sábado, 15 de agosto de 2020



15 DE AGOSTO DE 2020
O PRAZER DAS PALAVRAS

Trufas e trunfas

O apelo vem de Christiane W., de Caxias do Sul: "Professor Moreno, por favor me ajude a defender uma palavra que usei no meu trabalho de conclusão: falando sobre as escravas de ganho no Rio de Janeiro, ao descrever a indumentária das baianas que vendiam doces e quitutes nas esquinas, escrevi que invariavelmente elas usavam trunfas na cabeça. Um dos examinadores implicou com esta palavra, alegando que o correto era trufa e que, colocando ali aquele N, eu estava cometendo o mesmo erro vulgar de dizer *mendingo ou *indentidade. 

Eu estava assustada na hora e não sabia o que dizer, mas felizmente tudo terminou bem e eu fui aprovada com louvor. Na saída, ele veio falar comigo. Meio para se desculpar disse que a observação tinha sido para meu bem e mostrou, no notebook dele, um dicionário que dá trunfa como vocábulo de origem desconhecida e, o que é pior, fez uma pesquisa no Google, na minha frente: ele digitou "trunfa" entre aspas, para garantir, e a resposta foi a mensagem "você quer dizer trufa". Fiquei passada: já estou chegando na casa dos trinta e usei errado essa palavra toda a minha vida?".

Cara Christiane, tu estás certa e o teu professor está errado. E o que é pior: examinando o teu caso, qualquer Sherlock de fim de semana diria que (1) ao fazer aquela observação, o professor realmente confundia trufa com trunfa; (2) à medida que a defesa prosseguiu, o passarinho da desconfiança veio pousar no seu ombro e ele deu uma discreta conferida no notebook: tragédia! Deve ter empalidecido, ao se dar conta de que sua ignorância poderia ser desmascarada; (3) no final, aproveitando tua emoção e teu alívio ao ser aprovada, ele te passou uma conversa de camelô vigarista, mostrando duas evidências verdadeiras para te vender mercadoria falsa.

Primeiro, a trufa: esse cogumelo tão raro, que tem mais sabor quanto mais feio parecer, pode ser usado em dezenas de pratos da alta cozinha, mas jamais vai figurar como adereço para a cabeça de ninguém. Atualmente o termo também designa um tipo de bombom recheado com uma pasta de chocolate, manteiga e alguma bebida licorosa, recoberto com pó de cacau. Além disso, sei que tudo vai bem com meu fiel Gaudí enquanto ele estiver com a trufa úmida - nome dado à ponta do focinho dos cães por sua semelhança com as bolotas escuras deste cogumelo.

Depois, a trunfa: este termo é usado desde o séc. 16 para designar duas coisas diferentes: (1) um tipo de penteado com os cabelos apanhados no alto da cabeça, formando uma espécie de topete - e que, exatamente por isso, entra na expressão baixar a trunfa, a qual, como baixar o topete, tem o mesmo sentido de moderar a pretensão e a arrogância. Não é dessa que estamos falando.

A segunda é uma espécie de turbante feminino feito com um pano ou uma faixa enrolada na cabeça. Aqui estamos nas tuas baianas dos doces, que Machado de Assis descreve em uma de suas crônicas: "As baianas eram conhecidas pela trunfa - um lenço interminavelmente enrolado na cabeça, fazendo lembrar o famoso retrato de Mme. de Staël" (hoje é fácil ilustrar um texto digital com imagens; convenhamos que Machado, um século e meio atrás, saiu-se muito bem da empreitada...). Minha filha adolescente às vezes sai do banho com uma toalha enrolada na cabeça; ela não frequenta o dicionário tanto quanto este pai gostaria, mas ao menos ela sabe que aquilo é uma trunfa.

Resta comentar o comportamento duvidoso daquele professor; como diria minha santa avó, aquilo não é flor que se cheire. A resposta canhestra do Google - "você quer dizer trufa" - assim, sem ponto de interrogação, realmente parece indicar a inexistência de trunfa, mas logo abaixo o buscador se redime, relacionando uma série de ocorrências desta forma - que o professor fez questão de esconder. Como ocorre com centenas de palavras, o fato dos dicionários registrarem como "desconhecida" a origem do vocábulo não afeta o seu direito de existir. Este professor rompeu deliberadamente uma regra de ouro do magistério: quem comete um erro não pode mentir para os alunos. Admita o equívoco, faça a correção e peça desculpas. Se, na saída da sessão, ele tivesse cortado o teu passo para admitir que se enganou, teria crescido diante de teus olhos e seu comportamento não estaria sendo comentado aqui nesta coluna como um mau exemplo que todos devem evitar.

Aproveito para convidar os aficionados a visitarem o meu podcast sobre Mitologia Grega em noitesgregas.com.br. Nesta semana, começo a falar sobre Afrodite.

CLÁUDIO MORENO

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