sábado, 26 de janeiro de 2008


Diogo Mainardi

359 passos ao redor do mundo

"Se filosofar é aprender a morrer, a paternidade é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres de espírito, a filosofia das massas. É a única filosofia ao alcance de gente como Tom Cruise e eu"

Edmund Hillary morreu em 11 de janeiro. No mesmo dia, meu filho deu 359 passos. Escalar o Monte Everest, como fez Edmund Hillary, pode parecer um feito um tantinho mais notável do que dar 359 passos, como fez meu filho.

Mas, para quem tem uma paralisia cerebral como a dele, dar 359 passos seguidos, sem ajuda, sem cair, sem espatifar os dentes, é um evento épico, pelo menos na mitografia familiar.

Se meu filho é Edmund Hillary, eu só posso ser seu sherpa, Tenzing Norgay. Ele cambaleia de um lado para o outro, com sua marcha incerta, progredindo lentamente de metro em metro, eu me mantenho na retaguarda, indicando-lhe o caminho menos acidentado e salvando-o das quedas.

Os 359 passos de meu filho foram dados em Veneza. Já estamos planejando nossos próximos desafios. Em primeiro lugar, daremos 359 passos no Corcovado. Depois disso, 359 passos na Muralha da China.

Depois disso, 359 passos no Deserto do Saara. Depois disso, 359 passos na Acrópole. Depois disso, 359 passos no Monte Everest. Meu filho e eu daremos a volta ao mundo a pé, de 359 passos em 359 passos.

Sou um pai dedicado. O único aspecto frustrante de ser um pai dedicado é que agora todos os pais parecem ser igualmente dedicados. Time publicou uma reportagem sobre o assunto.

Ela mostra como os pais passaram a se sujeitar cada vez mais às necessidades dos filhos, desempenhando uma série de tarefas maternais.

De acordo com a reportagem, nós, pais dedicados, formamos uma nova categoria social. Mais do que isso: pertencemos a uma nova espécie. Até nosso nível de testosterona é inferior ao dos outros pais. Sou um sherpa hermafrodita.

Montaigne também era um pai dedicado. Num de seus ensaios, ele discorreu sobre o afeto paterno, ostentando sua filha Léonor, assim como eu ostentei meu filho Edmund Hillary e Tom Cruise ostentou sua filha Suri. Léonor foi a Suri do Renascimento. Em outro ensaio, Montaigne argumentou que filosofar é aprender a morrer.

Depois de uma longa temporada de férias com meus filhos, estou perfeitamente preparado para a morte. Além de ser emasculado por meus filhos, fui subjugado por eles. Deixei de existir.

Perdi a vontade própria. Desencarnei. Se filosofar é aprender a morrer, a paternidade é a filosofia do homem comum, a filosofia dos pobres de espírito, a filosofia das massas. É a única filosofia ao alcance de gente como Tom Cruise e eu.

No penúltimo dia de férias em Veneza, fomos a uma mostra fotográfica sobre a Aktion T4, o programa secreto de extermínio de deficientes físicos e mentais na Alemanha nazista.

Entre 1940 e 1941, 70.273 deficientes foram mortos, muitos dos quais crianças. Quando a SS assumiu o controle do programa, seu nome mudou para Aktion 14F13.

Até o fim da guerra, outros 200.000 deficientes foram mortos nas câmaras de gás dos campos de concentração. O Edmund Hillary da paralisia cerebral e seu sherpa hermafrodita ganharam uma nova meta: 359 passos em Buchenwald.

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