quarta-feira, 29 de outubro de 2008



29 de outubro de 2008
N° 15773 - DAVID COIMBRA


O curso de datilografia

Houve época em que as pessoas faziam curso de datilografia. Com máquina de escrever, e tudo mais. Tratava-se de algo até meio obrigatório, o curso de datilografia.

Nos anúncios de emprego sempre ficava sublinhada a exigência do curso. Sem curso, melhor nem se candidatar. Então, fi-lo. Não porque qui-lo; por ser indispensável.

A professora era uma freira de uns 125 anos de idade. Andava por entre as mesas muito sisuda dentro daquela roupa preta, sempre ressaltando a importância da datilografia para o futuro de uma pessoa.

Rosnava que a datilografia era fundamental para qualquer profissão, do presidente da República ao gari, que nenhum ser humano podia ser feliz sem a datilografia, que, se não aprendêssemos a datilografar, nunca conseguiríamos emprego em lugar algum.

– Nunca! – sublinhava, com voz roufenha. – Nunca! Nunca! Nuuuuncaaaaa!

Acho até que dava uma risada de filme de terror. Ou pelo menos eu imaginava que dava. Ela estava sempre em cima da gente, insistindo para que usássemos os 10 dedos para datilografar, para que não olhássemos para o teclado. Um dia, cobriu as teclas com fita isolante. Foi horrível.

– Mostrem do que são capazes! – urrou.

Aquilo tudo me deixava nervoso. Imaginava-me morando sob os viadutos da cidade, andrajoso, pedindo esmolas, desempregado pela eternidade, porque não datilografava. Considerava a datilografia nada mais do que uma atividade manual, era revoltante que fosse tão importante. Mas todo mundo dizia que era.

As pessoas comparavam o número de palavras que batiam à máquina por minuto e contavam histórias datilográficas. Uma secretária de dedos velocíssimos e precisos ganhava um salário nababesco do Banco do Brasil; o tio de alguém datilografava apenas com os indicadores, mas com tanta rapidez que saía fumaça da máquina.

Os lentos eram alvo de chacota, chamados pejorativamente de “catadores de milho”. Oh, eu sentia muito medo de ser considerado um reles catador de milho. Por qualquer razão, vinha um e me perguntava se já sabia datilografar.

Eu gaguejava na resposta. A verdade é que decorei aquilo do a-essedê, efegê; cecedilha-elecá, jotagá. Tinha pesadelos com essa maldita seqüência. Mas, confesso, ainda não sabia datilografar direito. Que situação, que tormento.

Aí consegui emprego no escritório da JH Santos, uma loja de departamentos.

– Sabe datilografar? – perguntou-me o chefe, na entrevista. Eu: – Claro! Tenho curso!

Decidi que na hora daria um jeito. A hora surgiu já no primeiro dia. Vieram-me com, segundo eles, um documento importantíssimo:

– Bate aí. E sem erros!

E lá estava eu, em frente à Remingtona, com aquele documento importantíssimo nas mãos. Lembrei-me da freira. A-essedê-efegê, cecedilhaelecá-jotagá. Meu futuro estava em jogo. E agora?

Comecei a bater à máquina. Na primeira linha, perdi o b. Fiquei procurando. Onde havia se metido o bê? Que rebeldia era aquela? Percebi que os colegas estavam me olhando. Me deu uma angústia. Será que achariam que era um catador de milho?

Será que devia deixar o bê para mais tarde? Encontrei-o, enfim. Mas cometi um erro logo após teclá-lo. Foi o primeiro de muitos. Em seguida, cometi outro. E outro. E outro. E mais outro. Cristo! Nenhum Errorex poderia me salvar. Fiquei vermelho. Suava.

As pernas estavam bambas, parecia que tinha maionese em lugar dos ossos. O chefe foi conferir o trabalho. Deu uma espiada sobre meu ombro. Torceu o nariz:

– Tu não disseste que era datilógrafo?

Puxou o papel da máquina. Temi ser demitido no ato, mas ele resolveu ser condescendente.

– Melhor desistir. Vou achar outro serviço pra ti. Um que não precise bater à máquina.

Aquilo me encheu de vergonha. O opróbrio!, pensei. A desgraça! Como poderia olhar nos olhos dos meus amigos, depois de fracasso tão rotundo? Levantei-me de um salto.

– Não! – gritei. – Me deixa tentar de novo! Datilografarei! Por Deus que datilografarei!

O chefe vacilou, com o documento importantíssimo entre o indicador e o polegar, mas, depois de pensar um pouco, devolveu-o para mim. Bati mais três vezes.

Na quarta, saiu perfeito. Entreguei-o vitorioso para o chefe, que fez um arram de aprovação e se foi para o seu gabinete com o papel imaculado na mão. Naquele dia, tornei-me um datilógrafo. Não hesitava mais. Não catava milho. Confiança, era disso que precisava.

O mesmo que precisa qualquer time de futebol. A confiança que só vem com a vitória. É por isso que vitórias se somam a vitórias. É por isso que, mesmo jogando mal, o importante é vencer, como fez o Grêmio na última rodada e como terá de fazer hoje: vencer de qualquer forma.

Sei que o Grêmio poderá vencer hoje, ainda que quase nunca vença o Cruzeiro no Mineirão. Exatamente porque o Grêmio está mais confiante do que o Cruzeiro.

O que não sei é como eles fazem hoje, todos esses jovens e até crianças que passam o dia sobre teclados de computador. Hoje não há mais freiras dando cursos de datilografia. Hoje nem existe mais datilografia. Como eles aprendem? Sozinhos???

Isso quer dizer que eu não precisava fazer curso de datilografia??? Que aqueles dias de aflição foram em vão??? Que nem nas freiras se pode confiar??? Quanto sofrimento desperdiçado, meu Deus!

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