Aqui voces encontrarão muitas figuras construídas em Fireworks, Flash MX, Swift 3D e outros aplicativos. Encontrarão, também, muitas crônicas de jornais diários, como as do Veríssimo, Martha Medeiros, Paulo Coelho, e de revistas semanais, como as da Veja, Isto É e Época. Espero que ele seja útil a você de alguma maneira, pois esta é uma das razões fundamentais dele existir.
quarta-feira, 31 de agosto de 2011
31 de agosto de 2011 | N° 16810
MARTHA MEDEIROS
Entre ser feliz e ser livre
Dizem que ainda vai chover muito no Sul e fazer frio até outubro. Meleca. O jeito é se conformar tendo um bom livro nas mãos, como o delicioso Casados com Paris, de Paula McLain, que narra, numa biografia romanceada, como foi o primeiro casamento de Ernest Hemingway. Ele tinha 21 anos e sonhava em ser um escritor famoso quando conheceu Hadley Richardson, de 28, que só desejava viver um grande amor. Eram os efervescentes anos 20, pós-Primeira Guerra.
Ambos viviam sonorizados pelo jazz, tendo como amigos Gertrude Stein e o casal Fitzgerald, e driblavam a lei seca com litros de uísque, vinho e absinto. O espírito é parecido com o do último filme de Woody Allen, mas o livro vai bem mais fundo no registro de época. Um prosa escrita em tom de pileque, com direito a uma ressaca braba no final.
Hemingway era, ele próprio, um personagem fascinante: trazia à tona as contradições mais secretas do ser humano. Sensível e rude ao mesmo tempo, demonstrava ser um homem com múltiplos talentos, menos o de se adaptar a uma felicidade de butique. Corria o mundo atrás de seus sonhos, e, não os encontrando, empacotava suas coisas e voltava ao ponto de origem, até que a próxima aventura o chamasse.
Amava os amigos, a bebida, o sexo oposto, a literatura e as touradas, não necessariamente nessa ordem: aliás, sem ordem alguma. Ele próprio era um animal belo, viril e destemido diante de uma arena perplexa. Havia sobrevivido a uma guerra que tentara lhe roubar a alma. Aprendera a se defender mesmo quando não era atacado.
Hadley acompanhava esse ritmo entre encantada e assustada. Não era fácil ser mulher de um homem que vivia aumentando as apostas: sentir mais, arriscar mais. Não fosse assim, seria a morte por indignidade, como ele definia a resignação. Logo, sua primeira esposa viveu no melhor dos mundos e no pior, quase simultaneamente.
O livro é narrado por ela, Hadley. É comovente ver sua luta interna para manter um casamento razoavelmente dentro dos padrões sem com isso podar o homem para o qual a felicidade não era um valor absoluto, mas a liberdade, sim. Hemingway nunca teve dúvida de que ser livre era bem mais necessário e menos complicado do que ser feliz.
Fácil para quem vivencia essa liberdade, difícil para quem tem que engoli-la. Hadley era tão encantadora e especial quanto Hemingway, ainda que sob outro ponto de vista. E é esse embate emocional que o livro narra de forma adorável e ao mesmo tempo angustiante: um homem que segue lutando para não entregar sua alma em nome das conveniências, e uma mulher que também não abre mão da sua, apesar das perdas que vier a sofrer.
Quem ganha é o leitor.
31 de agosto de 2011 | N° 16810
ARTIGOS - Esther Pillar Grossi*
Existe caminho
É absolutamente incompreensível a falta de lógica entre as notícias de frequentes e aterradoras avaliações de aprendizagem com índices terrivelmente baixos e as análises de seus porquês. Porém, muito pior ainda são os encaminhamentos ventilados e/ou postos em prática.
Na semana passada, foram divulgados os resultados de mais uma avaliação de conhecimentos realizada com 6 mil alunos, encomendada pela ONG Todos pela Educação. Ela foi aplicada em alunos que concluíram o 3º ano do Ensino Fundamental. Os resultados foram desastrosos, tanto em matemática quanto em leitura e escrita.
Que análises apareceram a partir desses resultados?
Segundo a matéria jornalística, a senhora secretária da Educação Básica do Ministério da Educação afirmou que, nos últimos anos, os governos municipais, estaduais e federal focaram mais na alfabetização nos primeiros anos do Ensino Fundamental, o que poderia explicar o resultado inferior em matemática. É muito corriqueiro em análises de resultados educacionais centrar-se em comparações, relativizando o valor absoluto dos dados.
É que na alfabetização os resultados também são péssimos – menos de 50% sabem ler e escrever, pois quem não consegue identificar personagem e tema de um texto não está alfabetizado. Ele está apenas alfabético, isto é, sabe decodificar sílaba por sílaba, mas perde a palavra como um todo e, portanto, não alcança o significado do que está escrito.
Concretiza o que acabo de explicar aquilo que contou uma professora de São Luiz Gonzaga sobre sua mãe. Relatou-nos que, pela manhã, sua mãe pega o jornal, lê uma manchete, sílaba por sílaba, e depois pergunta: “Minha filha, o que foi que eu li?”.
Somente quando se lê com compreensão, porque se consegue captar globalmente cada palavra, fecha-se um esquema de pensamento, que é o que pode ser registrado estavelmente no organismo, em nosso cérebro.
Então, esses alunos – mais de 50% dos que concluíram o 3º ano – não estão alfabetizados depois de três anos de escolaridade. A cada início de ano eles estarão em piores condições do que quando ingressaram no 1º ano. Eles começam o ano letivo seguinte na condição de quem fracassou, de quem não chegou aonde era esperado, aonde outros chegaram massivamente aos seis anos.
E o mais grave nesta situação é que eles se consideram responsáveis por seu fracasso. Eles é que foram desatentos, desinteressados, mal comportados e, para completar seu sentimento de culpa, eles concluem que não são inteligentes como os demais.
Aí, além de uma boa didática para a alfabetização propriamente dita, faz-se imprescindível uma poderosa pedagogia para desfazer o estigma de incompetência que se infiltrou no consciente e no inconsciente do nosso querido aluno, a quem se julgou muito justo e adequado conceder-lhe três anos para que se alfabetize.
Vejamos agora que solução se aponta para o problema. O pesquisador do Inep João Horta propõe um aumento da jornada escolar para resolver o problema. “Não tem como superar uma diferença tão grande em três, quatro horas de aula por dia.”
Ora, a causa do problema não está nas horas de aula que o aluno permanece na escola. As causas verdadeiras residem em uma didática para a alfabetização superada cientificamente e em uma decisão equivocada a respeito dos tempos escolares.
Uma criança que vem para a escola, oriunda de um ambiente alfabetizador empobrecido porque não conta com pessoas que leem e escrevem em sua casa, precisa de uma metodologia de ensino muito diferente daquela organizada para crianças filhas de pais que leem e escrevem. Não é que ela não possa se alfabetizar. Ela pode e bem, se o for em um ano letivo com uma didática atualizada e já disponível nos meios educacionais.
Existe caminho. Mas é preciso utilizá-lo.
*Educadora
31 de agosto de 2011 | N° 16810
PAULO SANT’ANA
Homenagem
A torcida do Grêmio, como se vê na foto, resolveu me homenagear no Gre-Nal de domingo passado, colocando meu nome e minha efígie numa grande bandeira.
Aceito a homenagem como prova da relação que travo com o Grêmio e o futebol nos meus espaços da RBS, nos últimos 40 anos.
Minha vida particular e íntima está ligada a este clube.
E, sempre que vou ao Olímpico, espocam de todos os lados manifestações da torcida dirigidas carinhosamente para mim.
31 de agosto de 2011 | N° 16810
DIANA CORSO
Deficiências e amores
A foto do jornal era de uma passeata peculiar, comemorava a abertura da Semana de Valorização da Pessoa com Deficiência. A imagem mostrava a Miss Deficiente Visual, Gisele Hübe, empurrando a cadeira de rodas de Juliana Carvalho, uma das idealizadoras do evento. Ou estaria Juliana guiando Gisele? Seria natural que a moça cega se beneficiasse dos olhos da cadeirante, que por sua vez contasse com as pernas da primeira.
Assim seriam os amores, onde um pode oferecer ao outro o complemento do que lhe falta. Mas se a deficiente visual conduzisse a cadeirante com sua capacidade de andar sem ver o caminho e fosse puxada pela mobilidade que é possível ter sem as pernas?
As pessoas com deficiência desenvolvem dons ímpares, eficiências relativas às quais os ditos normais somos também deficitários. Já pensou em andar vendado, fazer uma refeição ou vivenciar uma experiência artística sem enxergar?
Deveríamos fazer isso frequentemente para perceber como somos limitados em termos perceptivos. Da mesma forma, nos vínculos temos mais a oferecer a partir dos desafios que vencemos frente ao que nos faltou, do que das facilidades que recebemos.
As adversidades grandes ou pequenas que enfrentamos na vida nos obrigaram a nos inventarmos além do óbvio, elas estão na origem do que temos de mais interessante. Ao contrário de tornar-se gigolô das próprias desgraças, arauto da superação, de viver recolhendo uma admiração dízimo da pena; trata-se de aprender a ouvir como os que não veem, a ver como os que não ouvem. São dons criados, tão diferentes dessa fantasia de que dependemos de dádivas da natureza, ou da genética.
A vontade de um cadeirante de ir a algum lugar, por exemplo, é a expressão de um desejo do qual muitos são deficientes, eis o oposto da depressão.
Entre os amantes, é comum que se tornem imprescindíveis um para o outro porque se sentem, de alguma forma, inválidos. O somos todos, em tantos sentidos. Do ser amado esperamos que ilumine nossa escuridão, nos carregue para além das nossas forças, só isso.
A vida não é muito acessível mesmo, mas somando as saídas encontradas por cada um, os vínculos amorosos nos guiam e conduzem. Bem dizia minha avó: não procure alguém cujas qualidades combinam com as tuas, mas sim aquele cujos defeitos se encaixem nos teus. Acrescento, busque alguém cujas deficiências tenham se tornado soluções, seus obstáculos, saídas inusitadas.
Os revezes estão na origem de modos peculiares de viver, definem mais do que as capacidades. A questão não é o que o destino nos deu, mas sim o que conseguimos fazer a partir disso.
terça-feira, 30 de agosto de 2011
30 de agosto de 2011 | N° 16809
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
No tempo da Legalidade
Vivi, morando a duas quadras da resistência democrática, o episódio da Legalidade. Na tarde de 25 de agosto de 1961, minha tia Olha chamou-me para ouvir uma notícia espantosa: Jânio Quadros havia renunciado ao mandato de Presidente da República.
Eu ainda não votava, mas tinha esperança na figura daquele líder contraditório. Esperança em quê? Em que ele desse continuidade ao governo de Juscelino Kubitschek, o homem que havia construído 50 anos em cinco.
É certo que Jânio Quadros vinha se mostrando um primeiro magistrado bizarro. As notícias que eu ouvia de sua administração eram esquisitas ou extravagantes. Por decretos ou simples bilhetes, ele havia planejado a anexação da Guiana Francesa, proibido o maiô em concurso de miss, proscrito o lança-perfume, acabado com as brigas de galo, fulminado as corridas de cavalo em dias de semana. Não era o que se esperava de um estadista.
Nem mesmo de um estrategista. Jânio havia enviado o vice-presidente João Goulart em visita oficial à China, na esperança de que as ambições fardadas não permitiriam sua posse no Planalto. Os ministros militares vetaram Jango, mas não contavam com a oposição firme, corajosa e decidida de um gaúcho. Leonel Brizola empolgou o Rio Grande e logo o Brasil com sua conclamação à resistência ao golpe, pela Rede da Legalidade, instalada nos subterrâneos do Piratini.
