segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020



24 DE FEVEREIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Como devem brincar as crianças de hoje

Uma vez nós pegamos o Amilton Cavalo e o amarramos todo. Manietamos seus pulsos, prendemos seus tornozelos e ainda o amordaçamos. Não lembro de quem foi a ideia, decerto algum sádico. Era uma turma grande de guris, ele não tinha como resistir. Então, acabou imobilizado feito uma salsicha, e foi assim que o carregamos até a porta do apartamento do pai do Cândido.

Pusemos o Amilton de pé diante da porta e alguém, provavelmente o mesmo sádico que teve a ideia, baixou-lhe os calções e a cueca até os pés. Em seguida, socamos e chutamos com força a porta do pai do Cândido e saímos correndo e rindo para a rua. O Amilton, coitado, ficou lá, pelado, esperando, ele só podia esperar.

O pai do Cândido tinha fama de brabo. Não tanto quanto o do Marcelo Gordo, é verdade. O Marcelo Gordo, às vezes ele estava jogando pelada conosco na famosa Rua da Tendinha e, em meio ao que antigos cronistas chamariam de pugna, estacava, erguia o queixo, farejava o ar e anunciava:

- Tenho de ir. Meu pai está me chamando.

Nós apurávamos os ouvidos, mas ninguém nunca distinguia chamado algum.

- Que pai chamando o que, cara! Vamos jogar! - protestávamos.

Mas ele já ia saindo:

- Ele está me chamando, ele está me chamando!

E se ia embora.

Um dia, decidimos: da próxima vez que o Marcelo Gordo disser que o pai dele está chamando, vamos segui-lo para desmascará-lo.

Foi o que fizemos. Uma tarde, quando o jogo estava animado, o Marcelo Gordo de repente parou e avisou: - Tenho de ir! Meu pai está me chamando!

E saiu correndo, afoito, e fomos atrás. Estava tão ansioso para atender ao suposto chamado do pai que nem viu que o seguíamos. E entrou no conjunto da Coorigha e passou um bloco de apartamentos e outro e dobrou à direita e, então, vimos a cena espantosa: o pai do Marcelo Gordo estava fincado em frente ao prédio em que eles moravam, com as mãos à cintura e o nariz apontando para o céu. A boca fazia um biquinho, como se ele assobiasse, mas dela não saía som algum. Ou, pelo menos, não que a gente ouvisse. Já o Marcelo Gordo ouvia. Reuniu-se ao pai e foram os dois juntos para dentro de casa. Um dia alguém vai ter que me explicar o que era aquilo.

De qualquer forma, o que importa é que a brabeza do pai do Marcelo Gordo fazia com que o Marcelo Gordo o atendesse antes que algum de nós pudesse dizer cucamonga. O pai do Cândido não chegava a tanto, mas também não era dado a frivolidades. Por isso, ninguém fazia ideia de como ele reagiria ao ver o Cavalo amarrado, amordaçado e pelado a um passo da sua porta. Bem. Ele fez o seguinte: gritou lá de dentro da sala, enquanto provavelmente se erguia do sofá:

- Quem é???

E abriu a porta. E olhou para o Amilton Cavalo naquela situação embaraçosa. O Amilton fez mnnnnn. Ao que o pai do Cândido franziu o cenho e, sem dizer palavra, fechou a porta na cara do Cavalo num estrondo, deixando-o lá, grunhindo e saltitando desesperado, com as partes pudendas expostas. Espirituoso, o pai do Cândido.

Nossas brincadeiras de infância não eram exatamente comportadas, como se vê. Mas nunca fizemos algo tão estúpido como essa da rasteira, que está produzindo sequelas nas crianças de hoje. Francamente. Talvez esses guris de agora estejam precisando de pais como o do Cândido e do Marcelo Gordo.

DAVID COIMBRA

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