15 DE AGOSTO DE 2020
MONJA COEN
NÃO PERCA SUA CABEÇA
Havia um rei muito poderoso e autoritário. Era vaidoso e, todas as manhãs, ficava um longo tempo em frente a um espelho de mão. Fazia discursos olhando para o espelho, sorrisos, caras bravas.
O espelho era seu grande amigo. Mesmo durante o dia, algumas vezes disfarçava e se olhava no espelho, para ter certeza de que tudo estava bem, que ele estava ali. Essa é uma história antiga. O espelho só refletia de um lado. Do outro, era o nada.
Certo dia, o rei acordou e, antes mesmo de se levantar, pegou o espelho que estava na mesinha ao lado da cama.
A cama era enorme, cama de rei. Hoje chamam de king size _ a maior de todas. Tinha quatro colunas de madeira com incrustações de ouro e pedras preciosas. Os lençóis eram os mais macios e delicados de toda a Terra.
De repente, ouviu-se um grito de horror. Vinha dos aposentos reais. Seus atendentes correram e deram com o rei desesperado, segurando o espelho e gritando: - Perdi minha cabeça! Perdi minha cabeça!
Não conseguia ouvir nada do que lhe falavam. Chamaram ministros de Estado, conselheiros, príncipes, rainhas e advogados. De nada adiantou. E o rei não podia ser contrariado. Qualquer contrariedade, as cabeças rolavam.
Mal conseguiram vestir o rei, as pessoas escravizadas. Tal sua agitação, seu desespero e sua confusão.
O rei, e todos no palácio, dependiam dos seus inimigos conquistados que eram escravizados: para vestir, limpar, passar, comer, defecar, reproduzir, guerrear, rir e chorar, receber carícias e insultos, abusos e afetos, conforme os humores reais.
Estar escravizado é assim: uma pessoa compra outra. A pessoa comprada pode apanhar, ser ferida, morta. É direito de seu dono. A pessoa escravizada deve obedecer e servir, da forma que for solicitada. Há homens que pensam assim de suas esposas. Acaba em feminicídio a escravidão reforçada por uma sociedade que aceita o abuso e exige a submissão da mulherada.
Pois os e as escravizadas corriam de lado a lado, com medo das penalidades brutais - entre elas, a pior, que seus filhos fossem vendidos para outros locais. Essa a dor mais profunda, pior do que chibatadas. Reinava a confusão. Correrias de um lado a outro, tentando dizer ao rei que sua cabeça estava no lugar. Só ele que não a via. Mas o rei não podia ser contrariado. O que ele dizia era verdade real e ponto final.
Finalmente chamaram o monge, de todos o mais santo. Capaz de milagres raros. Quem sabe ele poderia dar de volta ao rei sua cabeça bonita?
O monge, com a paciência de anos em treinamento contínuo, ouviu toda a ladainha. O rei enlouquecera. Procurava a cabeça entre pratos na cozinha, na cavalaria, entre os porcos e galinhas.
A cama foi revirada, os aposentos reais pareciam ter sido varridos por um exército inimigo. Nada. Nada. Nada. Carregando o espelho antigo, de tempos em tempos olhava para ver se a cabeça ao corpo retornara. Continuava vazio, vazio, vazio.
O monge foi ter com o soberano: - Majestade, o que o aflige?
- Você não vê, santo monge, que minha cabeça sumiu?
- Permita-me, Majestade, que me aproxime e analise de perto esta raridade?
O rei permitiu. O monge chegou bem perto, mais perto do que o permitido, deu um tabefe no rei e arrancou-lhe da mão o objeto do afeto desvairado. O rei levou a mão até a face, arregalou os olhos. Lá estava a cabeça.
Reconheça que você não é a imagem, você não é o reflexo no espelho. Embora o reflexo seja tudo de você. Mãos em prece
MONJA COEN
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