Eu assisti a tudo isso muito de perto. A certa altura, meu avô, o patriarca da família, ante a ameaça de bombardeio do Palácio, decidiu que todos iríamos para a casa dos primos Rizzon, que nos acolheram magnificamente na Jerônimo de Ornellas. Dali partimos para Cachoeira – o desfile dos voluntários de Rio Pardo foi uma visão noturna inapagável.
Em minha terra, tudo foi festa, aí incluída a dos 15 anos de minha amiga Lia Pertille. As aulas estavam suspensas, havia reuniões dançantes todos os dias e seguíamos a cada hora o triunfo dos legalistas – Brizola à frente – até a derrota dos golpistas, os mesmos que menos de três anos depois deporiam Jango e inaugurariam a ditadura.
Mas isso então ainda estava distante. Eu era, à época, um garoto de 16 anos e aqueles dias ficaram para toda vida como um interlúdio inesquecível.
30 de agosto de 2011 | N° 16809
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Leitor adulto
Estive mais uma vez na Jornada de Passo Fundo, edição dos 30 anos daquele impressionante processo cultural, que tem sua face visível no evento bienal grandioso – circo com milhares de pessoas assistindo a figuras do primeiro plano nacional e internacional, acompanhado de seminários e encontros de leitores de todas as idades com escritores de todos os matizes – mas que tem permanente atividade numa extensa rede de encontros, leituras, debates, conversas, distribuição de livros, produção de programas para tevê etc., tudo isso ocupando a energia da UPF, da Tânia Rösing e sua extensa equipe, pelos meses afora.
No seminário que mais uma vez tive o gosto de coordenar, o Encontro de Escritores Gaúchos, havia bolado uma mesa-redonda que tinha por título “Literatura ao vivo”. Reuniu gente que promove eventos em volta do livro – estavam lá o Paulo Scott (inventor de vários eventos de temperamento pop, em Porto Alegre e agora no Rio de Janeiro), o Daniel Weller (pelas Maratonas de Leitura que coordenou), o Fernando Ramos (do Festipoa Literária) e a Katia Suman (que inventou o Sarau Elétrico – por sinal hoje tem, com a presença do mentor do sensacional site Obairrista.com).
Todos os quatro gente boa, fina, elegante e sincera, como deve ser.
Lá pelas tantas, uma professora presente, por sinal de Curitiba, fez uma pergunta sobre o que o pessoal da mesa achava de levar aqueles eventos às escolas, para motivar os alunos e para, por assim dizer, distribuir os frutos dessas iniciativas entre os alunos, especialmente os de baixo. Pergunta totalmente bem-intencionada, claro, mas que não teve resposta óbvia. Tomei eu mesmo a palavra, saindo de meu canto de coordenador, para pensar em voz alta. E me veio uma observação que repasso para o prezado leitor agora, no novo parágrafo.
É que esses eventos não são para o aluno escolar, especialmente não para crianças e adolescentes; pelo contrário, eles foram concebidos, talvez sem que isso fosse uma convicção explícita, para adultos, para leitores como eu e o amigo que agora acompanha estas linhas.
Este é o leitor em foco: aquele que já saiu da escola, aprendeu a ler e talvez tenha constatado que não aprendeu o suficiente, que gosta de ler em alguma medida, precisa dos livros, que gostaria de ler mais e melhor e por isso é uma criatura que gosta de compartilhar esse gosto e essa busca. Em suma, o leitor adulto leigo, que precisa cevar seu gosto. Não é?
30 de agosto de 2011 | N° 16809
PAULO SANT’ANA
Assuntos de saúde
Hoje, às 19h30min, no auditório do Hospital Mãe de Deus, estarei participando de um debate sobre prevenção, tratamento e pós-tratamento do câncer.
Junto comigo debaterão vários especialistas. O evento marca o lançamento do site do Instituto do Câncer Mãe de Deus (www.institutodocancer.com.br).
Discorrerei no debate sobre minha experiência de paciente com câncer e dos excelentes serviços prestados pela radioterapia em diversos hospitais gaúchos. O meu tratamento foi proverbial no COR do Mãe de Deus.
Convido a todos para este debate, principalmente aos que se relacionam ao câncer como profissionais ou pacientes.
Por sinal, o Centro Clínico Mãe de Deus completou ontem 15 anos de cuidados com a saúde do público gaúcho.
Os 157 médicos, das mais diversificadas especialidades, que compõem o seu quadro clínico, cuidam em média de 2 mil pacientes por dia, com o compromisso permanente do melhor atendimento no cuidado físico, mental e qualidade de vida de todos.
O psicanalista e psiquiatra Sérgio de Paula Ramos, especializado no tratamento de drogados, entrevistado pelo Roda Viva, reclamou de setores da imprensa que eram aliados à indústria das bebidas alcoólicas. Dispus-me a publicar trabalhos de sua autoria sobre o tema. Ele não se fez de rogado e mandou-me a carta que publico agora:
“Caro Sant’Ana. Não sei se tive o talento e a competência solicitados, mas, no anexo, a minha tentativa. Antes de mais nada, gostaria de te cumprimentar pela tua coragem.
Coragem que se evidencia tanto pelo jeito com que tens lidado com teu câncer e os efeitos colaterais de teu tratamento quanto pela oferta de teu espaço para a saúde pública. Escrevo ‘coragem em abrir o teu espaço para a saúde pública’, pois nesta área do álcool e do tabaco uma política consequente de enfrentamento exige a redução global de seu consumo.
Menos consumo de álcool, menos problemas. Menos problemas com nossos adolescentes, que estão começando a beber, em média, aos 13 anos, menos problemas no trânsito, menos problemas de violência e menos problemas com as outras drogas para as quais o álcool funciona como porta de entrada. Mas aí reside tua coragem, isto colide com os interesses econômicos de quem ganha dinheiro, direta ou indiretamente, com a venda do álcool e do tabaco.
Agora mesmo, estamos testemunhando mais um fato chocante que me deixa prostrado e com um enorme sentimento de impotência. Uma marca de cerveja, patrocinadora da Fifa, acaba de ‘obrigar’ o governo brasileiro a voltar a permitir a venda de bebidas alcoólicas nos estádios brasileiros durante a Copa do Mundo. Claro que a marca de cerveja não está preocupada com as 10, 15, 30 mil pessoas que estarão nos estádios.
Não, ela quer apenas que esse público beba para poder gerar imagens, estas, sim, importantes, para atingir, via TV, mais de 1 bilhão de pessoas, notadamente as jovens. A empresa ganhará muito dinheiro com isto, as agências de publicidade, a mídia em geral também, mas a população perderá. E aí é que entra em cena tua coragem. Ninguém na imprensa brasileira publicaria este alerta.
Mas tu, corajosamente, repito, estás fazendo isto e te conclamo a mais coragem. Não só a coragem de publicar esta, mas a de emprestar teu talento a esta causa, pois, afinal, no item álcool, quanto mais ganham a indústria e a mídia, mais perde a população.
Obrigado, Sant’Ana, hoje, à noitinha desta terça, estarei te ouvindo no auditório do Mãe de Deus”.
30 de agosto de 2011 | N° 16809
FABRÍCIO CARPINEJAR
O morto escuta
Sou místico, acredito no sobrenatural, em Deus, em anjos, fantasmas, duendes, rezo ao entrar no carro, faço sinal da cruz ao passar por igreja, enxergo coincidências e sigo rituais.
Quando pequeno, queria ser santo. Hoje, percebo que é difícil ser apenas um homem honesto.
Fiquei abalado pela história real de uma enfermeira mineira. Foi a descoberta espiritual mais importante de minha vida. Não dormi por duas noites seguidas relembrando as verdades ditas por aqueles olhos azuis enormes.
Ela trabalhou por 30 anos na Santa Casa de Misericórdia, cuidando e socorrendo pacientes terminais.
Confessou que a pessoa morre como ela viveu.
Os mais alegres têm despedida leve, tranquila, independente da enfermidade. Vão daqui para o outro lado sonhando. Não realizam drama, tampouco articulam chantagem. Tamanha a suavidade, não dá para identificar o último suspiro. Aceitam o destino, agradecidos pelo amor recebido.
Já os que estavam acostumados a reclamar de qualquer coisa também definham contrariados. Atolados de culpas e dívidas, esbanjam esgares de sofrimento, protestam pelas dificuldades adquiridas na doença, gritam a cada arrepio, lamentam ausência de atenção; o hospital nunca é bom, a dor sempre é insuportável.
Eles falecem com o rosto contraído, fechado, apunhalado. De quem apanhou da morte. Uma feição tensa, de escultura inacabada.
Mas, então, a enfermeira revelou um hábito surpreendente de sua equipe: conversar com o defunto.
Diante do morto sofrido, refratário e penoso, ela cochichava conselhos em sua orelha. Pedia para que ele reconsiderasse sua raiva, que desistisse da cara amarrada e emburrada, que se arrumasse para o velório e abandonasse o ressentimento.
Explicava que os familiares esperavam com ansiedade para vê-lo, que ele precisava se despedir bonito, que os parentes mereciam seu perdão e não valia a pena comprar briga por orgulho e teimosia.
Com as palavras delicadas de incentivo, não é que o morto ia soltando os traços e transformava a aparência na hora: libertava as bochechas, alforriava a boca, relaxava por completo.
O morto incrivelmente escutava. Entendia a súplica da enfermeira mesmo depois do seu fim. Atendia ao pedido e desinchava a amargura e serenava o espírito.
Nossos ouvidos não terminam com a morte. Continuam ouvindo onde quer que estejamos.
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
29 de agosto de 2011 | N° 16808
PAULO SANT’ANA
Três pênaltis, pra valer um!
O meu personagem do Gre-Nal, o meu herói do Gre-Nal, não estava em campo, mas ninguém esteve mais dentro do campo, em todos os lugares, do que ele.
O meu herói do Gre-Nal e do grande passo que o Grêmio deu ontem para fugir do rebaixamento foi indiscutivelmente Celso Roth.
Ele ontem quase virou ídolo da torcida tricolor. Por sinal, torcida que levou para o estádio ontem uma grande bandeira com meu nome e com minha fotografia. E dizer que para fazer a volta olímpica no estádio tenho que pedir autorização do incompetente de plantão, o que por sinal nunca me foi negado. Também pudera.
Obrigado, torcida tricolor, por esta homenagem quase póstuma que me prestou ontem.
Mas o meu assunto é outro, é sobre o herói do Gre-Nal, Celso Roth. Ele tirou do seu caldeirão de feiticeiro um avatar mágico, Escudero. Escudero foi a grande arma gremista para a legendária jornada de ontem. E ninguém esperava que Escudero fosse brotar e jorrar do caldo melífluo dos neurônios de Celso Roth, inundando o estádio e o Rio Grande inteiro do legítimo, incomparável e imortal orgulho tricolor.
Já cantei o meu herói. Mas aqui na redação de Zero Hora, na semana passada, um dos meus melhores amigos de jornalismo, Zini Pires, depois de o Grêmio ter perdido para o Atlético Goianense, o Zini me atirou na cara que eu apoiara a contratação de Celso Roth.
Doeu-me muito, mas esta dor ontem à tarde se transformou em orgasmo. Eu não sabia e não aceito, mas o Zini disse na minha cara que Celso Roth no Grêmio era obra minha. Vê-se agora que foi obra divina.
Roth deixou sempre dois gremistas a cuidar de Leandro Damião. Um marcava e o outro ficava ao lado, de soslaio. Com isso e com Escudero, Celso Roth tornou o Internacional irreconhecível em campo. Eu reconheci desde o primeiro minuto o Grêmio imortal em campo durante os 94 minutos.
