quarta-feira, 16 de janeiro de 2008



16 de janeiro de 2008
N° 15481 - David Coimbra


A dança louca de Barragán

A noite mais aflitiva da minha vida eu a passei no alto de uma montanha da Colômbia, no território conflagrado das Farc.

Lembrei esta semana do que me ocorreu na época, ao ver pela TV, nas matérias sobre os reféns libertados pela guerrilha, paisagens e personagens semelhantes aos que lá encontrei. Aconteceu algo, no meio daquela noite, algo muito estranho, quase inexplicável, de que nunca me esqueci, e que vou contar agora.

Naquele ano, 2001, fui à Colômbia para cobrir a Copa América. Já saí do Brasil com a idéia de fazer reportagem sobre as Farc e entrevistar um guerrilheiro. Em meio à competição, fui apurando a matéria.

Quando o Brasil foi eliminado, naquela fiasqueira contra Honduras, resolvi me dedicar inteiramente à tarefa de achar os guerrilheiros. Não foi fácil. Alugamos um carro, eu e o fotógrafo José Doval, com um motorista colombiano.

Pusemo-nos a subir as montanhas dos Andes e não paramos mais. Cruzamos por 15 montanhas durante mais de 10 horas. Em cada pequeno povoado que entrávamos, lugarejos destruídos pela guerra, semi-abandonados, paupérrimos, os habitantes nos diziam o mesmo:

- Vocês não vão voltar. Vocês vão ser seqüestrados pela guerrilha e não vão voltar mais.

Só que não deparávamos com guerrilheiros que nos seqüestrassem ou que nos dessem entrevista. Por volta das dez ou onze da noite, havíamos subido 3.600 metros.

Estávamos num pueblo, Barragán, em que sobravam apenas 12 famílias. O resto do povo fugira para as cidades, Andes abaixo. Alguns moradores, desconfiados, nos informaram que os guerrilheiros poderiam ser encontrados em Santa Lucia, no alto da montanha.

Lá fomos nós.

Não rodávamos por uma estrada - era uma picada coberta de pedregulhos, um dos quais se chocou com o tanque de gasolina, perfurando-o.

E esta era a nossa situação: estávamos no meio da selva, ladeados por um precipício e uma parede de pedra, no escuro da noite, dentro de um carro avariado que em minutos pararia para não mais andar.

Se ficássemos ali, poderíamos ser abalroados por um caminhão das Farc e cair no abismo, ou poderíamos ser atacados pelos paramilitares, algo assim. Tínhamos de retornar. Demos meia-volta e descemos rumo a Barragán, os olhos colados no mostrador de gasolina. Chegamos ao lugarejo exatamente quando o carro morreu.

Não havia oficina por perto, nem ninguém que consertasse o carro. Não tínhamos onde passar a noite, nenhum morador atendia quando batíamos nas portas. O frio aumentava a cada minuto.

Depois de muita insistência, convencemos o dono de uma venda a nos acolher. Ele nos trouxe cobertores, abriu algumas latas de sardinha e serviu-nos uma cachaça branca que é bebida na Colômbia. Em seguida, preparou um omelete bem razoável e ligou o rádio. Tocava uma salsa colombiana.

E aí aconteceu o que queria relatar: nós começamos a dançar. Sem combinação prévia, eu, o fotógrafo e o motorista nos levantamos e dançamos em volta da mesa, enrolados nos cobertores, feito índios, rindo e cantando.

Dançávamos de alegria por ter arranjado comida e agasalho. Continuávamos sem ter como sair daquele lugar, continuávamos em perigo, mas aquele breve conforto nos rendeu um momento de júbilo como poucos que experimentei na vida.

No dia seguinte, fomos a Santa Lucia de carona em um caminhão de tambo de leite. O lugarejo era da guerrilha, ali não havia governo da Colômbia, polícia, exército, nada. Ali era a guerrilha.

Os soldados das Farc, aos nos verem, se ouriçaram. Nos ameaçaram com suas metralhadoras, em certo momento cheguei a temer por nossas vidas.

Mas tudo deu certo, eu os entrevistei, consegui a matéria. No fim, agradeci pela derrota da Seleção. Até porque, no ano seguinte, o time de Luiz Felipe conquistou o Penta.

Mais tarde, ao lembrar de tudo o que passamos e ao pensar mais especificamente naquela noite em Barragán, na nossa dança espontânea, surpreendente e meio maluca, concluí que a vida, realmente, é simples. E que, realmente, é fácil ser feliz.

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