quinta-feira, 23 de outubro de 2008



23 de outubro de 2008
N° 15767 - RICARDO SILVESTRIN


Herói

O sentimento de pertencer a uma pátria e o sentimento de pertencer ao mundo. Temos os dois. Quando estamos longe do nosso país, ficamos mais patriotas. Quando estamos dentro dele, queremos o mundo. Vi o filme Ensaio sobre a Cegueira, do Fernando Meirelles. Por um lado, saí orgulhoso pela alta qualidade.

É um filme com padrão internacional. Mas, por outro lado, fiquei pensando nessa aparente desnacionalização do que vemos a nossa frente. É todo falado em inglês. Dos protagonistas, apenas uma atriz brasileira. O resto, predominantemente americanos.

Tem cara e ritmo de filme americano. Mas, antropofagicamente, o diretor brasileiro contrabandeia uma história que foi escrita originalmente em português, pelo lusitano José Saramago. Aí, volta a idéia de nação, de pátria, pois, como disse Camões, “minha pátria é a língua portuguesa”. A dele, mas que virou a nossa.

No filme, a língua portuguesa só aparece nas legendas. O que é contado tem um alcance além das nações. Fala de uma cegueira coletiva que teria tomado conta do mundo.

E, quando vemos as ameaças ecológicas ao planeta, ou mesmo o recente descontrole econômico, a cegueira ganha conteúdo além da dimensão puramente existencial. Outro dia, vi um professor de filosofia falando num programa da tevê.

Ele mostrou como existem conceitos transnacionais que vêm organizando o mundo. Herdamos dos gregos da antigüidade duas formas de entender tudo: a poesia e a filosofia. A poesia lírica aparece quando o homem vai deixando de falar dos deuses e passa a falar de si mesmo.

E a filosofia vai nessa esteira, ampliando o pensamento, a partir do próprio homem, sobre todas as coisas. Depois, os romanos nos deram as noções de direito. Da França, as idéias de liberdade, igualdade e fraternidade. E os russos com o projeto de internacionalização do socialismo?

Na contracultura, o pensamento oriental se dissemina pelo mundo. Sem falar nas religiões e ritmos africanos.

E, hoje, a globalização, que pede água para os governos nacionais. Então, temos nação e mundo. Homem e humanidade. Um prato cheio para a arte, que é a confluência de tudo. Essa é uma das riquezas do filme do Fernando Meirelles.

Vê o mundo a partir da sua lente e dos olhos abertos do Saramago. Filma em diversos países. Coloca a língua portuguesa embutida na língua dominante do planeta. Fala de igual pra igual com quem pensa o mundo em qualquer idioma.

Leva a boa literatura para a tela sem desagradar ao próprio autor. E não se rende a um cinema sem cérebro, recusando convites para filmar abobrinhas da indústria cinematográfica. Como se não bastasse, faz sucesso. É um herói nacional!

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