Gremistas de todo o RS, ouçam-me. Onde é que vocês, gremistas, poderiam ler que foi preciso haver três pênaltis na área do Internacional para o árbitro cobrar só um? Onde, gremistas, vocês leriam esta esplêndida verdade? Só aqui nesta abençoada coluna que Deus me deu para eu ser justo.
Mais do que a vitória no Gre-Nal em si, ela encerrou um grande outro significado: o Grêmio distanciou-se relativamente da zona de rebaixamento, ainda mais que temos de enfrentar no próximo jogo o Corinthians, em São Paulo. Ainda não está afastado o perigo.
Pelo menos chega de perder Gre-Nal e títulos no Olímpico! Chega! Chega!
Marquinhos foi decisivo para os seis pontos que o Grêmio alcançou contra o Fluminense e no Gre-Nal.
E que coisa incrível é este fenômeno chamado Índio. Pois não é que ele, no auge da sua velhice, conseguiu ontem embarafustar-se por toda a área gremista e fazer aquele gol incrível que deixou a nós, torcedores gremistas de todo o planeta, mudos e inertes!
E é estranho que a torcida gremista praticamente não tivesse acreditado que poderia haver uma vitória tricolor: só houve 23 mil pagantes, quando eram esperados 40 mil.
Como eu tenho sofrido nos últimos meses! Mais ainda que com minha doença, tenho sofrido com o Grêmio. E a vitória de ontem foi um bálsamo para o meu sofrimento.
Como é delicioso iniciar uma semana debaixo de uma vitória no Gre-Nal, que coisa boa, que imensa felicidade nos invade e nos sossega. E nos faz acreditar que Deus reserva ainda doces refrigérios para a nossa existência sofrida.
Se o Grêmio conseguir um empate contra o Corinthians, então isso será tudo que pedimos ao destino.
Pode parecer também estranho que minha meta e a de todos os gremistas seja apenas fugir do rebaixamento, deixamos de ser aquele clube que sempre foi candidato a campeão.
Mas cada um com a sua meta, o que interessa é a meta.
E o Gre-Nal foi interessantíssimo para nossa meta.
29 de agosto de 2011 | N° 16808
LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL
O núcleo humano
O conceito de Cícero para a humanitas implica o desenvolvimento pessoal que leva em conta os aspectos éticos e estéticos do homem. Por mais que o mundo atual esteja longe disso, o que ficou evidente no século 20, precisamos acreditar que subsiste em cada mulher, em cada homem, um espaço apenas seu, em que restam intactos os valores da integridade, da solidariedade.
Há um momento em que esse homem e essa mulher, olhando-se ao espelho, olhando seus olhos e os traços do seu rosto, caem em si mesmos: “Há algo em mim que não morreu”. Esse algo é o núcleo humano.
Na infância, ele não existe, ao menos como núcleo, pois a criança é, toda ela, humanidade em ação. Os desejos infantis estão todos visíveis, e não há distância entre o que se diz e o que se pensa. Mesmo as pequenas maldades são perpetradas na inocência.
Aliás, nenhuma criança se indaga a respeito de si, pois seus desejos e suas vontades ligam-se a ações imediatas. Daí a surpresa dos castigos, de que nenhuma criança se julga merecedora.
Na adolescência e na juventude algo da consistência imaterial da pessoa começa a recolher-se. Começa a haver um lapso entre o que a boca diz e o que o núcleo sente. É o momento da afirmação perante os outros, em que as máscaras cumprem o papel de filtro para o sofrimento.
Ao jovem, o que importa é a vida. A preocupação com o tempo, essa, surgirá depois.
A idade madura é o estágio da maior invisibilidade do núcleo humano. Ele está ali, presente; sentimos que existe, queremos que exista, mas é preciso que ele ali se mantenha, como salvo-conduto de nossas ações: “Fiz essa indignidade, mas sei que algo de mim é verdadeiro e bom”.
Na velhice o fenômeno se inverte. Nada mais há para ganhar; nada para perder. A vida plenamente vivida, ou mesmo falhada, a consciência de não ser eterna, certo tédio para encarar as inconstâncias alheias, autorizam a pessoa a liberdades imprevistas.
É este o momento em que os velhos são tachados de ridículos mas, feitas as contas, estão apenas à busca de seu núcleo humano, que não sentiram nem perceberam encolher-se no transcorrer da vida. É o império do tempo, de quem ninguém escapa.
29 de agosto de 2011 | N° 16808
L. F. VERISSIMO
Jânio
Confissão. Meu primeiro voto foi para o Jânio Quadros. Não espalhe. Parafraseando o samba antigo: se eu soubesse, naquele tempo, o que sei agora, eu não seria este ser que tenta se explicar e explicar as anomalias da política brasileira. Que me lembre, estava-se votando contra a corrupção do governo Kubitschek, que Jânio varreria.
Mas Jânio não era só o anti-JK. Seu sucesso devia-se, em grande parte, a sua personalidade diferente, justamente ao fato de ser uma anomalia. Como aconteceria anos depois com o Collor, um Jânio Quadros sem a caspa. A suspeita de que fosse meio louco era uma credencial. O Brasil precisava de um presidente não convencional para fazer o que os convencionais não faziam. Mas Jânio foi anômalo demais.
Não sei se votei na figura excêntrica ou na sua promessa de limpar a sujeira de Brasília. A sujeira, vista desta distância no tempo, não parece tanta assim, a ponto de justificar o Jânio.
Não demorou para a História – ou a falta de memória – absolver JK, que hoje é homenageado como um presidente exemplar, e foi até citado como tal no discurso de posse do Fernando Henrique. Mas na época foi a corrupção do seu governo que levou muitos eleitores – inclusive estreantes como eu – a votar na vassoura.
Mais intrigante do que o breve governo do Jânio e o entusiasmo da maioria do eleitorado de então pelas suas esquisitices, que já prefiguravam o que viria depois, foi essa absolvição do Juscelino pelo tempo, essa sua lenta transformação de corrupto em exemplo.
Talvez enaltecer JK seja uma espécie de penitência por termos acreditado no Jânio, sua alternativa maluca. Eu não posso rasurar meu currículo de eleitor, mas a nação pode corrigir suas opções do passado, esquecendo-as. Também não perdoamos o Collor?
Ou talvez se tenha chegado à conclusão que, para Juscelino fazer o que fez, industrializando o país, construindo Brasília etc., a promiscuidade de governo com empreiteiras e empreendedores era quase obrigatória e, em retrospecto, louvável.
O governo só precisava se preocupar com eventuais críticas da UDN e de parte da imprensa, a Polícia Federal da época não se metia nessas coisas. Portanto, do governo JK, podia-se dizer que não era corrupto, era despreocupado. Fomos injustos com ele. Pela minha parte, um pouco atrasado, peço desculpas.
29 de agosto de 2011 | N° 16808
GRE-NAL
Sem ressalvas
Sem considerações. Sem ressalvas. Poucas vezes, na história mais que centenária do Gre-Nal, um time alcançou uma vitória tão irretorquível quanto foi a do Grêmio sobre o Inter, ontem, no Olímpico. O placar de 2 a 1 não reproduziu o que foi o jogo. Porque o domínio do Grêmio foi pétreo, foi absoluto.
Um dado dá a medida do que ocorreu no clássico: o Inter construiu uma única oportunidade real de gol, justamente a que acabou no gol de Índio: uma falta cobrada por Oscar que acabou na cabeça do zagueiro goleador do Inter, aos 26 minutos.
E foi só.
De resto, o Grêmio passou a tarde rondando a área colorada, ameaçando, sempre na iminência de marcar. O esquema de Celso Roth funcionou. Talvez tenha sido montado meio que às pressas, devido à lesão do volante Gilberto Silva, no sábado, mas funcionou. Principalmente porque o Grêmio soube aproveitar bem a habilidade dos seus laterais. Mário Fernandes teve uma atuação estrondosa.
Não errou um só lance. Venceu todas as divididas, não foi driblado uma única vez e, para arrematar, foi uma aguda arma de ataque pela direita. Foi dele a jogada do primeiro gol do Grêmio, aos 15 minutos: depois de ter ido à linha de fundo, Mário passou para trás, rasteiro. Marquinhos desviou com o bico da chuteira esquerda e comprovou sua vocação de meia que faz gols.
Antes disso, o Grêmio já construíra duas boas oportunidades de marcar, aos seis, com Julio César entrando livre na área e chutando cruzado para fora, e aos 11, quando Índio recuou errado e quase marcou contra. Muriel espalmou, a bola voltou para Julio César, que cruzou bem e André Lima perdeu na pequena área.
Julio César, aliás, foi uma arma eficiente do time gremista, sobretudo no primeiro tempo, levando vantagem sobre Glaydson a partida inteira, auxiliado pelo elétrico argentino Escudero, cruzando, batendo na diagonal, mas também recompondo na defesa, marcando com boa eficiência.
Mas quem demonstrou eficiência na marcação, mesmo, foram os zagueiros do Grêmio. Vilson e Saimon foram impecáveis. Saimon, que cada vez que entra arruma a defesa, ontem foi mais do que eficiente: foi um gigante. Porque marcou o melhor centroavante do Brasil na atualidade.
Com Saimon em seu encalce, Damião não conseguiu jogar. Saimon foi melhor na antecipação, na força e na bola aérea. Damião meteu a cabeça na bola só uma vez, no fim da partida, numa testada fraca que foi amortecida pelos braços de Victor.
Saimon deu-se o luxo de sofrer um pênalti, aos 27 minutos, não assinalado pelo árbitro. Quatro minutos depois, o Grêmio desenhou outra chance, numa jogada envolvente de Marquinhos e Escudero que terminou em um chute de Fernando defendido por Muriel. No primeiro tempo o Grêmio esteve próximo de marcar outras duas vezes, aos 37 e aos 45, em jogadas de Júlio César.
No primeiro tempo, portanto, foram sete chances para o Grêmio e uma para o Inter. No segundo, Escudero passou para Mário Fernandes dentro da área aos 13 minutos. Muriel derrubou o lateral do Grêmio. Outro pênalti não assinalado. Aos 23 minutos o Inter deu seu único chute a gol: Oscar, de longe. Victor espalmou para escanteio.
Bem marcado, Oscar não conseguiu dar suas usuais arremetidas rumo ao gol, mas ao menos foi insinuante em cobranças de falta e escanteio. Já Andrezinho, Kléber e Dellatorre se diluíram na marcação. Pouco participaram do jogo, ficaram assistindo à movimentação dos três meias gremistas, com destaque para Escudero, que, segundo Celso Roth, é um jogador “intrínseco”, seja lá o que o técnico quer dizer com isso.
Aos 32, foi Escudero quem entrou a drible na área do Inter. Índio o derrubou com um ombraço. Desta vez o árbitro marcou o pênalti. Enquanto Douglas se preparava para cobrar, o goleiro Victor cravava os joelhos na linha da grande área, enrolava-se todo, como se fosse um muçulmano orando para Meca, e, de fato, orava. No meio do campo, Fernando também rezava, ajoelhado. E, no ataque, André Lima erguia os braços para o firmamento, ele também em atitude de prece. Nenhum dos três viu a cobrança perfeita de Douglas: 2 a 1.
Mais três minutos e novamente Escudero invadiu a drible a área do Inter e chutou forte. Muriel espalmou a escanteio. Agora, Leandro já estava em campo, driblando, investindo em corrida vertical área adentro, tornando-se o atacante mais perigoso da tarde do Olímpico.
Aos 40, Leandro recebeu de Julio César, chutou, mas Índio interceptou. A partida terminou com o Grêmio retendo a bola, esperando o tempo passar para comemorar.
