12 DE AGOSTO DE 2020
MÁRIO CORSO
Doble chapa
No ano passado não fui ao Uruguai. Primeira ausência em 40 anos. Porém tenho atestado médico. Estava me recuperando de uma lesão que impedia a marcha. Fez falta, fiquei com síndrome de abstinência do Uruguai.
Digo que viajo pela Diana. Afinal, ela é uruguaia e precisa recarregar as baterias pátrias a cada tanto. A síndrome de abstinência nela é mais severa, requer alimentar-se de medias lunas, bife de chorizo com Pomelo Salus. Escutar Jorge Drexler, Ana Prada e para a pele, Crema Curativa Dr. Selby.
Mas a verdade é que vou, como a maioria da gauchada, para curtir um país que poderíamos ter sido. Para mergulhar num sonho independentista que, mesmo inviável, nem por isso é menos pulsante. Como estamos no território do imaginado, do desejo, não precisa ser factível. Nada mais humano do que alimentar-se e embalar-se por ilusões quiméricas.
O Uruguai é o país que os gaúchos gostariam de ter para chamar de seu, com a identidade platina que compartilhamos. Somos brasileiros, mas nos sentimos aqui meio que por engano. O gaúcho é um brasileiro déplacé, palavra chique para fora do lugar, deslocado. Temos mais em comum com o Uruguai e a Argentina do que com alguns Estados do Brasil. Passando São Paulo, sinto-me no Exterior. No Prata, sinto-me em casa.
Assisti a um filme que retrata uma passagem dura da nossa história: A Cabeça de Gumercindo Saraiva (disponível no NOW). Tabajara Ruas, diretor e roteirista, fornece imagens inesquecíveis da selvageria da revolução federalista e do espírito da época. Obra que se insere em um projeto maior e incansável do autor de valorizar a pelejada e amarga história gaúcha.
No filme, os personagens ora falam português, ora castelhano, como acontecia na época. Há quem diga que o próprio Gumercindo Saraiva, comandante maragato, nem sabia falar português.
Conforme a política andava, algumas famílias se bandeavam para um ou outro lado da fronteira. Portanto, ser doble chapa, que é o nome atual para os que trançam entre as fronteiras, era usual. Restou em nós, gaúchos, um espírito doble chapa que é facilmente ativado. Existe de fato um corredor cultural e afetivo entre o Rio Grande e o Uruguai. Nossa fronteira é difusa.
Do jeito que o Brasil anda, dá uma vontade de aquerenciar-se no Uruguai. Porém, não se engane, o melhor não assa na parrilla, nem é engarrafável. Eles têm, além do luxo de serem compactos, uma tradição de boa educação e cultura que nos supera. Eles cultivam com mais intensidade o amor aos livros e à ciência. É para aprender com eles. Pensando bem, isso é ainda melhor do que torta frita y dulce de leche.
MÁRIO CORSO
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