25 DE AGOSTO DE 2020
NÍLSON SOUZA
A hora do revisor
Estou lendo A História do Cerco de Lisboa, de José Saramago, e acabo de planejar minha leitura para as próximas semanas de quarentena: os sete volumes que integram a principal obra de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido. Alguns vou reler, mas decidi aproveitar uma iniciativa de minha amiga Denise Filippini, da Livraria Erico Verissimo. Ela reuniu os livros - todos usados - e me ofereceu um pacote com generoso desconto.
- Não são livros usados! - ela me lembra, devolvendo uma mensagem que lhe passei há algum tempo. "São livros que fizeram companhia a alguém."
Livros, ministro Paulo Guedes, não são apenas produtos consumidos pelas camadas de maior renda da população, como o senhor alega ao enviar para o Congresso a nova proposta de taxação, embutida na tal Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços. Livros são companheiros fiéis, mestres eficientes, antídotos para a ignorância e também instrumentos de conscientização social. Isentá-los de tributação é o mínimo que o governo pode fazer para incentivar a leitura no país e a formação de cidadãos intelectualmente saudáveis.
Por coincidência, o personagem do livro que estou lendo é um revisor de textos confrontado com a narrativa - que ele julga tendenciosa - de um episódio da história de seu país. O homem fica indignado e, contrariando seu próprio compromisso de isenção técnica, resolve acrescentar um "não" ao relato original, alterando assim o fato contado pelo historiador. Mais tarde, depois de um conflito com a editora, decide ele mesmo reescrever o episódio alterado, com a visão dos inconformados que conquistam ferramentas para se expressar.
Não sou adepto de teorias da conspiração. Prefiro acreditar que o ministro, com a sua investida tributária, não tenha a intenção de dificultar o acesso de livros à população. Acho que é apenas insensibilidade. Por isso, espero que o "não" à taxa inconveniente venha do próprio governo. Se não vier, caberá ao Congresso agir como o revisor de Saramago - antes que, em última instância, os próprios cidadãos decidam transformar votos em advérbios de negação.
NÍLSON SOUZA
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