sábado, 8 de fevereiro de 2020


08 DE FEVEREIRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Incoerência



Foi muito divulgado. No interior do Rio Grande do Sul, um homem atirou sete vezes na namorada, durante uma briga, e acertou cinco tiros. A moça foi socorrida e sobreviveu. No dia do julgamento, a vítima dava seu depoimento quando, de repente, pediu licença ao juiz, aproximou-se de seu agressor e, de forma totalmente inesperada, tascou-lhe um beijão na boca. Um beijo apaixonado. No dia seguinte, a foto estava estampada no jornal e todos nós de queixo caído.

Nas redes sociais, os palpites resumidos de sempre. "Síndrome de Estocolmo." "Desserviço ao feminismo." "Ignorância." "Cavando a própria sepultura." Etc, etc. Os psicanalistas foram chamados a explicar. Lembraram que antes de acontecer uma violência física, há um longo período de violência psicológica que estraçalha a autoestima da vítima: ela acredita que não será ninguém sem o amor daquele homem. Por não conseguir se libertar, fantasia que o amor será mais forte e salvará a relação no final.

As estatísticas estão aí pra quem quiser ver. O perdão não vai salvá-la. O amor não vai salvá-la. Ela morre no final.

A foto perturbou a mim e a todos, pois escancara o quanto somos frágeis e trazemos desejos submersos, originados sabe-se lá por quais desvios. A gente se esforça para manter uma versão ajustada de si mesmo, para entregar à sociedade um perfil que seja condizente com o que se espera de um cidadão sensato, e até que nos saímos bem: ninguém costuma desconfiar das nossas fraturas emocionais e suas consequências.

Só dentro de casa, protegidos dos olhares e do julgamento alheio, é que liberamos nossas carências, traumas, fetiches. Entre quatro paredes, nossos sentimentos ocultos e contraditórios ganham permissão para conviverem. É quando a raiva e o amor deitam-se na mesma cama, o ódio e a compaixão sentam-se à mesma mesa, a dor e o prazer dão-se às mãos no sofá.

Somos perversos e adoráveis, somos amorosos e cruéis. Mas temos uma natureza preponderante, essa que postamos no Facebook e no Instagram, essa que nos acompanha ao escritório, nas ruas, no shopping. Somos reconhecidos como pessoas perfeitamente adequadas, equilibradas. Poucas são as testemunhas oculares das nossas convulsões internas, quase ninguém conhece a fundo nossas contradições.

O brutal pode vir acompanhado de extrema excitação. É a contradição que a moça agredida revelou às claras, sem nenhuma espécie de censura ou pudor. Ela despiu-se das camadas que revestem nossa pretensa normalidade e deixou a plateia perplexa e, ao mesmo tempo, embaraçada. Exibiu sua instabilidade para as lentes dos fotógrafos, demonstrou o efeito tirânico de uma relação abusiva para os jurados e para quem mais quisesse ver - só que nunca queremos.

MARTHA MEDEIROS

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