segunda-feira, 24 de agosto de 2020



24 DE AGOSTO DE 2020

CLÁUDIA LAITANO

A menina no porta-malas

Dentro de um porta-malas. Uma menina negra e miudinha abraça uma girafa e um sapo de pelúcia. Dentro de um porta-malas. A dor no corpo franzino sacudido de um lado para o outro, o medo do escuro, a falta de ar, o desamparo. Dentro de um porta-malas.

Órfã de mãe, pai na prisão, avós vendedores de coco em uma praia do Espírito Santo, a menina no porta-malas era abusada desde os seis anos por um tio. Ninguém notou os quatro anos de violência, tampouco a gravidez, até a 22ª semana. Nenhum parente, nenhum vizinho, nenhum professor. Na vida, como no porta-malas, invisível.

Em casos como o dela, comuns no Brasil, o aborto é legal. Sem confusão, sem gritaria, longe das pregações religiosas ou do sensacionalismo ideológico: basta ir a um hospital que ofereça serviços de ginecologia. Não é necessário boletim de ocorrência, exame ou autorização judicial. A palavra da vítima é suficiente. Por que então essa menina precisou viajar para outro Estado e ser colocada dentro de um porta-malas para ser atendida?

Duas circunstâncias, uma antiga e outra mais recente, ajudam a entender como foi possível submeter uma vítima a uma nova rodada de violências - exposição, intimidação, ameaças e, por fim, o infame trajeto no porta-malas. A primeira é a dificuldade histórica para fazer cumprir a lei nos casos em que o aborto é permitido. Longo é o calvário das mulheres pobres que buscam seus direitos na rede pública. (Para as outras, claro, existem as clínicas clandestinas.) Há Estados em que nenhum serviço de aborto legal é oferecido e outros em que o atendimento é negado. A maioria das vítimas de estupro nem sabe que tem esse direito.

A novidade no episódio da menina do Espírito Santo foi o vazamento de informações e a rede de militantes digitais mobilizados para transformar uma tragédia familiar em bucha de canhão na guerra ideológica. Uma coisa é ser contra o aborto, outra é incitar uma turba de lunáticos a se postarem na frente do hospital onde o procedimento seria realizado, fazer ameaças à família, constranger profissionais de saúde, impedir o cumprimento da lei.

A imagem de uma menina de 10 anos, grávida, obrigada a se esconder no porta-malas de um carro para conseguir entrar em um hospital escancara a insensatez e a brutalidade que tomaram conta do debate sobre o aborto no Brasil - ainda hoje um dos países mais atrasados do planeta nessa discussão. Nunca vi o mundo de dentro de um porta-malas, mas a sensação de desamparo, escuridão e falta de ar é cada vez mais comum aqui fora também.

CLÁUDIA LAITANO

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