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sábado, 5 de janeiro de 2008
Ponto de vista: Lya Luf
A dignidade humana
"Enquanto houver uma cela cosm 100 presos onde caberiam quarenta, enquanto houver pátios sujos de sangue, urina e fezes, enquanto houver tortura e injustiças, não teremos direito de falar em lei e direito neste país"
O presídio, pequeno e de um só andar, a que chamávamos "a cadeia", ficava na outra esquina, em diagonal com a esquina de nossa casa. Acordada no escuro, às vezes a menina que eu era escutava gritos vindos de lá.
"Deviam estar batendo em algum dos presos", me diziam de manhã. Aquilo era uma peça perdida no interessante quebra-cabeça do mundo que eu estava descobrindo e já amava.
Pois, há alguns anos, um telefonema da diretora do presídio feminino da cidade onde resido comunicou-me que estavam instalando uma biblioteca para as presidiárias. As "apenadas" queriam dar meu nome ao local.
Ela me consultava para saber "se eu não me ofenderia com isso". Ao contrário, respondi, eu me sentia honrada, de verdade.
Meses depois, novo telefonema: a biblioteca estava pronta, queriam que eu fosse inaugurá-la. Antes, uma visita ao lugar. Refeitório, oficina, ateliê, algumas celas com berços para os filhos – várias presas tinham crianças pequenas, que até certa idade poderiam ficar com a mãe – e a modesta biblioteca me pareceram normais. Havia setores onde não pude entrar. Imaginei que seriam as solitárias.
Não acredito que fossem o chiqueiro imundo de presídios que conheço via imprensa e outros relatos, mais uma prova de que o ser humano tem um lado sombrio preocupante, pois aquilo não é decidido e administrado por psicopatas, mas por pessoas no cumprimento da lei (as perguntas seriam: que pessoas e que leis?).
Vendo minha emoção, minha acompanhante dizia: "Não se impressione demais, aquela vovozinha desdentada matou os três filhinhos da amante do marido. Aquela moça com cara de anjo esfaqueou e mutilou o marido, que a traía". Mas a maioria dos casos, ela me disse, era de "crimes do coração".
Mulheres de todas as idades estavam ali em lugar de seu companheiro: numa batida policial, o traficante botara a droga embaixo do travesseiro, nas roupas dela ou do bebê, e fugira. Apanhada, a pobre fora para a prisão no lugar dele, e em geral elas aceitavam tudo sem o acusar.
No fim da visita, hora de inaugurar a biblioteca, descerrando a placa que me deixaria presente ali definitivamente. Fiquei aflita. O que dizer àquelas mulheres, algumas jovenzinhas, outras já envelhecidas, olhos magoados de criança surrada ou duros como punhais? Eu não havia preparado nada. Não dou conferências.
Converso com as pessoas, divido com elas minha curiosidade ou reflexões. Ali fiquei insegura, me senti pequena, quase miserável – tudo o que eu dissesse estaria errado.
Logo eu voltaria para as ruas, para minha casa, para minha família. Elas ficariam lá, justa ou injustamente, por alguns anos, muitos anos, a vida toda.
Entendi que a única saída era a sinceridade: disse-lhes sem rodeios que estava me sentindo mal, que não tinha palavras, que me incomodava a liberdade de sair em seguida, enquanto elas ficariam.
Não me importavam, ali, nem justiça nem injustiça. Importava o que poderia lhes dizer de pessoa para pessoa.
Lembrei, então, a frase de meu pai para alguém que o visitava quando eu era mocinha, e que me foi relatada anos depois. Estendendo a mão para as fileiras de livros em suas paredes, meu pai apenas disse: "Estes são os meus amigos".
Pois para elas, ali prisioneiras, os livros também poderiam ser conforto e distração. Porta e janela para o mundo. Aula de psicologia, de história, de qualquer matéria. Momento de beleza. Hora de chorar.
Ocasião de abrir os olhos para qualquer coisa que ajudasse a diminuir a dor e dar esperança.
Possibilidade de conhecimento de si, dos outros, de tudo. Entre as modestas prateleiras, estava algo que ninguém poderia lhes tirar: a liberdade de pensar e de sentir, a liberdade de ser gente.
Recordei aquele episódio lendo outro dia notícias sobre a moça presa entre dezenas de homens: ser menor de idade era um detalhe, pois mulher alguma, dos 8 aos 80, pessoa alguma, homem, mulher, adolescente ou criança, pode ser tratada como um animal.
Aliás, corrijo: animal algum pode ser jogado no lixo, em uma cela imunda, apinhada de seres desesperados, enquanto lá fora, nos tribunais e nas cortes, se pronunciam em tom solene palavras pernósticas e frases complicadas sobre justiça, direito e lei.
Enquanto houver uma cela com quarenta homens ou mulheres quando lá caberiam dez, com 100 quando caberiam quarenta, enquanto houver pátios sujos de sangue, urina e fezes, enquanto houver tortura, maus-tratos e injustiças que gritam aos céus, não teremos direito de falar em lei e direito neste país.
Seremos todos, direta ou indiretamente, malfeitores.
Lya Luft é escritora
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