso de casa pelo pai autoritário, caiu na boemia, rompeu com antigos parceiros da Mangueira, casou, adoeceu, foi morar num subúrbio longe, até virar lavador de carros em posto de gasolina no Rio, quando foi redescoberto pelo cronista Sérgio Porto.

Mas quando voltou à ativa, que maravilhas apresentou ao mundo. O Sol Nascerá, As Rosas não Falam, o filosófico Acontece – “Esquece o nosso amor, vê se esquece, porque tudo no mundo acontece”. Aliás, falar em filosofia é quase o mesmo que lembrar dele, quando se trata de samba.

Cartola olhou a vida em seus aspectos mais duros, para poder, depois, nos dizer que ela, não sendo fácil, é a única que temos. Quando isso é dito num samba dele, superior, aprendemos a olhar o mundo com mais sabedoria.

Até mesmo para lembrar do falecido Pilla Vares, que gostava de samba e era, creio que antes de tudo, uma pessoa modesta, simples: com sólida formação intelectual, leitor regular e bem aparelhado, nunca ostentava essa condição. Entre intelectuais de esquerda, já raros, essa antiarrogância é uma virtude que merece lembrança.

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