No final, o próprio técnico Dorival Junior reconheceu a superioridade do adversário. Não havia com não reconhecer. Não havia como fazer reparos. Talvez o Inter estivesse cansado, talvez estivesse desconcentrado. Pouco importa. Era o Inter de Oscar e Damião. Era o Inter campeão da Recopa. Era, afinal, o Inter e isso quer dizer que era Gre-Nal. Vencer Gre-Nal sempre é especial.
david.coimbra@zerohora.com.br
domingo, 28 de agosto de 2011
FERREIRA GULLAR
Uma experiência radical
O Manifesto Neoconcreto se caracterizou por não fazer promessa; foi a constatação do que estava sendo feito
Todas as pessoas, informadas nesse terreno, sabem que fui eu quem inventou o nome "neoconcreto", propus que criássemos um movimento com esse nome e escrevi o Manifesto Neoconcreto e a teoria do não objeto.
É verdade, também, como tenho dito, que nada disso teria sido possível nem teria consequências efetivas se se tratasse apenas de sacações minhas: de fato, não fiz mais do que formular o que já estava sendo criado pelos pintores, escultores e poetas que constituíam, àquela época, o grupo de concretistas do Rio de Janeiro.
E só por isso aquele movimento deu certo, marcando um momento de nossa história artística. Certamente, a tomada de consciência do processo de criação que o nosso grupo realizava foi um fator decisivo para o desdobramento que teria, pois era necessário que alguém formulasse teoricamente aquilo.
Coube a mim fazê-lo por ser eu, além de membro do grupo como poeta, também teórico e crítico de arte.
Sabemos todos, porém, que não é a teoria que produz as obras de arte, muito embora o processo criador exija a consciência crítica.
Desse equívoco estão cheios os manifestos dos diferentes movimentos de vanguarda do século 20, que, a exemplo dos manifestos políticos, prometem coisas que jamais serão realizadas.
Já o Manifesto Neoconcreto caracterizou-se por não fazer promessa nenhuma. Trata-se de um texto nascido da constatação do que estava sendo realizado: nos trabalhos de Lygia Clark, Amilcar de Castro, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Aluisio Carvão, Lygia Pape e dos poetas do grupo, algo surgira que diferia da concepção concretista herdada de Max Bill e dos conceitos da Escola de Ulm.
O fator principal dessa diferença era, no caso dos cariocas, o predomínio da busca intuitiva, ainda que sem romper com o rigor construtivo que caracterizava a arte concreta. A teoria do não objeto, por exemplo, surgiu como consequência de um trabalho de Lygia Clark que ela não sabia como classificar. Não era escultura, não era pintura, não era relevo. Entendi que era um objeto, mas um objeto sem função: só significação. Daí chamá-lo de "não objeto".
Disse, certa vez, que o primeiro "Bicho", de Lygia Clark, se inspirara no meu livro-poema "fruta". Mas observei, nesse mesmo texto, que era uma característica do nosso grupo a troca permanente de ideias e experiências, uma vez que estávamos frequentemente juntos a mostrar uns aos outros o que realizávamos.
A experiência neoconcreta foi muito rica, porque, particularmente no terreno das artes plásticas, levou às últimas consequências uma linha de experiência estética que começou no cubismo.
Esse processo de vanguarda terminou por desintegrar a linguagem artística. Resumindo: um dos objetivos surgidos dessa busca -a criação de uma arte não figurativa- conduziu Casemir Malévitch a pintar o quadro "Branco sobre Branco", que, a meu ver, estava a um passo do fim da pintura: a tela em branco. A saída que encontrou, então, foi abandonar a tela e partir para construções no espaço tridimensional, que chamou de "Construções Suprematistas".
Pois bem, Lygia, por outros caminhos, também chegou à tela em branco e -embora ignorando o que fizera o artista russo- partiu também para as construções no espaço tridimensional, que são os "Bichos".
Mas Lygia, antes de dar esse passo, desistira de pintar e passara a agir materialmente sobre o quadro, criando o que chamaria de "Casulos". Foi então que fiz os livros-poema, também para superar um impasse com que me defrontara ao escrever o poema "verde relva".
Ao ver que o leitor, diante da repetição da palavra verde, não lia o poema palavra por palavra, como eu pretendia, decidi escrevê-lo no verso das páginas, para obrigá-lo a isso. Intitulei-o de livro-poema porque ali poema e livro eram uma coisa só. O livro-poema "fruta" já não era um livro, embora feito em papel: o leitor o abria como se abrisse uma fruta, gomo por gomo.
Ao vê-lo, Lygia percebeu nele a solução para o impasse a que chegara e criou os seus "Bichos". No livro-poema, o manuseio não era invenção, já que livro é manuseável; nos "Bichos", sim.
Por isso mesmo o defini como "um ser novo no universo da arte". Era fascinante esse diálogo da poesia com as artes plásticas.
DANUZA LEÃO
Certos momentos
Ficou combinado que quem sorri muito é mais feliz do que os sérios, mas não sei se é mesmo fundamental
OUTRO DIA -era um sábado- saí de manhã para fazer umas coisas bem pouco interessantes, tipo comprar cabides, lata de lixo, um armário para a área etc.; mais sem graça, impossível. Quando terminei, eram 2h da tarde e eu estava com fome.
Por coincidência, quando vi, bem ao lado, um restaurante que adoro, de comida baiana. Entrei, pedi uma caipirinha e um acarajé.
Eu estava tranquila, tinha conseguido liquidar minha listinha e, sedenta e faminta, iria beber e comer exatamente o que queria. O restaurante foi enchendo, e a única mesa com uma só pessoa era a minha.
Algumas pessoas me olharam meio de banda, possivelmente achando estranho uma mulher almoçando sozinha num sábado de sol. Talvez tenham pensado que eu havia levado um bolo, ou que era uma pobre coitada que não tinha amigos com quem almoçar, ou sei lá mais o quê.
Terminei meu acarajé, que aliás estava ótimo, pedi mais uma caipirinha e uma moqueca de camarão.
Comi muito, mais do que deveria, mas estava tudo tão bom, mas tão bom, que eu acho que merecia.
Quando estou comendo, só presto atenção -e muita- ao que estou fazendo; mas quando terminei, e só então, comecei a olhar as pessoas.
Em uma das mesas elas eram seis, que conversavam alto, todas falavam, e pareciam alegres; em outra, um casal de turistas, tipo lua de mel, felizes da vida, e havia uma -também de seis- em que todos riam e gargalhavam, parecendo se divertir muito.
Aí fiquei pensando (uma mania que tenho). Será que os que riem e dão gargalhadas são mais felizes do que os que apenas conversam, talvez até sobre as mais banais banalidades? E mais do que os que estão sozinhos?
Ficou combinado que quem sorri muito, ri muito, gargalha muito é mais feliz do que os sérios, mas não sei se para viver bem -e não estou falando de felicidade- é mesmo fundamental estar sempre rindo.
Pensei que, se estivesse em qualquer daquelas mesas, não estaria melhor do que estava, ali, sozinha.
Quem inventou que rir é mesmo melhor do que não rir? Eu já ri muito, muito mais do que rio agora, e isso não me faz a menor falta; aliás, tenho horror aos profissionais em dizer coisas engraçadas, que são a alegria da festa, que fazem os outros gargalhar. "Vamos jantar sim, vai ter fulano, que é ótimo, divertidíssimo"; essa frase, aliás, já é uma boa razão para eu não ir.
Continuei mais um tempo na mesa, e tão bem, que ainda pedi uma cocada branca de sobremesa, e pensei que inventam umas coisas nas quais as pessoas acreditam; talvez, naquele sábado, muitos homens e mulheres acreditaram no que ouviram dizer, e estavam infelizes por estarem em casa, porque não tinham com quem almoçar, alguém engraçado, para que eles rissem um pouco.
Vou repetir, para que não haja engano: eu não estava vivendo nenhum momento de intensa felicidade. Mas estava tão bem, mas tão bem, que naquele momento não precisava de mais nada na vida; de nada. Já passei por momentos assim algumas vezes, e lembro de todos eles, porque foram todas inesquecíveis, e aprendi a identificar, na hora, quando eles acontecem, assim, a troco de nada; será que isso tem um nome?
E, curioso: em todos eu estava absolutamente só.
danuza.leao@uol.com.br
CARLOS HEITOR CONY
Faxineiras
RIO DE JANEIRO - A revista "Forbes" considerou a nossa presidente a terceira mulher mais importante do mundo. Não levo a sério este tipo de avaliação, mas vamos lá. O motivo parece que foi a recente decisão de Dilma de fazer uma faxina no alto escalão do governo que ela herdou de seu antecessor. Por Júpiter! Bem merece a classificação.
Não votei nela, porque me considero um eleitor emérito, ou seja, aposentado -a faixa etária deu-me o direito de não mais cometer este ato cívico. Mas Deus, assim como o Júpiter acima citado, é testemunha do quanto roguei para que ela fosse a presidente que a grande maioria do povo esperava que fosse -e ela ainda pode ser, há tempo e condições para isso.
Pressionada pelas sucessivas crises dentro de sua equipe, incluindo a sua base de sustentação no Congresso, Dilma decidiu fazer a faxina, que certamente dará bons resultados. Assim, ela poderá se concentrar em cumprir o programa que prometeu na campanha eleitoral. Sinceramente, torço para isso.
Dizem que o bom palhaço torce para ver o circo pegar fogo. Neste particular, considero-me um péssimo palhaço.
E já que o assunto é faxina, a revista "Forbes" deveria dedicar um lugar para aquela faxineira que bagunçou a vida e a carreira de Dominique Strauss-Kahn, um dos homens mais poderosos do mundo, que chegou a ser preso, algemado e agora foi inocentado, mas sem nenhuma chance de se candidatar à Presidência da França, que era bem mais importante do que a faxineira.
Como se sabe, ele foi vítima de uma armação de seus adversários ou da própria faxineira, que o processou por assédio sexual.
Não me acusem de estar associando a patriótica faxina de Dilma com a pérfida faxineira de Nova York. Mas a verdade é que o mundo, volta e meia, necessita de faxinas, e geralmente elas conseguem dar conta do recado.
sábado, 27 de agosto de 2011
28 de agosto de 2011 | N° 16807
MARTHA MEDEIROS
A palavra
Falar e escrever sem necessidade de tradução ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver todos os dias
Freud costumava dizer que poetas e escritores precederam os psicanalistas na descoberta do inconsciente. Tudo porque literatura e psicanálise possuem um profundo elo em comum: a palavra.
Já me perguntei algumas vezes como é que uma pessoa que tem dificuldade com a palavra consegue externar suas fantasias e carências durante uma terapia. Consultas são um refinado exercício de comunicação. Se relacionamentos amorosos fracassam por falhas na comunicação, creio que a relação terapêutica também naufragará diante da impossibilidade de se fazer entender.
Estou lendo um belo livro de uma autora que, além de poeta, é psicanalista, Sandra Niskier Flander. E o livro chama-se justamente a pa-lavra, assim, em minúsculas e salientando o verbo contido no substantivo. Lavrar: revolver e sulcar a terra, prepará-la para o cultivo.
Se eu tenho um Deus, e tenho alguns, a palavra é certamente um deles. Um Deus feminino, porém não menos dominador. Ela, a palavra, foi determinante na minha trajetória não só profissional, mas existencial. Só cheguei a algum lugar nessa vida por me expressar com clareza, algo que muitos consideram fácil, mas fácil é escrever com afetação.
A clareza exige simplicidade, foco, precisão e generosidade. A pessoa que nos ouve e que nos lê não é obrigada a ter uma bola de cristal para descobrir o que queremos dizer. Falar e escrever sem necessidade de tradução ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver todos os dias por aqueles que apreciam viver num mundo com menos obstáculos.
A palavra, que ferramenta.
