sábado, 1 de agosto de 2020



01 DE AGOSTO DE 2020
DAVID COIMBRA

Por que quase abandonei Spartacus

Quase deixei de assistir à série Spartacus por causa do personagem que "devia" ser Júlio César. Entendo que se trata de uma série de ficção baseada em fatos reais e, por isso, os autores tomam certas liberdades, mas o exagero no apelo dramático dissolve a verossimilhança. E nem precisava! As histórias de Roma Antiga já são por si dramáticas, cheias de episódios de sexo e sangue. Basta a realidade para embasbacar o espectador do século 21.

Mas o Júlio César que eles apresentaram é um guri enfatuado, presunçoso e violento. Um tolo, e César não era tolo. Ao contrário, César era um político habilidoso, um sedutor, um homem que conhecia as pessoas e que muitas vezes usava o perdão como forma de cooptação, o que era raro na época. César, certa feita, admitiu que queria ser o novo Alexandre. Queria ser o maior homem do seu tempo. E foi.

Há um episódio absurdo na série, em que César é estuprado pelo filho de Crasso. Isso não aconteceu, nem poderia. Os dois filhos de Crasso eram amigos de César e serviram sob seu comando na Gália. Esse, que surge na série, um tipo sórdido e traiçoeiro, é totalmente fictício.

Talvez os diretores estivessem pensando nos rumores que grassavam por Roma a respeito das preferências sexuais de César. Dizia-se, então, que César havia "conquistado os gauleses, mas havia sido conquistado por Nicomedes", rei da Bitínia. Intriga da oposição. César sempre negou esses boatos, inclusive sob juramento.

As pessoas fazem certa confusão entre gregos e romanos quando o tema é a forma de aceitação da homossexualidade. Os gregos sempre foram muito mais liberais nesse quesito. Quanto aos antigos romanos, nós estamos falando de uma história de mil anos. Quer dizer: a moral e os hábitos mudaram várias vezes. Na velha república, as relações homossexuais eram encaradas com grande preconceito. No tempo de César, o homossexual passivo é que era visto como vergonhoso; o ativo, nem tanto. No império, os costumes já tinham se tornado muito mais progressistas, sobretudo em meio à nobreza sofisticada. Tanto que os historiadores relatam que, dos 12 primeiros césares, só Cláudio gostava apenas de mulheres.

Essa evolução não é diferente da que ocorreu nos tempos modernos. Imagine que, às vésperas do século 20, Oscar Wilde foi condenado à prisão por manter um relacionamento amoroso com um homem.

Cláudio, em compensação, pode ser considerado o maior corno da história, porque ele foi casado com ninguém menos do que Messalina, mulher tão dada aos prazeres carnais, que seu nome se tornou sinônimo de luxúria. "Aquela ali é uma Messalina", diziam as nossas avós. Eu, pessoalmente, sinto a maior simpatia por Messalina. Era uma mulher de personalidade. Seu corpo, suas regras.

Outro personagem que me irritou foi Crasso. Porque, na série, ele manifesta certa honradez, certa retidão de caráter, e o Crasso real foi um canalha. Era o homem mais rico de Roma e há historiadores que suspeitam ter sido ele o ser humano mais rico de todos os tempos. Pois sabe como ele amealhou tal fortuna? Assim: grande parte dos prédios de Roma eram construções precárias, sem condições de segurança, suscetíveis a incêndios. Crasso treinou homens para combater esses incêndios. Na prática, foi o inventor do corpo de bombeiros. Então, quando um prédio estava em chamas, ele aparecia com sua equipe, identificava o proprietário e fazia a proposta: salvava a construção, desde que a comprasse. Desesperado, o proprietário vendia ali mesmo, pelo preço que Crasso estabelecesse. Essa tática dava tanto lucro, que Crasso montou outra equipe, essa não para apagar o fogo, mas para produzi-lo. Canalha, canalha.

Crasso, você já sabe, derrotou Espártaco, mas, na ânsia de glórias, atacou um povo feroz, os partos, e foi batido e capturado, o que os romanos consideraram um erro grave "crasso". Sua cabeça foi separada do corpo, banhada em ouro e transformada em atração especial nas festas partas. Bem feito.

O erro dos filmes históricos é tentar se adaptar às expectativas de um público que vive 2 mil anos depois de os fatos terem ocorrido. Muito muda em 20 séculos: a moral, os costumes, os gostos, até as vontades. Mas a essência do ser humano sempre será a mesma. Homens corajosos e libertários, como Espártaco, sempre terão a têmpera de aço dos heróis. Homens gananciosos, como Crasso, sempre terão a alma mole dos infames. Homens que conhecem os outros homens e que sabem o que querem, como César, sempre serão destinados à grandeza.

DAVID COIMBRA

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