sábado, 1 de agosto de 2020



01 DE AGOSTO DE 2020
J.J. CAMARGO

QUANDO A INÉRCIA É UMA ESCOLHA

Conquistar o afeto de uma criança é mais simples, porque a alma infantil está mais disponível às manifestações carinhosas de quem se aproxima. Quando o alvo da conquista afetiva é um adulto, dá muito mais trabalho porque, por ter vivido mais, este está potencialmente contaminado pela desconfiança. Como toda desconfiança é amarga e triste, sempre me encantou a descoberta de adultos que, tendo vivido longe da hipocrisia da chamada civilização moderna, se conservaram irretocavelmente puros.

E muito deprime ver que essa pureza, tornando-os mais vulneráveis, abriu a porta aos aproveitadores da inocência.

Numa tarde, pouco inspirado, atendi no consultório a um nordestino que tinha sido encaminhado para tentar um transplante que lhe substituísse os pulmões destruídos por inalação de pó de pedra durante os 13 anos em que trabalhara como perfurador de poços artesianos. Quando, estupidamente, lhe perguntei se a experiência prévia de perder três irmãos da mesma doença não lhe motivara a fazer outra coisa, ele respondeu:

- Bem se vê que o senhor não sabe nada do sertão. Lá a gente tem que escolher entre a fome e a falta de ar, e a gente acaba escolhendo a falta de ar, porque a fome mata mais rápido!

Meu desconforto foi tão grande, e tão persistente, que resolvi mergulhar nesse mundo em busca de redenção - e descobri que Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é o caminho mais curto para entender um pouco da vida miserável desses nossos concidadãos.

Claro que a maneira mais eficiente de se manter afastado de um drama real é tratá-lo como se fosse ficção. Mas quem quiser saber um pouco mais só precisa acompanhar a odisseia do Fabiano e sua pequena família, em obstinada peregrinação pela inclemência do nordeste, cumprindo o mais primitivo dos instintos, a busca de comida para a sobrevivência. E ainda ter tempo de se encantar com o afeto que dedicavam à Baleia, uma cadelinha de estimação, parceira indefectível na via crucis daquela família. O objetivo desse mergulho numa realidade que desconhecemos é resgatar algum resíduo de sensibilidade que possa ter resistido às estratégias mais insensíveis, de como vencer na vida a qualquer preço, ensinadas em manuais de autoajuda, entre os quais o Seja Foda! é o maior sucesso de vendas.

Se você, que me acompanhou até aqui, ainda não se sentiu de nenhuma maneira sensibilizado, vamos fazer uma última tentativa: entre no YouTube e ouça durante 5min01s o relato de Leonardo Bigio, descrevendo a morte da Baleia, numa eutanásia executada por Fabiano quando suspeitou de que o pobre animal estava com hidrofobia. Chorar ao ouvir é a nossa expectativa básica.

Claro que sempre haverá a possibilidade de que esse relato também não lhe comova, e encerramos o experimento.

E, por favor, sem nenhuma crítica, siga em frente com a indiferença que lhe trouxe até aqui.

Existem, e merecem todo respeito, aqueles que optaram por cuidar apenas das suas próprias vidas. Mesmo com a evidência do quanto monótono e solitário deve ser o ocaso, de quem escolheu envelhecer com os olhos secos.

J.J. CAMARGO

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