segunda-feira, 13 de outubro de 2008


MARINA SILVA

Tirando o escorpião das costas

NA ÚLTIMA sexta-feira, Clóvis Rossi relatou a festa de quase US$ 450 mil promovida pela seguradora AIG para seus executivos, logo após ser socorrida pelo governo americano com US$ 85 bilhões.

É assustador, pela quantia gasta no socorro a uma única empresa, pelo custo da celebração absurda, em meio ao desabamento do sistema financeiro; e por retratar a estupidificação de uma pequena parcela da humanidade, que, haja o que houver, se vê protegida num olimpo, atirando flechas contra os mortais na planície.

Esses casos do entorno da crise nos falam de uma cultura que não dá sinais de arrefecer nem diante do prenúncio do caos.

Quantos já não correm para manipular a desgraça e fazê-la se transformar em "oportunidade"? Lembra a fábula do sapo e do escorpião. Em meio à enchente, o escorpião pede ao sapo para levá-lo às costas até a outra margem do rio.

O sapo hesita porque teme uma picada mortal. "Que nada", diz o escorpião. "Eu não faria uma coisa dessas com quem está salvando minha vida!". Convencido, o sapo inicia a travessia.

E leva a picada fatal: "Por que, se você vai morrer junto comigo?" Antes de ser tragado pela correnteza, o escorpião responde: "Desculpe, mas essa é a minha natureza". Há nisso tudo uma questão de fundo: a hipertrofia financista comandando a vida social.

No mundo imaginário do planeta dinheiro, ninguém e nada tem existência fora do seu valor monetário e do potencial para multiplicar cifras, mesmo que artificialmente. Nesse mundo, o Estado é continuamente instado a se afastar para dar lugar à exuberante "generosidade" dos ganhos fartos.

Quando a coisa vai mal, como agora, corre-se para o colo do Estado, a fim de que solucione a crise e divida os prejuízos com a sociedade. Escrevo enquanto o FMI faz sua reunião anual em Washington. Será que há esperança de que essa rotina comece a mudar?

A solução não pode ser estatal nem econômica, ela é política. Mas, cerceada pelas razões puramente econômicas, quando entra em cena, a política o faz fragilizada, subjugada e sem traquejo para operar o que é de sua natureza: a defesa do interesse público.

Os interlocutores são inseguros, as respostas demoram, safam-se aqueles que originaram o abalo. Com o espaço de decisão política obstruído, aos cidadãos resta a solidão da perplexidade. O que virá? Depressão, desemprego, inflação?

Quanto dessa crise mundial atingirá o Brasil? Quaisquer que sejam as respostas, uma conclusão já podemos tirar. Está mais do que na hora de fazermos a travessia, só que sem o escorpião nas costas.

contatomarinasilva@uol.com.br - MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.

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