03 DE MAIO DE 2022
TICIANO OSÓRIO
Por que eu parei de ver trailers
Dias atrás saiu o trailer de Thor: Amor e Trovão, novo filme de um dos meus super-heróis favoritos. Fugi como se fosse de Hela, a deusa da morte, segundo a mitologia nórdica, de onde veio a inspiração para o personagem da Marvel.
Também não vi nada do trailer da quarta temporada de uma das séries preferidas aqui em casa, Stranger Things. E garanto que não clicarei no de Killers of the Flower Moon, o próximo trabalho de um dos meus diretores prediletos, Martin Scorsese.
Não são casos pontuais. Assumo o contrassenso de ser um crítico de filmes e séries que não vê trailers.
A gota d?água foi o de Tempo. A propaganda matou a alma do negócio. Como se espelhasse a situação vivida pelos personagens, fez o suspense de M. Night Shyamalan estrear já um tanto envelhecido. Porque revelou demais do que ocorre na praia deserta e paradisíaca onde um grupo de veranistas começa a sofrer os efeitos do tempo de um modo terrivelmente rápido.
O conhecimento prévio e a memória visual inibiram o espanto pretendido pelo cineasta craque em pregar peças no público - vide O Sexto Sentido, Corpo Fechado, A Vila e Fragmentado. O marketing sabotou o nítido esforço de intrigar o espectador - vide as posições de câmera e os enquadramentos que escondem as transformações corporais.
Não consigo entender esses trailers que dão spoilers - e sem alerta, como nós, críticos, costumamos fazer. Para não correr riscos, fecho os olhos, tapo os ouvidos, puxo conversa com a esposa ou com as filhas. Ao ver um filme, várias vezes já me flagrei puto comigo mesmo por gravar detalhes e puto com os estúdios por, mesmo que fora de ordem cronológica, exibirem detalhes referentes ao clímax da trama. Piores são os trailers que simplesmente resumem toda a história, do início ao quase fim.
Digo que não entendo, mas é discurso retórico. Sei direitinho o que os estúdios de cinema fazem. Não tem bobo em Hollywood. Esses trailers extremamente expositivos existem porque a maioria do público quer certeza e segurança, e não mistério ou desafio. As bilheterias comprovam: são sucesso os super-heróis, com zero risco emocional (via de regra, eles vão vencer), as franquias, as continuações, os recomeços.
O comportamento da plateia reflete o dos relacionamentos amorosos contemporâneos, conforme descreveu a quadrinista sueca Liv Strömquist em A Rosa Mais Vermelha Desabrocha: O Amor nos Tempos do Capitalismo Tardio ou Por que as Pessoas se Apaixonam Tão Raramente Hoje em Dia. Dosando leveza e profundidade, citando filósofos como Slavoj Zizek e Byung-Chul Han e astros como Beyoncé e Leonardo DiCaprio, Strömquist mostra como a sensação do fall in love (literalmente, cair no amor) vem sendo substituída por uma visão consumista. A racionalidade subjuga o romantismo. Escolhemos - no Tinder, por exemplo - uma pessoa como se fosse uma mercadoria: queremos que ela venha sem defeitos. Rejeitamos surpresas e incertezas.
O narcisismo extremo da sociedade capitalista e da era das redes sociais provocou o desaparecimento do outro. Não buscamos o outro, mas "espelhos que confirmam o sujeito narcisista em seu ego". Ou seja, evitamos o diferente e assistimos a mais do mesmo; nos aboletamos em uma zona de conforto em vez de nos permitirmos mergulhar no desconhecido para encontrar aquilo que o pensador Roland Barthes definiu como "inclassificável, de uma originalidade sempre imprevista" - lembrem o que dizemos quando apaixonados: Ele é único! Não há ninguém como ela!
No cinema, parcela considerável do público age como se estivesse comprando um sofá, e não apreciando uma obra de arte. Portanto, os trailers precisam mostrar tudo o que vem junto do ingresso: as cenas de ação, as melhores piadas, os efeitos visuais, os momentos de choro. Do contrário, o espectador pode se sentir lesado - ou traído, para voltarmos ao terreno amoroso.
Pelos mesmos motivos, sites e canais no YouTube dedicam-se a explicar o final dos filmes. Se há oferta, é porque há demanda: gente que não aceita supostas imperfeições - que, no seu somatório, conferem originalidade e características únicas. Gente que não tolera a multiplicidade de interpretações - o que, no campo dos relacionamentos, equivale à força estranha e misteriosa do amor, capaz de nos tirar o chão.
*O colunista David Coimbra está em licença médica - INTERINO
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