É pena que haja tamanha displicência em relação ao seu uso. Poucos se dão conta de que ela é a chave que abre as portas mais emperradas, que ela facilita negociações, encurta caminhos, cria laços, aproxima as pessoas.
Tanta gente nasce e morre sem dialogar com a vida. Contam coisas, falam por falar, mas não conversam, não usam a palavra como elemento de troca. Encantam-se pelo som da própria voz e, nessa onda narcísica, qualquer palavra lhes serve.
Mas não. Não serve qualquer uma.
A palavra exata é uma pequeno diamante. Embeleza tudo: o convívio, o poema, o amor. Quando a palavra não tem serventia alguma, o silêncio mantém-se no posto daquele que melhor fala por nós.
Em terapia – voltemos ao assunto inicial –, temos que nos apresentar sem defesas, relatar impressões do passado, tornar públicas nossas aflições mais secretas, perder o pudor diante das nossas fraquezas, ser honestos de uma forma quase violenta, tudo em busca de uma “absolvição” que nos permita viver sem arrastar tantas correntes.
Como atingir o ponto nevrálgico das nossas dores sem o bisturi certeiro da palavra? É através dela que a gente se cura.
28 de agosto de 2011 | N° 16807
TEMA PARA DEBATE - Roberto Callage*
Onde está a ideia?
Em um minuto, 694.445 buscas são feitas no Google, 60 novos blogs são criados, 510.040 comentários publicados no Facebook e 600 vídeos no YouTube e, ao mesmo tempo, continuamos vendo TV, lendo jornais e revistas e ouvindo rádio como nunca.
A revolução digital começou silenciosa e mudou a publicidade. Palavras como crowdsourcing, brand content, search marketing e transmidia invadiram nossas vidas, sem que ninguém soubesse bem seus significados nem o que fazer com elas. E a propaganda, além de anunciar, passou a conversar com os consumidores.
O conteúdo foi além dos espaços da publicidade, virando informação, jornalismo, entretenimento, games, redes sociais e tudo o que é gerado por milhões de pessoas que encontraram na tela do computador o seu canal de expressão.
Relevante ou banal, inteligente ou vulgar, todo mundo tem opinião, todo mundo é produtor e consumidor de informação. Contrariando Andy Warhol, acho que no futuro teremos direito a 15 minutos de anonimato, não de fama.
Rompeu-se a barreira entre off e online, somos tudo ao mesmo tempo.
Mas tem uma coisa que me preocupa, ligada diretamente à área criativa: muitas vezes, parece que a internet está substituindo o nosso cérebro. Será que não estamos transferindo nossos neurônios para o mundo digital, junto com nossas músicas, fotos, comentários e senhas? É como se os arquivos mais ricos ficassem sem função: nossa memória, nossos afetos, experiências, conhecimento, percepções, e a nossa capacidade de cruzar tudo isso e transformar em ideias.
Criar é uma tarefa que estamos lentamente terceirizando. Não temos ideias. Procuramos ideias. Como se elas já estivessem praticamente prontas, em algum lugar. Pensando nisso, quando aceitei assumir a presidência do 18º Festival Internacional de Publicidade, achei importante provocar a discussão sobre o valor da criação, pois são as grandes ideias que envolvem e transformam.
“Onde está a ideia?” é o tema do festival, que acontece em Gramado, nos dias 31 de agosto, 1º e 2 de setembro. Convidamos para debater criadores de cinema, TV, propaganda, internet, jornalismo, blogueiros. É importante falar das novas tecnologias e ferramentas que tanto nos fascinam, mas ninguém se emociona só com um novo aplicativo.
Sem ideias, saímos do nada para lugar nenhum. Criar é a mais democrática das atividades, qualquer um pode exercê-la em qualquer lugar, não importa onde nasceu ou que escola frequentou. Pode ser compartilhada, coletiva, dividida ou solitária.
De que outra forma uma pessoa, só com caneta e papel, se tornaria uma das maiores fortunas da Inglaterra? Joanne Kathleen Rowling tinha uma grande ideia: Harry Potter. Scheherazade segurou sua própria vida durante 1001 noites porque era criativa e contava histórias. Parece absurdo hoje, mas Freud pensou a psicanálise sem o Google. Toda a inspiração que fez o grupo inglês Monty Python revolucionar o humor na televisão não veio dos vídeos engraçados do YouTube.
Escultores, escritores, sambistas, filósofos, pintores, poetas, roqueiros, roteiristas, fotógrafos, cineastas e publicitários nos mostraram nas suas obras que o amor, o medo, os desejos e as necessidades humanas estão em todas as etapas da civilização e que sempre moraram dentro do homem. E é dentro do homem que está o grande poder.
O poder das ideias.
28 de agosto de 2011 | N° 16807
VERISSIMO
A primeira rede social
Os seguidores de Vênus estavam acima da estupidez humana
Em 1761, mais de 500 pessoas participaram de um projeto científico traçando o curso de Vênus pelo céu da Europa. Ardia a feroz Guerra dos Sete Anos entre as grandes potências europeias, mas os seguidores de Vênus pertenciam a uma comunidade apátrida, cujos interesses estavam acima, no caso literalmente, de questões geopolíticas e da estupidez humana.
Eram pessoas que se correspondiam e pertenciam ao que depois seria chamado de República das Letras, uma nação epistolar sem sede ou fronteiras, unida apenas pela curiosidade intelectual. O projeto Vênus foi um dos primeiros exemplos de ação conjunta desta precursora de rede social, arregimentada pelos e-mails da época.
A origem do movimento está na “república literária” de Cícero, um ideal romano de preservar o conhecimento e o pensamento livre de qualquer limite que ressurgiu na Renascença, produziu ou inspirou gente como Copérnico, Galileu e Descartes e o Iluminismo e definiu, às vezes hereticamente, uma identidade própria para o “Ocidente”, já que depois da ruptura de Lutero e das descobertas no novo mundo nem a religião nem o isolamento geográfico asseguravam isto. Para chegar a ser um paradigma, o ideal ciceroniano teve que sobreviver ao obscurantismo e aos estragos da história.
A única cópia conhecida do seu manuscrito “República” foi descoberta no século 19 embaixo de uma transcrição de comentários de Santo Agostinho sobre os salmos. Não deixa de ser uma metáfora perfeita para a tirania cultural da Igreja durante séculos devermos nosso conhecimento deste texto de Cícero ao fato de monges relapsos não terem raspado o pergaminho adequadamente antes de reusá-lo.
Como as redes sociais atuais, a primeira rede social também tinha sua língua própria, o Latim clássico, depurado do Latim escolástico e oficial, e desenvolveu práticas peculiares de comunicação e disseminação – todas relacionadas com a dificuldade, na época, de simplesmente fazer uma carta chegar ao seu destino em pouco tempo – equivalentes aos sinais, às abreviaturas e aos atalhos usados nos tuiters e facebooks de agora.
A diferença entre a República das Letras e a Internet é que uma manteve viva uma tradição de humanismo e curiosidade cientifica, às vezes em luta aberta com a ortodoxia prepotente das igrejas, enquanto a outra, sem nenhum inimigo que a contenha ou religião que a esconjure, parece servir a uma republica transnacional da banalidade.
Fumar em lugar fechado está sendo proibido em todo o mundo para evitar a contaminação do vizinho, que pega fumaça e seus males de segunda mão. Acho que deve-se pensar em obrigar quem tem telefone celular a também ir usá-lo na rua. O objetivo seria nos proteger da contaminação pela vida alheia. Não precisamos saber do furúnculo da tia Elvira. E agora, com os pods e pads que fazem de tudo e informam tudo, há uma nova praga. Gente que no cinema, no meio do filme, liga o troço.
Se ainda fosse para saber como está o índice Bovespa. Mas não, geralmente é para saber da tia Elvira.
28 de agosto de 2011 | N° 16807
PAULO SANTANA
O miserável de Assis
Na vida de São Francisco de Assis, existe uma passagem magistral.
Ele tinha apenas três seguidores, em breve eles seriam 500, alguns poucos anos se tornariam 5 mil e em seguida milhares e milhares de frades franciscanos espalhados pela face da Terra.
Como eu dizia, os quatro miseráveis, possuindo somente suas sandálias e os hábitos marrons sujos, com uma corda amarrada na cintura e sandálias de couro, fizeram uma visita ao bispo de Assis.
Em determinada parte da audiência, o bispo disse-lhes que não se conformava que eles não possuíssem nada, que tinham de ter pelo menos uma casa que os abrigasse, uma cacimba e alguns animais que lhes dessem sustento.
E São Francisco, que abandonou o lar de seu pai, rico comerciante de Assis, que se despojou de todas as suas coisas e foi mendigar e pregar a Deus, disse ao bispo: “Se tivéssemos quaisquer posses, teríamos de ter leis e guardas para protegê-las”.
Assim somos nós nesta vida terrena de brasileiros. Se tivermos apenas um tênis e um celular, estamos sujeitos a sermos roubados a qualquer momento de nossos pertences.
Só os miseráveis, como São Francisco de Assis, estão livres aqui no Brasil dos assaltos, dos furtos e dos roubos.
E olhe lá, porque os miseráveis no Brasil não andam livres das agressões: todos os dias aparecem nos jornais notícias de que um morador de rua teve suas vestes e seu corpo incendiados por vândalos.
Além dos roubos, quem possui qualquer bem no Brasil está sujeito à maior fúria fiscal da Terra: os brasileiros trabalham cinco meses do ano somente para pagar impostos.
O trágico nisso é que estimula a que as pessoas se conformem em serem pobres, pelo menos estarão livres da maior e mais cruel carga de impostos a que submeteram os humanos.
sexta-feira, 26 de agosto de 2011
Impiedosa e engraçada sátira ao american way of life
Divulgação/JC
Uma história de amor real e supertriste, do escritor russo Gary Shteyngart, nascido em Leningrado em 1972 e desde 1979 vivendo nos Estados Unidos, é uma impiedosa e engraçada sátira ao chamado american way of life nos conturbados Estados Unidos da América dos próximos anos. Gary ganhou, com seu primeiro romance, The Russian Debutante’s Handbook, o prestigiado Stephen Crane Award e o National Jewish Book Award.
A obra foi indicada como um dos 10 melhores livros do ano pelo The New York Times e como o melhor livro do ano pela Time. O romance foi publicado no Brasil pela Editora Rocco, com o título O pícaro russo. A segunda obra do autor, Absurdistão, já lançada pela Rocco, foi classificada entre os dez melhores livros do ano pela Time, The Washington Post, San Francisco Chronicle e Chicago Tribune, entre outras publicações.
Uma história de amor real e supertriste traz o protagonista Lenny Abramov, que vive num futuro muito próximo do nosso. São poucos anos na linha do tempo, mas o mundo já está bastante mudado. Filho de imigrantes russos, beirando os 40 anos, é dono de uma careca e de um índice de massa corporal que provoca piadas.
Teima em ler livros desses de mil páginas, objetos que seus contemporâneos consideram repugnantes. Os Estados Unidos ruíram, a América é uma analfabeta funcional e Lenny escreve o que pode ser o último diário do mundo.
No campo tecnológico, iPhones e notebooks foram substituídos por um único aparelhinho: os indefectíveis äppäräts, que tudo sabem e tudo veem. Lenny é anacrônico e não tem intimidade com o aparelhinho e confunde-se com as siglas e as gírias mais cool. Lenny é tão obsoleto que se apaixona perdidamente, como nos velhos tempos, por Eunice, uma americana de origem coreana de 24 anos, linda e cruel, recém-formada em Imagens, com especialização em Assertividade.
