sábado, 29 de fevereiro de 2020



29 DE FEVEREIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Será que ele voltará?

Ouvi dizer que o trema pode estar voltando. Linguistas de Portugal e do Brasil teriam chegado à conclusão de que a reforma da última flor do Lácio não deu certo, e agora querem voltar atrás. Será verdade? Duvido que reconheçam o erro. Não é do feitio daqueles senhores provectos da Academia.

Você, que está preocupado com o coronavírus e a alta do dólar, pode achar que essa é uma discussão parnasiana, que só interessa a alguns poucos preciosistas da gramática. Não é assim. A língua não apenas expressa o que o homem pensa; ela pode mudar a forma do homem pensar.

Heidegger dizia que só é possível filosofar em alemão e em grego. Caetano, sabedor dessa frase, ironizou: "Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção". Algum despeito do Caetano, porque a sentença de Heidegger tem sua lógica: o alemão e o grego são apropriados para a filosofia por serem flexíveis, perdulários em sufixos e prefixos e capazes de unir palavras em matrimônios quase perfeitos, ainda que improváveis.

Aliás, um parêntese: Heidegger teve não um matrimônio, mas um relacionamento improvável com a filósofa Hannah Arendt. Ele já era um professor reconhecido, ela ainda era uma jovem aluna de 18 anos. Ele era nazista, ela era judia. Mas se gostavam e se respeitavam. Bonito. Fecha parênteses.

Voltando ao alemão e ao grego, essas línguas têm a propriedade de definir sentimentos e pensamentos ainda não descritos porque contam com a principal qualidade da evolução: a adaptabilidade. Uma única palavra em alemão pode reunir diversos conceitos. Por exemplo, a muito útil lebensabschnittspartner, que significa "a pessoa com quem vivo hoje". Ou a simpática freundschaftsbezeugung, que é uma "demonstração de amizade". Você tem feito freundschaftsbezeugungs ultimamente? Faça. Quem tem amigos, tem tudo.

Claro que, para um brasileiro, é muito difícil falar ou mesmo aportuguesar um troço desses, freundschaftsbezeugung, mas com o grego nós conseguimos fazer esse truque sem nem notar. Quer ver? "Arquipélago" vem de duas palavras gregas: "arqui", que é "chefe" ou "principal", e "pélagos", que é "mar". Para os bons e antigos gregos, o mar principal, o chefão dentre os mares, era o Egeu. Assim, eles o chamavam de "Arquipélago". E, como o Mar Egeu tinha muitas ilhas, mais de mil, arquipélago virou sinônimo de conjunto de ilhas, o que nós incorporamos alegremente ao português.

O que quero dizer com tudo isso é que a língua é o instrumento que materializa nossos sentimentos e pensamentos, e é esse, inclusive, o princípio da psicanálise. Falando sobre você mesmo você compreende quem é; compreendendo quem é, compreende melhor o mundo.

Ou seja: o trema, embora pareça tão vetusto, tem sua importância, bem como o hífen e os acentos diferenciais. Sem o trema você pode ter dúvida acerca da pronúncia do apelido de um amigo meu de infância, o goleiro Languiça, que, por ser magro e comprido, se assemelhava a uma linguiça, anteriormente adornada pelo pequeno porém inequívoco trema: linguiça. Isto é, você sabia que linguiça se dizia "lin-gu-í-ça" e que Languiça era assim mesmo, tudo junto, o que é muito mais engraçado. O Languiça era bom goleiro. Você deve se lembrar dele, foi aquele que levou uma bolada de futebol de salão bem nas partes pudendas, que incharam horripilantemente, saindo para fora do calção, uma visão medonha.

Agora, de todas as mudanças equivocadas da repelente reforma, a que mais me incomoda é a remoção do acento do para do verbo parar. Nos velhos tempos você ordenava a alguém que pretendesse mexer nas normas da língua:

- Para! E a pessoa parava na hora.

Hoje, se você mandar, "para", ela é capaz de perguntar: - Para onde?

Sem o seu acento, o para é um Sansão de cabeça raspada, à mercê dos filisteus. Depois da repelente reforma, se você quiser ser atendido, tem que gritar:

- Tire suas mãos imundas do meu trema agora mesmo, seu sacripanta de fardão!

Um desperdício de palavras, algo que não combina conosco, brasileiros, que apreciamos as contrações, os diminutivos e as simplificações. É o nosso jeito de pensar e de agir. O que é descomplicado funciona; o que é um pouco mais complexo, fracassa. Amamos a simplicidade. É um predicado. Desde que não vire redução.

DAVID COIMBRA

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