22 DE AGOSTO DE 2020
MÔNICA SALGADO
As coisas latentes
Não consigo escrever sobre nada que não esteja latente em mim. Sou uma colunista inexperiente, eu sei. Me faltam léguas e léguas pra chegar na unha do dedo mindinho do pé de uma Martha Medeiros, minha colega aqui em Donna. Escrever sobre algo que está latente em mim no exato momento da escrita pode ser bom porque as palavras saem autênticas, quicantes, vivas, como se emprestasse a elas meus batimentos cardíacos acelerados.
Mas escrever sobre algo que está latente em mim no exato momento da escrita é também cilada porque me deixa excessivamente presa nas minhas neuras - que, às vezes, são neuras de estimação, de toda uma vida, e, outras vezes, são as neuras "do momento", da semana vigente. Sim, porque o que normalmente fica latente na gente são nossas neuras, dores, noias... emoções que vão e vêm na nossa cabeça numa masturbação existencial insuportável. São essas que pulsam, exigindo serem colocadas pra fora.
Daí que minha coluna fica autobiográfica demais. Me exponho e exponho pessoas. Até eu me canso, às vezes. Aliás, qual o limite que separa um desabafo que vai gerar conexão genuína entre mim e você e uma exposição que me vulnerabiliza além da conta? O quanto me vulnerabilizar me deixa fraca aos seus olhos? E onde termina meu direito de contar uma história que vivi (ainda que ela envolva outras pessoas) e começa o direito da outra pessoa envolvida de não ser exposta?
Percebem? Preciso definitivamente aprender a escrever sobre outras coisas que não apenas as que estão latentes em mim. Porque está pesado. Pois bem: na falta de "tudo posso naquele que me fortalece", doses cavalares de gratiluz, "nada peço, só agradeço", "chuva de bênçãos" e demais positividades por vezes tóxicas, bem em falta no meu cardápio desta semana, vos ofereço elas... as coisas latentes. Talvez você se identifique e a gente se conecte. Talvez você me ache negativa demais - direito seu - e isso te afaste. Talvez você tenha sido picado pelo bichinho da positividade tóxica e não se permita entrar em contato com sua sombra. E ache que ler sobre a minha pode te contaminar. Respeito. Não existe receita única pra nada nesta vida.
Então, lá vai. Um scan das minhas coisas latentes da semana. De um fôlego só. Sem ponto final. À la Saramago. Organizadas na sua desordem. Caóticas e sem pausas como são nossas conversas internas com a gente mesmo.
No Dia dos Pais, pouco antes do almoço só pra nós que organizei aqui em casa, ela avisou que não vinha. Tenho mil coisas pra revolver, ela disse laconicamente, mas, puxa, custava se organizar?, ou avisar antes, ou encontrar uma desculpa melhor realmente impeditiva, Estou triste e decepcionada com você, eu respondi, porque não foi a primeira vez, nem a segunda, na verdade é um comportamento contumaz que machuca porque é apenas sobre ela e exclui os sentimentos de todos ao redor, e tem sido assim desde que nós duas somos crianças, Mas se você já sabe por que se incomoda?, me pergunta meu marido, Porque o fato de saber não faz doer menos, e meus pais silenciam, porque é isso que os pais fazem para não tomar partido, ainda que a dor também os atinja, e, como uma emoção desagradável nunca vem só, esta trouxe junto uma dezena de outras e mergulhei na piscina de cocô.
Tenho chorado muito, e olha que não sou de chorar, porque acho mesmo que, aos 40 anos, a vida vem esfregar na sua cara o que você não realizou, vem perguntar se você gosta da sua história e das escolhas que fez, e muitas vezes você não sabe responder, ora, as perguntas complexas não têm respostas simples, nem sei se existe uma resposta, para começo de conversa, e é claro que o clima de incerteza que vivemos turbina essa angústia, mais a convivência extrema com quem moramos, convivência que transborda impaciências e explosões que não queríamos explodir, além de tantas indefinições profissionais e amizades que achávamos que tínhamos, mas não temos, porém sempre teremos as coisas latentes, que saem assim, à la Saramago, para conectar ou afastar a gente. Pausa dramática necessária aqui. Espero sinceramente que a primeira opção.
MÔNICA SALGADO
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