Ela vai ensinar ao “coroa tosco” novas formas eficazes de escovar os dentes e apresentar-lhe novas roupas, feitas em algodão não inflamável. Os Estados Unidos enfrentam crise financeira, manifestações populares violentas no Central Park e tanques da Guarda Nacional andam nas ruas de Nova York.
O dólar não existe mais e os credores chineses estão impacientes. Lenny promete amar Eunice e sua terra natal e convencerá a volúvel amada, num mundo instável e sem referências, que ainda existem alguns valores humanos a serem mantidos. Rocco, 384 páginas, tradução de Antônio E. de Moura filho, www.rocco.com.br.
26 de agosto de 2011 | N° 16805
Artigos ZH
NOVA MALTARIA
Ambev começará as obras em setembro
Mais de três anos depois do anúncio da obra e da assinatura do termo de compromisso entre a Ambev e o município de Passo Fundo, as obras de uma maltaria da empresa começam a sair do papel no próximo mês. Os pavilhões onde funcionará a maltaria começam a ser construídos no final de setembro, em um investimento de R$ 213 milhões. A expectativa é que entre em funcionamento em 2012.
A área de 40 hectares localizada em Passo Fundo já está sendo terraplenada e recebe as obras de infraestrutura feitas como contrapartida pela prefeitura.
Segundo Marcos Citolin, secretário de Desenvolvimento municipal, a prefeitura ainda deve perfurar poços e construir um terminal ferroviário para facilitar o recebimento da matéria-prima. Até meados de setembro, também será asfaltado o acesso à área, que já foi aberto.
Com produção inicial de 110 mil toneladas de malte, a nova planta atenderá à demanda das unidades da Ambev no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e em São Paulo. Apenas na área de construção civil serão gerados 800 empregos diretos e indiretos para levantar os pavilhões e equipar a planta, projetada para ser a maior do gênero no país.
Produtores rurais da região também já se preparam para ampliar as áreas de cultivo da cevada, principal matéria-prima do malte. Concentrando um terço da produção de cevada gaúcha, os produtores vêm negociando com a Ambev o trabalho em forma de integração para entrega da matéria-prima para a maltaria.
Com garantia de compra, a expectativa é que para 2012 seja dobrada a área de cultivo, atualmente de 20 mil hectares na região.
– Estimamos que a empresa chegue a faturar R$ 1 bilhão por ano. Junto com a BS Bios e a Manitowoc poderemos dobrar o PIB do município – diz Citolin.
marielise.ferreira@zerohora.com.br
A fábrica
- Investimento: R$ 213 milhões
- Início da construção: setembro de 2011
- Início de funcionamento da planta: agosto de 2012
- Empregos gerados durante a obra: 800
- Empregos diretos gerados após a entrada em funcionamento: 240
- Empregos indiretos gerados: 720
26 de agosto de 2011 | N° 16805
ARTIGOS - Mariza Abreu*
Problemas da avaliação educacional
Em outubro, será realizada a 14ª edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998, e, em novembro, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), criado em 1990 e consolidado em 1995, e a Prova Brasil, criada em 2005.
O MEC anunciou novidades na avaliação. A divulgação dos resultados do Enem 2010 será acompanhada do número de alunos por escola que prestaram o exame, para permitir melhor avaliação do desempenho das escolas, pois algumas estariam escolhendo seus melhores alunos para fazer as provas e ficarem bem colocadas no ranking de desempenho no Enem.
Mas foi o MEC que criou esse problema ao divulgar, após 2005, resultados por escola num exame sem sustentação técnica para isso, pois a inscrição é individual e voluntária, de alunos concluintes ou que concluíram o Ensino Médio em anos anteriores.
O Enem avalia os alunos, com consequências individuais, e indiretamente os sistemas de ensino, e não se presta a resultados por escola, no máximo por unidade federada, ou rede de ensino na UF, como o Exame de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), criado em 2002 para os ensinos Fundamental e Médio, e mantido para o Fundamental, pois, após 2009, o Enem certifica no nível médio.
Outra avaliação é a do sistema, apenas indiretamente dos alunos, sem consequências individuais, como o Saeb, Prova Brasil e Saers, e, quando universais (o Saeb, amostral), com resultados por escola. A adesão a essas avaliações é de governadores ou prefeitos e secretários de Educação, sem inscrição dos alunos.
Em 2007, o MEC criou o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), calculado com dados de aprovação do Censo Escolar e de desempenho do Saeb para Estados, DF e o país, e da Prova Brasil para municípios e escolas estaduais e municipais de Ensino Fundamental. O Ideb é utilizado pelo MEC em repasse de recursos para municípios de menor índice e sua evolução começa a ser considerada para aumento salarial do magistério.
O MEC anunciou que, em 2011, só será divulgado o Ideb das escolas com participação mínima na Prova Brasil de 50% dos alunos em relação à matrícula do Censo Escolar (Portaria Inep/MEC 149, 16/06/11).
No Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), aplicado desde 2000, do qual o Brasil participa, os países responsabilizam-se pela participação na prova de 80% dos estudantes da amostra. O Todos pela Educação tem a meta de no mínimo 70% dos alunos com aprendizagem adequada à sua série. Nesse contexto, é aceitável avaliar o que aprenderam apenas 50% dos alunos da escola pública? E os outros 50%?
*Ex-secretária estadual da Educação
26 de agosto de 2011 | N° 16805
PAULO SANT’ANA
Álcool, a droga-mãe
Um amigo meu, com quem converso durante muito tempo todos os dias, me fez um apelo ontem: “Sant’Ana, como tu sabes, eu não sou fumante. Mas aspiro todos os dias a fumaça do teu cigarro. O que eu queria te pedir é que deixes de fumar a marca Charm e passes a fumar a marca Free, a fumaça do Free será mais agradável para mim. Pedir-te que deixes de fumar, sei que é impossível. Mas troca, por mim, de marca de fumaça”.
É a primeira vez que vi em minha vida um não fumante querer mudar de marca de cigarro.
Por falar em cigarro, assisti por inteiro à entrevista no Roda Viva com o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos, especializado no tratamento com drogados de todas as drogas.
Chamou-me a atenção um dado que ele forneceu: o cigarro teve seu consumo diminuído em 50% nos últimos anos.
Atenção, que estamos diante de um fato significativo: o cigarro, que é uma droga de livre consumo, caiu pela metade em uso.
Interessante, acho que as drogas proibidas podem não ter índices, mas na minha presunção até está aumentando o seu consumo.
Não é um interessante paradoxo e um estímulo à ideia de alguns de que se deveria liberar todas as drogas?
O médico Paula Ramos se queixou diversas vezes na entrevista de que a televisão divulga em massa a propaganda da cerveja e que esse fato leva o uso do álcool a intenso sucesso.
O psicanalista considera, por assim dizer, o álcool a droga-mãe de todas elas. Ele diz que o álcool gravita em torno das outras drogas e que grande parte dos vícios nas outras drogas começa pelo álcool.
Também referiu que a revista Veja divulgou um dado interessante: 73% dos congressistas brasileiros receberam ajuda financeira da indústria de bebidas alcoólicas para se elegerem.
Paula Ramos reclamou diversas vezes e de modo veemente de que os médicos e programas que combatem as drogas não têm abrigo para sua causa nos meios de comunicação, pelo que esta coluna se oferece a ele para que divulgue aqui nesta minha penúltima página, espaço que ele sabe ser um canhão, tudo o que ele quiser para enfrentar as drogas, desde que tenha formato inteligente e talentoso.
Eu estou, assim, oferecendo esta minha coluna para o doutor Paula Ramos porque nós, jornalistas ou proprietários de jornais, mergulhados em nossos misteres, podemos nos desaperceber de que não ajudamos determinados setores nobres da sociedade, os que se dedicam às melhores causas.
Então eu posso, como colunista, não estar desempenhando minha missão social a contento, desde que não contemplo as boas lutas com o usufruto do meu espaço.
Às vezes, me pergunto se eu não tinha que ser mais insistente, por exemplo, na causa da doação de órgãos.
Ou na causa dos institutos e casas do tipo asilo, que sofrem grandes dificuldades para manter-se e certamente necessitam de ajuda da imprensa para levar à frente seu ideal.
Vale a reflexão e principalmente o detalhe de que estou confessando ser sensível às melhores causas, tentando facilitar o acesso a mim.
A imprensa tem de ser transcendentalmente útil ao meio social.
26 de agosto de 2011 | N° 16805
DAVID COIMBRA
Essa superestimada corrupção
A corrupção é menos importante do que acreditam os brasileiros. Mais: sempre que os brasileiros se moveram motivados pelo combate à corrupção, erraram feio. Uma das consequências mais graves desse erro fez aniversário de 50 anos ontem.
Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciava à presidência da República, gerando a crise que redundaria no golpe de Estado de 1964, na ditadura militar de 21 anos de duração e em todas as pequenas, médias e grandes mazelas daí advindas.
Jânio Quadros foi eleito, precisamente, para combater a corrupção. O símbolo da sua campanha era a vassoura, que iria varrer os corruptos do governo. Ele era um jovem, um destemido, um homem que afrontava os outros homens, fossem quem fossem. O partido de Jânio, o PTN, era frágil, ele não tinha base no Congresso. Naturalmente, criticava os políticos e demonstrava pouco apreço à democracia participativa.
Depois de Jânio, o Brasil passou quase 30 anos sem votar para presidente. Isso só voltou a acontecer em 1989. E, aí, os brasileiros elegeram um jovem, um destemido, um homem que afrontava os outros homens, fossem quem fossem. Elegeu um candidato com um partido frágil, o PRN, que, naturalmente, criticava os políticos e demonstrava pouco apreço à democracia participativa.
Elegeu um candidato que arrostava ter como primeiríssima prioridade o combate à corrupção: Fernando Collor, o caçador de marajás. Não foi por acaso que o fim do mandato de ambos foi semelhante.
O combate à corrupção é importante, mas não pode ser o mais importante de um governo. Porque a honestidade é condição básica para qualquer um ser qualquer coisa, desde presidente da República a almoxarife.
O presidente da República tem de cuidar da boa administração do país. Tem de fazer o país andar. E, durante o andar, combater a corrupção. A corrupção é sempre a consequência de um mau governo, nunca a causa.
O melhor do governo Dilma não pode ser o combate à corrupção. O combate à corrupção tem de ser um dos tantos fatores que façam do governo de Dilma melhor.
Terça passada, sete crianças de menos de 12 anos foram apreendidas por assalto em São Paulo. Quebraram toda a sede do Conselho Tutelar, lutavam selvagemente, tentavam chutar os policiais, pareciam feras. Como os pais delas não apareceram para buscá-las, as autoridades as liberaram, pois a legislação brasileira não permite que crianças permaneçam apreendidas.
Triste ingenuidade essa lei. Uma criança, quando se rebela, o que ela pede justamente é a repreensão. Quer ser reprimida, porque quer que alguém se importe com ela. Se os pais dessas crianças não ligam para elas, o Estado deveria tutelá-las. Crianças abandonadas pela família têm o DIREITO de serem cuidadas pelo Estado. E ter cuidado também é mandar, obrigar, deter e censurar. Também é dizer não.
quinta-feira, 25 de agosto de 2011
25 de agosto de 2011 | N° 16804
JOBS RENUNCIA - ZH
“Infelizmente, esse dia chegou”
Lendário dirigente da Apple deixa de ser o presidente-executivo da companhia e Tim Cook passa a comandar a companhia
Há sete anos lutando contra um câncer no pâncreas, Steve Jobs sai de cena, ao menos como presidente da Apple. Em carta enviada à alta direção da companhia, o executivo apresentou ontem sua renúncia, lembrando que havia se comprometido a informar se não pudesse mais cumprir suas obrigações: “Infelizmente, esse dia chegou”.
