quarta-feira, 16 de janeiro de 2008



16 de janeiro de 2008
N° 15481 - Sergio Faraco


Tradutores

Em 1990, decorrido um lustro da morte de Mario Arregui, publicou-se em Montevidéu, pelo Editorial Monte Sexto, o livro Mario Arregui & Sergio Faraco: Correspondência.

Trazia as cartas que trocamos nos anos 1981 - 1985, período em que lhe traduzi as obras lançadas no Brasil, Cavalos do Amanhecer e A Cidade Silenciosa.

Essas cartas serão publicadas em 2008, se minha nostalgia permitir que conclua a tradução: a todo instante me pego a relê-las, em vez de trabalhar.

Conhecer Arregui pessoalmente, tê-lo em minha casa naquele verão de 1982, tão culto e tão incivil, ouvi-lo dissertar sobre literatura inglesa e recitar William Blake ao mesmo tempo em que punha a cinza do cigarro no açucareiro e logo o esmagava no carpete, foi algo não menos do que fascinante.

E como amava a literatura! Relendo as cartas, assombrei-me ao recordar que às vezes discutíamos longamente... sobre uma vírgula!

Em nossos primeiros contatos, ele se surpreendeu quando pedi que lesse os contos já vertidos: não entendia o português, reclamava, e haveria de estranhar muitas coisas em vão.

Eu lhe respondi que era exatamente o que desejava, que estranhasse tudo, de modo que, justificada ou não sua estranheza, todos os pormenores fossem abordados e esclarecidos. É um procedimento que sempre adotei nos livros que traduzi de autores vivos, a possibilidade de errar é bem menor.

Assim fiz com Eduardo Galeano, em De Pernas pro Ar e O Teatro do Bem e do Mal, antes do correio eletrônico: trocávamos faxes quase diariamente. Não quero dizer com isto que sou um bom tradutor e sim que me esforço para sê-lo.

Meu tradutor venezuelano, olha só, nunca falou comigo, e eu sempre me perguntava como ele teria conseguido entender aqueles contos de acentuado vocabulário fronteiriço. Um dia resolvi me ler em espanhol, coisa que, até então, não tinha feito.

No conto Guapear com Frangos, López vai levando para casa, numa zorra amarrada à cincha de seu baio, o cadáver de um afogado.

É um morto velho, já um tanto decomposto, e López, assoleado, o estômago revolto, apeia do cavalo e vai sentar-se debaixo de uma sina-sina para, diz o narrador, "tomar um alce", isto é, buscar um alento, folgar, respirar melhor. Imagina o fulano olhando de viés para tal expressão e tentando decifrá-la.

E conseguiu?

Bem, para os leitores da Venezuela, López desce do cavalo, senta-se sob a arvoreta e, de repente, como um deus ex-machina, passa um alce a galope, vai ver que recém-chegado do hemisfério norte e apavorado com o caliente arenal do Rio Ibicuí...

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