segunda-feira, 27 de outubro de 2008


MARINA SILVA

Não é amor

ATREVO-ME A alguns comentários leigos sobre os casos, em grande evidência, de seqüestro e assassinato de mulheres muito jovens por seus companheiros, namorados ou maridos também muito jovens. Limito-me a manifestar um terrível mal-estar, que é, ao mesmo tempo, tentativa de entender.

O caso da adolescente Eloá, de Santo André, parece ter provocado um surto. De Goiás, da Bahia, a notícia traz nomes e situações diferentes, mas, no fundo, é a mesma: após décadas de conquistas femininas e da queda de tantos tabus, a relação homem-mulher ainda é presa de uma cultura doente de posse e anulação do outro.

Em plena vigência da maior liberdade sexual já vivida na sociedade ocidental, grande parte dos homens comporta-se com perverso desejo de fusão com quem dizem amar, a ponto de colocar sua integridade em risco. A mulher que eles ameaçam em nossa frente, no horário nobre, não é nossa filha.

Mas, de certa forma, é. Não é nossa irmã. Mas, de certa forma, é. Não somos nós. Mas estamos todos reféns da perplexidade e da carência de sentido de tudo isso.

O que faz alguém imaginar ser dono do outro ou senhor do sofrimento alheio, inclusive da família, dos amigos, da comunidade e, com o auxílio da mídia, do país inteiro?

Esses episódios chamam a atenção para um fosso que torna incompletas as conquistas femininas, se as tomarmos sobretudo em seus aspectos relacionados a questões legais e materiais. No plano emocional, o pensar masculino parece ter sido insuficientemente afetado pelas mudanças nas leis, nos costumes, na realidade social. Ainda está perdido, talvez mais do que o universo feminino, na armadilha da possessão, confundindo-a com amor.

Antes era brandida a honra para justificar a violência. Hoje, entregues à razão narcísica contra quem não aceitou a fusão absoluta, decretam: ou assimilo o outro, ou ele não pode mais existir.

E, no entanto, há quantos anos as leis e as convicções repelem esse domínio? Talvez tenha chegado o momento de o movimento feminista recrudescer em outro patamar, para unir homens e mulheres que reconhecem na cultura da posse uma redução de seu potencial humano e, na desigualdade de direitos, grave ofensa ao direito de ser feliz num mundo mais ameno.

Não se pode imaginar que um homem que oprime ou tortura mulheres, por quaisquer meios, ou lhes tira até mesmo a vida tenha alguma satisfação genuína ou auto-estima. O grande desafio é que, enquanto essa legião de órfãos da felicidade não encontrar o rumo de casa, ou seja, da parte sensível e acolhedora de sua condição humana, estará faltando algo essencial aos direitos das mulheres.

MARINA SILVA escreve às segundas-feiras nesta coluna.

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