29 DE AGOSTO DE 2020
DIÁRIOS DO MUNDO - MARCIO PIMENTA Fotógrafo
"Queria saber por que eles estavam sofrendo mais do que os outros"
De todas as vítimas das crueldades praticadas pelo grupo terrorista Estado Islâmico (EI), os yazidis são os mais odiados. São monoteístas e pré-cristãos, consideram que Deus é representado por sete espíritos - um deles chama-se Melek Taus, o mesmo nome que o Alcorão, o livro sagrado do Islã, dá a Satanás. Daí o ódio dos fanáticos que ocuparam, por anos, parte do Iraque e da Síria, estuprando mulheres e escravizando homens.
Apesar de todo o sofrimento, essa minoria étnica é ainda pouco conhecida mundo afora. Sensibilizado pela luta desse povo, o fotógrafo paulista Marcio Pimenta (detalhe), radicado há três anos em Porto Alegre, decidiu jogar luzes sobre o drama. Encantado com a resiliência dos yazidis, ele documentou as bravas mulheres desse povo. O resultado está no livro fotográfico Yazidis, que está lançando pela Editora Artisan. À coluna, ele conta os bastidores da obra.
Por que você decidiu fazer um livro sobre os yazidis?
No Iraque, conheci uma jovem que trabalhava com uma ONG de apoio aos refugiados yazidis em Erbil, capital do Curdistão, onde eu estava hospedado. Eles não eram objeto de meu trabalho naquela primeira viagem, mas, nos passeios para conhecê- los, havia uma garotinha de uns cinco anos que ficava grudada em mim. Criou aquele carinho, e comecei a me interessar mais pela história do povo deles. De fato, eu nunca tinha ouvido falar dos yazidis. Mas ficou aquele carinho, uma curiosidade sobre eles. Fiz apenas algumas fotos, mas sem pretensão de publicá-las.
O seu foco era o front da luta contra o Estado Islâmico. Como foi mudar a perspectiva para o drama dos yazidis?
Eu queria fazer o que todos estavam fazendo (registrar a guerra entre os peshmergas, tropa curda, contra o EI). Quando voltei para o Brasil, com a experiência de ter vivido o conflito, comecei a pesquisar mais sobre o povo yazidi. Queria saber por que estavam sofrendo mais do que os outros. Aquilo gerou uma imensa empatia. Decidi voltar para guerra não mais para a linha de frente. Falei: "Vou me dedicar agora ao povo yazidi".
O que mais chamou atenção ao fotografá-los?
Foi a capacidade deles de adaptação à nova realidade. O que mais me sensibilizou é que, pela religião deles, uma mulher yazidi que tem uma relação sexual com um homem não yazidi perde sua condição, deixa de ser yazidi. Eles eram muito rigorosos com essa lei. Quando houve o genocídio, e as mulheres foram sequestradas e violentadas, tecnicamente deixaram de ser yazidi. Só que foram tantas, milhares, que ficaram com medo de que a própria etnia acabasse sumindo por não haver mais mulheres na comunidade. Então, eles criaram o rebatismo: as mulheres que conseguiram a liberdade voltavam para uma fonte, como se fossem crianças, para serem novamente batizadas e ganharem de novo a condição de yazidi. Era quase um ritual de purificação. Isso para mim demonstrou a capacidade transformadora deles. Tiveram de romper com o próprio preconceito. Falei: "Nossa, essa história precisa ser contada, de como se dá a resiliência". De como, muitas vezes, a gente precisa romper com convicções, dogmas que temos, para que possamos avançar. Porque, se eles não mudassem, iam sumir.
No Brasil, os yazidis são ainda pouco conhecidos. O seu livro contribui para dar visibilidade a um povo praticamente invisível. Era esse também o objetivo?
Exatamente. Eles receberam muita atenção em 2014, quando houve a tentativa de genocídio. Os Estados Unidos, o governo Barack Obama, ordenou um ataque aéreo para diminuir o impacto (da perseguição). Ali o mundo ficou sabendo que existia uma etnia chamada yazidi. Depois, teve o Nobel em 2018 para a Nádia Murad. Eles conseguiram se organizar e buscar direitos, reconhecimento internacional. Mas tem uma luz muito menor sobre eles do que em outros povos.
Como conseguiu despertar a confiança especialmente das mulheres, sendo homem, para fotografá-las?
Houve uma coincidência. Antes de eu voltar, precisava estabelecer contato com eles. Eu precisava ir no centro em Lalish, onde havia o batismo. Precisava de permissão. Entrei em contato com a fundação Yazda, contei das minhas intenções, e eles foram superabertos. Quando cheguei lá (Erbil) e me apresentei, conheci a diretora, descobri que ela, que não é yazidi, tinha passado seis meses no Rio de Janeiro. Sabia um pouco de português. Isso criou empatia. Ela autorizou que eu fotografasse e disse que o principal motivo que estava permitindo que eu, homem, os fotografasse era porque estavam passando por lá muitos jornalistas que tiravam foto e iam embora. Não se preocupavam realmente em dar destaque ao povo yazidi. Para eles, eram apenas mais um sujeito da guerra. Ela disse: "Você foi o primeiro que afirmou ?vou ai para fotografar vocês?". Tive toda permissão, conversei muito com as mulheres.
O livro está dividido em três partes: front, convívio social e depois os retratos. Por quê?
Dividi assim para dar primeiro o contexto da guerra, localizar onde esse povo está. Queria que as pessoas entendessem onde estão, antes de falar das mulheres. Comecei com front, depois de convívio social e finalmente com imagens do batismo.
RODRIGO LOPES
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