Aos 56 anos, o rosto do sucesso popular de iPods, iPhones e iPads vai deixar de aparecer em todos os lançamentos de produtos e apresentações da empresa que durante este mês chegou a ser cotada como a de maior valor de mercado do mundo – ao menos durante alguns dias.
Na correspondência, o empresário indica Tim Cook, que vinha assumindo temporariamente o comando dos negócios para assumir a presidência em caráter permanente. Na carta, tenta afastar a sensação de que a despedida vai além do cargo.
– Eu gostaria de servir, se o conselho considerar adequado, como presidente do conselho, diretor e empregado da Apple – afirmou, mostrando a disposição de seguir ligado à empresa que ajudou a fundar em 1976.
Em 2004, Jobs descobriu que sofria de um tipo raro de câncer no pâncreas. O tumor foi retirado em uma cirurgia considerada bem-sucedida, mas a informação sobre sua saúde foi divulgada quando ele já estava em tratamento.
Ações da empresa recuam após o anúncio da saída
Em janeiro de 2009, o executivo anunciou que descansaria até o final de junho. A justificativa era “uma doença que o tinha feito perder muito peso” – situação clara nas raras aparições públicas. Uma semana depois, também em comunicado aos colaboradores da Apple, avisou que os médicos haviam verificado que o caso era mais complexo do que havia imaginado, por isso se licenciaria.
– A extraordinária visão e liderança de Steve salvou a Apple e a guiou para sua posição de empresa de tecnologia mais inovadora e valiosa do mundo – afirmou ontem Art Levinson, integrante do conselho de administração. – O conselho tem total confiança de que Tim é a pessoa certa para ser nosso próximo CEO.
Logo depois do anúncio da saída de Jobs, as ações da Apple caíram nas negociações feitas depois do fechamento do pregão em Nova York, o chamado after-market. Pouco antes das 21h, a desvalorização chegava a 5,3%.
zerohora.com
25 de agosto de 2011 | N° 16804
ARTIGOS - Rubem Penz*
Último recurso
Per saecula saeculorum, promovemos esforços civilizatórios. Nada contra a natureza – tudo a favor da humanidade. Desde os primeiros dias de vida, busca-se domar o animal e impor o predomínio da razão, o controle sobre os instintos, a polidez.
Do polegar opositor, passando pela possessão do fogo, pela invenção da roda, pelo uso do transistor, até desembocar na capacidade do chip (para citar saltos gigantes), todo o ânimo tecnológico foi acompanhado, necessariamente, pela mediação da ética. Mas a fera segue ali, oculta. Quando tudo é em vão, ela é nosso último recurso.
Das teses para a realidade, a notícia saiu em todos os jornais: médica equipa o muro de sua residência com seringas supostamente infectadas com o vírus HIV. Como pode? – pergunta a sociedade, perplexa. Quem esperaria essa atitude dos que pertencem à elite da civilização, com nível escolar superior, condição social elevada, carreira dedicada à ciência em uma de suas faces mais nobres? O que faria a pessoa com tais qualidades agir com tamanha abominação? Pois ela não age – reage. Ela teme. E nem é ela: é a fera.
Toda vítima, quando encurralada pelo predador, tem duas escolhas: morte, ou morte com luta. Na segunda opção, há um fio de esperança. O combate, mesmo desigual, segue os desígnios da incerteza, podendo reservar um desfecho surpreendente.
Quem sabe disso não é a razão, especialista em avaliações de risco. É o instinto. É a fera. É o desespero, o descontrole. Ninguém pode simplesmente condenar a vítima quando, inferiorizada, revida de modo extremo. À vida, nos agarramos com unhas e dentes – e facas e revólveres e seringas.
Ao falharem os poderes instituídos pela civilização (governo, justiça, polícia), permitindo que vivamos encurralados por grades, acuados e dominados pelo medo, a fera desperta. A incapacidade de socializar uma minoria – covarde, violenta, brutal – nivela todos por baixo. O Sedex em nossa porta pode ser um assaltante; o funcionário da telefônica, da luz, da água, da farmácia, também.
A ordem é: desconfie de quem passa por você na rua, de quem pede as horas, de quem está ao seu lado no banco, de quem conversa com você na internet. Dá-lhe muros e cadeados! Viva na selva: ao menor ruído, corra que é um tigre! Não confie em mais ninguém.
Em pleno século 21 não deveria mais ser assim. Entre os homens, bastaria uma porta fechada indicando o limite, como ocorre quando nos resguardamos dos animais. Aos pares, educação, boas oportunidades, decência, irmandade. Aos poderosos, responsabilidade, limites, compensações (impostos), solidariedade. Aos doentes, tratamento. Aos miseráveis, caridade.
Aos aflitos, consolo. Aos criminosos, sanções. Aos honestos, liberdade. Listando assim, parece até fácil. Como explicar, então, a paranoia de uma cidadã jogada às suas próprias feras, o último recurso? A ponta das agulhas é apenas a parte visível do iceberg.
*Escritor e músico
25 de agosto de 2011 | N° 16804
PAULO SANT’ANA
Fora, clima infernal!
Euclides da Cunha, escritor e jornalista, celebrizou-se por sua obra máxima, Os Sertões.
Na abertura de seu livro, ele escreveu: “O nordestino, antes de tudo, é um forte”.
Eu diria que o gaúcho, antes de tudo, é um triste.
Somos tristes porque nos destinaram a esse clima pusilânime de frio e chuva que nos assalta há dois meses e ameaça nunca parar.
Tenho pena das pessoas que me cercam, com esse clima. Na verdade, tenho pena de mim.
Temos sido, nesses dias amassantes, espectros de criaturas humanas, a vagar por chuvas e frios dilacerantes.
Não sorrimos, não confraternizamos, fomos privados do prazer inexcedível de sentarmos em mesas de bar na calçada, fomos condenados a não nos encontrarmos nas ruas, fomos penalizados com a sentença de nos encerrarmos em casa e nos refugiarmos dessa chuva e desse frio incessantes.
Foram mais de 45 dias de frio e chuva a nos fustigar e nos deixar encurralados. Somos um povo de capuzes, de guarda-chuvas, de sobretudos, de cuecões, de meias de lã, de luvas e de muitos cobertores. Até os que têm ar-condicionado, mesmo assim, continuam com frio. É um frio de tosses, espirros e enxaquecas.
Isso nos torna pesados, melancólicos, arrasados.
Consta que este clima de chuva e frio é bom para praticar sexo. Consta. Porque fazer sexo depois de ter sido atacado por chuva e frio o dia inteiro é um esporte quase impossível, o clima é brochante.
A umidade relativa do ar, que não sei o que vem a ser, lota as emergências dos hospitais, embora, com estes hospitais de reduzidas vagas nas emergências, possa fazer o mais severo calor de verão e elas continuarão lotadas.
Em vez de irmos para os parques de dia e aos bares pela noite, corremos todos para as farmácias. Isto é um clima para rinoceronte. Aliás, o nosso clima é capaz de gripar até rinoceronte.
Tomou Doril, a dor sumiu. Pode até sumir, mas o nariz continua entupido e a garganta é acometida de faringite, amigdalite, fora as pequenas irritações.
Maldito clima este com que a natureza e a demografia nos brindaram.
O clima é tão perverso, que a Rádio Gaúcha, não contente com a competência do Cléo Kuhn, contratou mais cinco ou seis meteorologistas. Sendo assim, é inédito, tem mais previsão de tempo na Rádio Gaúcha do que comerciais.
Até o Polêmica do Lauro Quadros tem previsão do tempo.
Neste próximo sábado, o governador Tarso Genro se encontrará com a presidente Dilma Rousseff aqui em POA.
Na pauta do encontro, estará a construção do novo teatro da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa).
A Ospa é um orgulho cultural gaúcho e necessita urgentemente de um lar onde desenvolva suas atividades.
No Ospa, no RS!
Amanhã, dia 26 de agosto, haverá uma solenidade na esquina da Avenida Ipiranga com a Salvador França, às 11h, com a inauguração, nas proximidades, da Rua Hélio Carlomagno, grande gaúcho que era orador de todas as datas, colorado doente e homem público de nomeada.
Sinto saudade do Hélio Carlomagno e do Frederico Ballvé.
25 de agosto de 2011 | N° 16804
L. F. VERISSIMO
Foi pessoal
Em 1986, fomos atacados pelo Muamar Kadafi. Já conto.
1986, todos se lembram, foi o ano do desastre nuclear em Chernobyl. A radioatividade expelida pela explosão da usina russa se alastrou pela Europa e chegou à Itália e a Roma, onde passávamos uma temporada com os filhos.
Para controlar a contaminação foi proibido o comércio de certos alimentos, que desapareceram do mercado. Fora isso, não fomos atingidos pela radiação – pelo menos que notássemos.
Aquele também foi o ano do metanol que os italianos estavam usando para adulterar o vinho, o que deu em mortes, protestos e processos. Também escapamos dos seus efeitos, talvez por sorte, pois bebíamos bastante vinho nacional.
E 1986 foi o ano da morte por envenenamento, na prisão, de uma importante figura política cujo nome não recordo, um daqueles escândalos “al succo” que os italianos saboreiam de tempos em tempos e parecem sempre prestes a derrubar a República. Não tínhamos nada a ver com a política local, aquilo não nos dizia respeito.
Mas que estava sendo um ano estranho, estava. Lembro da manchete de um jornal de Roma que dizia “Itália de todos os venenos”. E, para culminar, em retaliação por alguma que a Itália tinha lhe feito, o Kadafi mandou um foguete contra a ilha de Lampedusa.
Ninguém morreu, mas o território italiano foi atingido – e nós, na qualidade de hóspedes, também. Fiquei ressentido com aquele foguete contra a minha família. Quer dizer, tenho razões pessoais para celebrar a queda do Kadafi.
Para responder ao ataque do Kadafi, um cômico italiano sugeriu que, aproveitando os efeitos de Chernobyl, lançassem alguns repolhos radioativos em Trípoli.
Quinze anos depois, estava eu em Nova York cuidando da minha vida, quando fui, de novo, sorrateiramente agredido. E o World Trade Center estava bem mais perto de mim do que a ilha de Lampedusa em 86.
Entre todos os outros estragos que fizeram os aviões que derrubaram as torres gêmeas, interromperam minha viagem e agravaram minha paranoia, já aguçada pelo foguete do Kadafi. Estes ataques contra mim estão virando rotina, gente. Não vou tolerá-los por muito mais tempo.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
24 de agosto de 2011 | N° 16803
MARTHA MEDEIROS
A idade do posso tudo
Ela tem algo em torno de 70 anos, mas parece menos, como é comum hoje em dia. Dinâmica, é daquelas mulheres de personalidade que sabem conduzir uma boa conversa. No entanto, passei a reparar que suas opiniões, outrora expressadas de forma elegante, entraram no estágio “faca na bota”.
Ela mesma deu a pista sobre o que estava acontecendo, depois de ter feito um comentário certeiro, porém bastante duro a respeito de uma amiga: “Agora eu falo mesmo, tenho idade pra isso”.
Esse episódio me voltou à lembrança quando li recentemente a notícia de que o ator Gerard Depardieu não acatou o pedido de uma comissária de bordo para que ele aguardasse a decolagem antes de ir ao banheiro: ele simplesmente urinou no corredor da aeronave, diante de outros passageiros.
Se estava tão apertado, deveria ter entrado no banheiro mesmo assim, ninguém iria segurá-lo à força, mas partir para a provocação me pareceu arrogante, a mesma arrogância que tenho percebido em pessoas que, diante da maturidade mais que estabelecida, julgam-se acima do bem e do mal.
