15 DE AGOSTO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL
OS MONSTROS
Você acredita em monstros? Qualquer monstro, seja do folclore, dos mitos antigos, dos contos infantis, do cinema, da literatura? De centauro a lobisomem, de vampiro a Medusa, de Ciclope a Boitatá, de Curupira a Frankenstein, do Diabo à Hidra de Lerna? Nada tema; na era atual, qualquer critério científico, de bom senso ou de ceticismo iluminista, foi abolido. Você pode acreditar no que quiser, mesmo que isto espante até a uma ema. Então, volta a pergunta: por que você não acreditaria em monstros, diante do que já foi imaginado e do que ora vemos?
Essa questão se desdobra na pergunta: será que os monstros imaginados na história da cultura simbolizam aspectos da condição humana? Há traços monstruosos de nossa psique representados nas imagens de monstros, para compreendermos, em espelhos ficcionais, o que somos e podemos ser? Alguns antropólogos adaptam o conceito de mutabilidade para descrever o trânsito de propriedades entre humanos e animais em imagens, mitos e nomes. O Cacique Touro Sentado facilmente compreenderia esse conceito, que nos ajuda a entender também imagens de centauros, deuses egípcios e outros casos de contrabando semântico entre uma fauna cultural de homens, animais e seres híbridos. O humano constitui-se diante do animal e do monstruoso: somos o que somos, o que não somos, o que podemos ou queremos ser.
As memórias de monstros possuem, ademais, forte dramaticidade, e esta anima seu impacto e transmissão por histórias infantis, mitos, folclores e obras de arte. Ser monstruoso é credencial para a memória histórica. É bom, portanto, não pressupormos que narradores em busca da eficiência, com espanto e fama, sejam argutos simbolizadores da mente humana. A circulação desses materiais culturais, todavia, tem efeitos imprevisíveis, inclusive o de provocar desejos diante do que os mitos apresentam, sejam belas ou feras. Algum monstro te espanta ou atiça desejos?
Nesta coluna, já esclarecemos que o que alguns chamam "mito" é, na verdade, monstro (coluna O Mito, de 13 de outubro de 2018), e como este foi gerado (Teratogênese, de 4 de agosto de 2019). Resta compreender a que corresponde esse monstro entre seus adoradores, e indagar que parcela monstruosa da cultura e da mente humana realiza-se na projeção conduzida pelo monstro genocida. Seriam os recalques de ignorantes diante de um mundo a que não conseguem aceder vítimas da arrogância da cultura educada?
Seriam frustrações fálicas de variada ordem, que ora desejam que a libido domine com potência, sem moralidade? Neste caso, seria o monstro o mito predileto do capital, e de sua ideologia, liberal, que quer explorar o mundo e o homem sem quaisquer regras? É algo proveniente do inconsciente colonial, de que fala Édson Sousa, e que traz consigo a memória do racismo, da violência senhorial, da alienação, da hipocrisia e da raiva anti-humanitária? Ou é apenas o triunfo da mimese, que consagra a um tirano que diz e faz sem pudor o que todos evitam, em suas pacatas vidas?
Monstro e monstros, um dia terão fim. E serão lembrados, capítulo de horrores na História do Brasil.
FRANCISCO MARSHALL
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