quinta-feira, 31 de janeiro de 2008



31 de janeiro de 2008
N° 15496 - Luis Fernando Verissimo


No que se parecem

No que Kaká e Tom Cruise se parecem? Os dois são admirados pelo que fazem e criticados pelo que acreditam. Não seriam criticados pelo que acreditam se não fossem artistas conhecidos com caras de bons moços.

Um declara que pertence a Jesus, o que não deixa de ser elogiável nesta época em que tantos jogadores de futebol pertencem a empresários nem sempre escrupulosos, mas os líderes da sua igreja, a Renascer em Cristo, estão tendo que explicar à justiça americana o que fazem com o dinheiro dos fiéis.

O outro é hoje o mais conhecido adepto da Cientologia, uma mistura de religião, filosofia e negócio de auto-ajuda que saiu pronta da cabeça de um escritor de ficção científica, entre outras coisas, chamado L. Ron Hubbard, nos anos 50. Ninguém teria nada a ver com a religião dos moços se eles não fossem celebridades e sua notoriedade não servisse para propagar suas crenças no mínimo discutíveis.

Mas a discussão é boa: o que torna uma crença mais, digamos, exótica do que outra? É fácil lamentar a exploração da fé de certas seitas neo-pentecostais e ridicularizar as esquisitices da Cientologia, mas todas as religiões do mundo exigem a mesma suspensão do bom senso dos seus seguidores.

O que católicos, protestantes históricos, muçulmanos e judeus precisam acreditar para serem fiéis sinceros só perde em estranheza para as novas igrejas porque suas religiões são mais antigas. A mais jovem delas tem quatro séculos. Todas têm a respeitabilidade indiscutível que vem com a idade.

Nada a ver com a Igreja da Boa Vida em Miami apoiada por Kaká ou a invenção auto-promocional de um excêntrico que Tom Cruise e outros em Hollywood (John Travolta, por exemplo) promovem. Mas com o tempo, apesar de suas doutrinas e práticas, estas também serão instituições antigas, e respeitáveis.

No que Jerome Kerviel, responsável por um rombo de 50 bi euros no banco Société Générale da França, se parece com o anônimo milionário da Arábia Saudita que encomendou o roubo dos quadros de Picasso e Portinari do MASP?

Se tivessem ficado com o produto do roubo, nenhum dos dois poderia ostentá-lo. Nada que Kerviel fizesse com o dinheiro desviado, mesmo que doasse ou queimasse a maior parte e ficasse só com um bi ou dois para os croissants deixaria de chamar atenção.

O milionário saudita só poderia pendurar os quadros no seu quarto ou no seu banheiro e jamais mostrá-los em público.

Mas nem o francês, pelo que se sabe até agora, queria ficar com o dinheiro nem o saudita tinha intenção de exibir os quadros.

Os dois foram movidos pelo amor à arte. No caso do francês, a arte de manipular bilhões com o teclado de um computador e descobrir até onde poderia ir com o seu poder mágico antes de chegar ao absurdo, no caso do saudita a arte pela arte, pelo puro deleite da contemplação solitária. Dois heróis - ou que outro nome mereçam - do nosso estranho tempo.

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