Conheço pessoas de 85 e até de 90 anos que, se não esbanjam saúde, seguem firmes e fortes sobre as próprias pernas e com a cabeça igualmente funcionando bem. Aquela caricatura dos avós de cabelo branco, com as costas arqueadas, arrastando os pés e extremamente rabugentos é apenas isso, uma caricatura. Vovós, hoje, estão tendo que apresentar a carteira de identidade no caixa do banco para provar que têm direito a fila especial.
Ainda assim, a idade manda recado. Os joelhos já não reagem como se espera, a memória fica difusa, as chances de ser olhado com algum desejo pelo sexo oposto caem drasticamente e o futuro, bem, o futuro não é mais representado por uma infinita highway, e sim por uma estradinha de tiro curto e com placas avisando: atenção, curva perigosa.
O maior benefício de ter vivido tanto é, de fato, a sabedoria acumulada. Só que alguns optam por jogá-la na cara dos outros com as palavras mais afiadas que encontram, como se a sabedoria fosse um instrumento de desforra.
O caso do ator francês é diferente, não há sabedoria nenhuma na sua transgressão, mas é outra amostragem do “dane-se” que acomete muita gente madura. Ao alcançar uma idade avançada, parece que a elegância deixa de ser essencial para o convívio. Depois de ter passado a vida obedecendo regras e sendo cordato, o sujeito sente-se autorizado a fazer a macaquice que quiser – como faria o adolescente que ele já foi.
De minha parte, não me vejo na iminência de rodar a baiana por direito adquirido com a idade, mas vá saber daqui a alguns anos. De boa moça a bruxa azeda, a transformação pode se dar do dia pra noite. Basta um convite para confrontar-se com a própria finitude.
Uma gostosa quarta-feira pra você.
24 de agosto de 2011 | N° 16803
EDITORIAIS ZH
A responsabilidade das concessionárias
Ao mesmo tempo em que soa como promissora e merecedora de aplausos a privatização de um aeroporto na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, também escandaliza a imprevidência do Daer e da concessionária responsável pela rodovia Três Coroas-Gramado, a ERS-115, bloqueada devido a rachaduras na pista.
Embora distantes geograficamente, os dois fatos têm uma relação importante para a sociedade, pois envolvem parcerias entre o poder público e a iniciativa privada para oferecer serviços aos cidadãos.
A bem-sucedida concessão do aeroporto potiguar, que envolveu a disputa de quatro grupos interessados e resultou num ágio de 228% para a União, aponta uma saída inteligente para o impasse das obras relacionadas com a Copa do Mundo de 2014. Sem estrutura financeira e operacional para tocar os projetos na velocidade desejada, o governo precisa mesmo buscar parceiros com a competência requerida.
O aeroporto de Natal pode servir de modelo para outras concessões que garantam a infraestrutura indispensável para o evento internacional que o país se propõe a promover.
Mas é essencial que o governo se cerque de garantias para evitar que, ao menor indício de prejuízo, o investidor privado se retire. Neste sentido, a Câmara da Indústria, Comércio, Serviços e Agropecuária do Vale do Paranhana age com legitimidade ao pedir a responsabilização econômica e criminal do Daer e da concessionária que administra a ERS-115.
Não é possível que os usuários da rodovia fiquem sem a estrada e sem a alternativa de um desvio por três meses, que é o prazo previsto pelos engenheiros para o conserto do estrago. Se não tiveram competência para prevenir os danos, que já vinham sendo monitorados desde maio, que pelo menos ajam com urgência para consertar a estrada.
24 de agosto de 2011 | N° 16803
JOSÉ PEDRO GOULART
Pistas
Aqui e ali vou deixando pistas da minha existência humilde. Um texto, um filme, um filho. A ideia de que as minhas pistas se reproduzam e reverberem de alguma forma é tentadora, mas é vã, além de inútil. Mesmo assim me considero um otimista. Aliás, já disse que não acredito em um pessimista vivo. Portanto, sou um otimista por obrigação, isto é, por interesse: sou um “otimista de resultado”.
1 – Fundamental para um otimista é manter a capacidade de ilusão.
2 – Ilusão e amor são sinônimos. Quando alguém diz para outra pessoa “eu te amo” , ela, na verdade, está dizendo “eu me iludo”.
3 – Nem toda arte é amorosa, mas todo amor é uma espécie de arte (o ódio também). Alguém que é capaz de amar é sempre um artista.
4 – O amor é uma invenção dos adultos.
5 – As crianças não amam e também não são artistas; elas não precisam fabricar ilusões, a ilusão vem de brinde na infância.
6 – O paradoxo é que o amor adulto é uma busca do estado de não amor, o estado infantil. Todo adulto que ama é um adulto que procura ser criança.
7 – Costumamos apressar o crescimento das crianças ordenando a elas que tenham responsabilidade. Quanto mais responsável é uma pessoa, mais rápido ela deixará de ser criança; uma vez adulta, a equação se inverte, o estado de felicidade pressupõe uma certa irresponsabilidade.
8 – É difícil ser adulto, a criação do amor é complexa. Ainda mais sendo pai, cuja necessidade de ser criança vem junto da obrigação de cuidar de uma.
9 – Embora não amem, as crianças são capazes de reconhecer o amor dos pais por elas. Baseado nisso, ela estará mais apta para um dia inventar uma forma de, mesmo tendo crescido, criar uma criança dentro de si.
(Há um bom exemplo em cartaz, o filme A Árvore da Vida, do Terrence Malick. Nele, as crianças – especialmente uma – põem em dúvida o amor do pai rigoroso. Mas uma perda próxima irá restabelecer a verdade. O amor tem formas estranhas de se manifestar.)
10 – Beleza e inteligência ou qualquer talento específico são avaliados como qualidades de uma pessoa. Mas isso é sorte, não é mérito. Sorte importa, mas é a capacidade de amar de uma pessoa que contém o verdadeiro mérito (talvez único) que ela pode ter.
24 de agosto de 2011 | N° 16803
PAULO SANT’ANA
Salivando o JA
Peço desculpas aos telespectadores do Jornal do Almoço de anteontem por ter debatido com o Lasier Martins durante seis minutos, estando eu a mascar chicletes.
Pareceu uma descortesia, mas acontece que, como vou detalhar abaixo, tendo sido alvo de radioterapia, perdi a saliva, o paladar e o apetite.
Acontece que por cândida mas explicável ignorância, eu desconhecia as propriedades da saliva no corpo humano.
E, agora que fui privado dela pela radioterapia, vim a sentir uma secura total na boca. E entre outras utilidades da saliva, é incrível, está a de lubrificar, digamos assim, a fonação. Ou seja, sem a saliva, fica prejudicada totalmente a minha dicção, que se arrasta e tropeça entre as línguas e os dentes e me torna ininterpretável.
Por isso é que usei o estratagema de mascar chicletes durante o meu comentário no Jornal do Almoço. Como não avisei aos telespectadores, pode ter soado como uma descortesia minha, um desrespeito. Peço, assim, desculpas.
E amanhã, se eu tiver de usar o mesmo recurso, pelo menos os telespectadores já estarão avisados e com certeza me relevarão.
Tenho notado que o noticiário geral brasileiro, todos os dias, acompanha o tratamento contra o câncer do ator Reynaldo Gianecchini.
Quem sou para que noticiem nacionalmente o meu tratamento de câncer? Como não tenho a notoriedade nacional dos atores da Globo, então sou eu mesmo que por vezes noticio o meu tratamento.
Estou na fase em que enfrento os paraefeitos da radioterapia. Tendo perdido o paladar, faz 50 dias que me alimento só de sopas, caldos, outros líquidos.
Conheci já todos os itens dessas sopas que vêm em pacotes, já não suporto mais a repetição.
Uma refeição que me tem auxiliado bastante no meu impasse é o mocotó, de que me aproveito por causa do frio ineditamente insistente de que estamos sendo alvos.
Mas mocotó todos os dias também cansa a paciência.
E lá vou levando meu destino, sem saliva, sem apetite e sem paladar.
Esqueci-me de destacar que estou impossibilitado de ingerir qualquer alimento sólido. A saudade que sinto do churrasco, por exemplo, é massacrante.
Churrasco, na situação em que me encontro, só se desossasse uma costela assada e a colocasse no liquidificador, o que seria quase tão ridículo quanto prosaico.
Churrasco no liquidificador! Isso não passaria com certeza pelo aparelho intelectivo dos antropólogos nativistas, entre eles o Nico Fagundes.
E me passa pela cabeça a seguinte hipótese: se eu ingerisse um churrasco liquidificado, teria de usar sal grosso?
E no liquidificador se nota a diferença entre um churrasco de costela e o de picanha? E pode-se usar, como gosto muito, a gordura da carne no churrasco liquidificado?
São questões que coloco ao exame dos profissionais competentes, entre eles os nutricionistas.
O certo é que, como tudo na vida, a gente só dá valor quando perde. Assim é que estou perplexo com a perda do meu paladar e da minha saliva. Nunca pensei que a existência deles fosse tão transcendental para a sobrevivência humana.
E o interessante é que não encontrei em Porto Alegre nenhum médico especializado em transtornos do paladar.
Transtornos da visão, temos os oftalmologistas, da audição, os otorrinos, mas haverá médicos especializados em transtornos do paladar, do tato e do olfato?
São curiosidades que um paciente de câncer oferece com gentileza aos seus leitores.
terça-feira, 23 de agosto de 2011
23 de agosto de 2011 | N° 16802
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA
Jamais esquecerei
Como não amar o passado? – me pergunta uma leitora a propósito de uma de minhas crônicas. Por uma coincidência, estive esvaziando gavetas e encontrei o instantâneo em que outra amiga e eu passeamos de mãos dadas pela Praça da Matriz.
Ana Laura tinha cabelos loiros e traços perfeitos. Ana Laura e eu passeávamos de mãos dadas pela Praça da Matriz de sua cidade. Corriam então os Anos Dourados, o dia era de verão e glorioso.
Não sei do que foi feito de Ana Laura, se casou, se ainda mora em sua cidade, se tem filhos, se é odontóloga, advogada, médica ou simplesmente do lar. Mas recordo como se fosse hoje nós dois tão jovens passeando de mãos dadas num começo de namoro.
Não sei o que foi feito de Ana Laura, mas guardo a memória precisa de seu vestido leve, de seus tornozelos finos, de seu sorriso perfeito. Lembro que falávamos de um baile que ia haver aquela noite, de um cachorrinho que tinha desaparecido, do Brasil, que era então um país inaugural.
Um sorridente mineiro semeava estradas, hidrelétricas, desbravava fronteiras e instalava fábricas de automóveis onde então eles eram importados. Fuscas, Dauphines, DKWs, Aero-Willys, Simca-Chambords enchiam ruas e avenidas, uma rodovia rasgava a selva, Brasília erguia-se do nada em pleno Sertão.
Vivíamos então um tempo mágico, pois os ventos da esperança sopravam por aqui. Ana Laura era parte daquele cenário, em que soavam os acordes da bossa nova, nascia o cinema novo, o Brasil era campeão mundial de futebol na Suécia, Maria Esther Bueno vencia em Wimbledon, Éder Jofre arrasava nos ringues, ganhávamos ainda certames de basquete a pesca submarina.
Onde andará Ana Laura? Será diplomata, psicanalista, pianista? Não sei. São tudo coisas de problemática resposta. Só sei que os tempos são outros, bem diversos daqueles em que a adolescência era azul e o país uma festa móvel.
E o que foi feito de mim? Hoje sou todo um senhor que não caminha pela Praça da Matriz com uma garota loira. Não há mais Anos Dourados, somos um mar de corrupção.
Me resta a imagem da garota de 15 anos – os mesmos 15 anos que eu tinha – e que de repente e sem aviso, no passeio pela Praça da Matriz de sua cidade me disse aquelas palavras que jamais esquecerei.
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