sábado, 29 de agosto de 2020


29 DE AGOSTO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

CABALA


Kabbalah, em hebraico transliterado, significa um misticismo judaico originário da Antiguidade, que floresceu na Europa a partir do século XII e teve seu marco literário na obra Séfer ha-Zohar, O Livro do Esplendor, de Moisés de Leon, um rabino místico ibérico, por volta de 1280-86. Kabbalah é, nesse cenário, o ensinamento esotérico que transmite uma forma de interpretação dos textos sagrados do judaísmo, decifrando as relações entre um deus eterno e infinito, Ein Sof, e o universo mortal e finito da criação. A cabala considera haver um conhecimento criptografado nas letras e números das escrituras, plenas de simbologias. O saber secreto é transmitido por tradição, com o sentido de dar e receber, contido na raiz semítica qbl (para decorar, digamos "que beleza!"), que significa receber.

O crítico literário Harold Bloom (1930-2019), em Cabala e Crítica (1975 e 1991), examina, com o estudo dessa tradição, a formação e a transmissão da cultura poética, "em relações de transferência e desvio" da memória literária. Falando dos poetas e da renovação da poesia, diz Bloom: "Quando se conhece tanto o precursor quanto o posterior, se conhece a história", uma chave para compreendermos como se formam tramas. Ao tomar emprestado da mística judaica um modo de interpretar a gênese da autoria poética, Bloom inspira-nos a ler na cabala roteiros para elucidar casos de nossa própria história, nossas transferências e desvios.

A partir do Renascimento, nos séculos XV e XVI, a cabala propagou-se por meio da Tradição Hermética - a Alquimia - e gerou também uma cabala cristã. Como era conhecimento oculto, cultivado por cultores que buscavam fins impublicáveis, a palavra cabala adquiriu conotação política, consagrada, ao que parece, a partir de 1668, quando designou um grupo de ministros do rei inglês Carlos II (1630-1685), mancomunados para promover a guerra; formou-se, então, um acrônimo com as iniciais de seus nomes (Clifford, Arlington, Buckingham, Ashley e Lauderdale), a palavra CABAL. Assim essa palavra aparece na crônica de Machado de Assis de 21 de julho de 1895: "A cabala é legítima, natural, verdadeira seleção de espertos e ativos"; é uma alusão a conluios, conspirações e tramoias de políticos.

Na interpretação da cabala mística, tem especial valor a simbologia dos números. Examinemos, para demonstrar, um número qualquer, por exemplo, 89. Eis um número primo, aquele que se divide apenas por si mesmo e pelo número 1, no caso, o número um com que se racha algo em família, por ele e com ele mesmo, um amigão que até parece primo. Multiplicado por mil, esse 89 alude à questão mais vigorosa da internet e da política brasileira recente, mas também a um fetiche do número, capaz de fazer rugir a um monstro animador de emas e gado vacum. A cabala aqui nos fornece também a prova cabal do que temos em tela, trambiqueiros de oitava categoria, fazendo-se de paladinos messiânicos. Resta saber onde entram os chocolates (que beleza!), como sairemos desta, e, também, cabala que não cala, aquele secreto por que, que ora todos perguntam.

FRANCISCO MARSHALL

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