terça-feira, 15 de janeiro de 2008



15 de janeiro de 2008
N° 15480 - Cláudio Moreno


Da taça aos lábios

Anqueu, filho de Posêidon, era um dos heróis que tripulavam o navio dos Argonautas, na lendária viagem de Jasão em busca do velocino de ouro.

Quando Tífis, o timoneiro, morreu de uma doença misteriosa, foi Anqueu o escolhido para assumir o seu lugar, pois, sendo filho do deus do mar, conhecia mais do que ninguém o lugar das estrelas no céu e o ritmo oculto das marés.

Guiado por sua mão segura, o navio Argo foi e voltou da distante Cólquida, ingressando para sempre na galeria dos mitos imortais.

Quando Anqueu voltou para seu reino em Samos, a vindima daquele ano estava praticamente concluída, e os intendentes do palácio apresentaram-se com uma excelente notícia:

a parreira que ele tinha plantado com as próprias mãos, alguns anos antes, tinha produzido uma uva abundante, e o primeiro vinho feito com ela estava pronto para ser bebido.

Para Anqueu, esta era uma notícia realmente especial, pois assim se desfazia a sombra de uma estranha maldição que pairava sobre ele: um de seus servos, revoltado com o árduo trabalho do plantio, havia predito que ele não viveria o bastante para provar o produto deste vinhedo.

Agora, porém, o vinho estava ali, ao alcance de sua mão, na taça cheia que lhe estenderam.

Com um sorriso triunfante, Anqueu ergueu-a na luz para apreciar o belo tom sangüíneo da bebida; depois, levou-a junto às narinas e aspirou o perfume quase selvagem, que lhe trouxe à lembrança as encostas ensolaradas de sua ilha.

No entanto, antes de beber, mandou trazerem à sua presença o servo que o amaldiçoara. "Olha bem", disse ele, "vou engolir a tua profecia juntamente com este vinho!".

O servo, contudo, não se deu por vencido: "Senhor, lembra-te que da taça até a boca muita coisa pode acontecer!". Nesse momento, com efeito, entrou um lavrador esbaforido, gritando que um grande javali estava destruindo as plantações.

Sem hesitar, Anqueu depôs a taça sobre a mesa, pegou a lança e saiu no seu encalço - para morrer minutos depois, com a artéria da coxa seccionada pela presa afiada do traiçoeiro animal.

Por que paraste, Anqueu? Por que foste perder tempo mandando buscar o escravo, por que foste combater aquele estúpido javali?

Eras sábio para ler as estrelas e as profundezas do mar, mas ignoraste a mais antiga das regras: quando a vida, que nem sempre é generosa, resolve encher nossa taça, bebamos!

Quando esse raro vinho está servido, não é hora de acertar contas antigas, não é hora de se preocupar com os negócios. É bebê-lo - ou perdê-lo para sempre, levando para a morte a tortura de não saber, afinal, que gosto ele teria na boca.

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