sábado, 19 de janeiro de 2008



19 de janeiro de 2008
N° 15484 - A Cena Médica | Moacyr Scliar


Nem sempre o psiquismo é o mais importante

Este belíssimo filme que é A Loucura do Rei George III (disponível nas locadoras) conta a história verídica do soberano inglês que, no final do século 18, começou a apresentar distúrbios mentais tão graves que tiveram de afastá-lo do trono.

Durante muito tempo, o diagnóstico (retrospectivo, claro) foi de psicose. Mas, então, no começo dos anos 70, dois psiquiatras, Ida MacAlpine e seu filho Richard Hunter, revisaram os antigos prontuários médicos do rei e tiveram sua atenção despertada por um detalhe que não tinha sido valorizado: a cor da urina do rei, que era vermelho-escuro.

Essa estranha coloração, sabe-se hoje, sugere uma doença metabólica chamada porfíria, que é hereditária e na qual há falta de uma enzima que destrói substâncias químicas chamadas porfirinas. O acúmulo dessas no organismo se traduz por vários sintomas, inclusive mentais, como depressão e delírio.

O diagnóstico não pôde, obviamente, ser comprovado, mas a probabilidade de que seja verdadeiro é grande (outros membros da família real tiveram quadros semelhantes) e nos chama a atenção para um problema importante: muitas vezes, doenças mentais ou psicológicas resultam, na verdade, de problemas orgânicos.

O psiquismo pode fazer uma pessoa adoecer ou ter sintomas. Isso é uma coisa que se sabe há muito tempo. No século 19, eram comuns, sobretudo em mulheres (então muito reprimidas), as paralisias de natureza histérica.

De repente, a paciente não podia mexer um braço. Neurologicamente, estava tudo bem, mas a paralisia estava ali, e era resultante unicamente de um problema mental. Situação parecida é a da pseudociese ou falsa gravidez.

Mulheres que desejam desesperadamente ter um filho, de repente, vêem o seu ventre crescer, como se contivesse um útero grávido (mas é ar engolido).

E, através do estresse, o psiquismo pode fazer surgir doenças às vezes graves. Não é de admirar que, em meados do século 20, a psicossomática estivesse em alta (o termo vem da soma de psique, ou mente, mais soma, palavra que em grego quer dizer corpo).

Aos poucos, porém, o pêndulo começou a voltar para a posição de equilíbrio, quando se descobriu que doenças atribuídas a uma causa psíquica podem resultar de problemas orgânicos e até mesmo de infecção: o caso da úlcera péptica, classicamente atribuída à tensão emocional.

Em 1982, dois pesquisadores australianos, J. Robin Warren and Barry J. Marshall, sugeriram que a úlcera podia ser causada pela bactéria Helicobacter pylori.

A hipótese não foi muito bem acolhida e, num esforço para demonstrar a sua veracidade, Marshall engoliu uma cultura da bactéria. Logo, desenvolveu gastrite, que é um estágio precursor da úlcera. E teve de tomar antibióticos por insistência de sua mulher, que não suportava mais o mau hálito do paciente.

Doenças neoplásicas, como tumores cerebrais e tumores abdominais (pâncreas, cólon), também podem dar sintomas psíquicos. Nessas circunstâncias, dar um tranqüilizante, por exemplo, pode representar uma irrecuperável perda de tempo.

Daí emerge uma regra há muito seguida pelos profissionais experientes: em quadros obscuros, com sintomatologia psíquica, primeiro é preciso afastar as causas orgânicas. Uma regra que o pobre rei George III aplaudiria de pé.

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