14 DE FEVEREIRO DE 2020
MUNDO LIVRO
Só as baratas sobreviverão
Certa manhã, despertando de sonhos intranquilos, uma barata até então anônima se vê transformada em um humano monstruoso: o primeiro ministro da Grã-Bretanha, Jim Sams. Até ali visto como um homem titubeante e sem pulso, que hesita em aplicar uma drástica mudança exigida pelo povo inglês em um plebiscito, Sams, com sua "metamorfose", logo se transforma em um outro tipo de político, usando de vontade férrea e dos recursos do poder para tornar real uma das ideias mais inesperadas - e estúpidas - da política recente.
Esse é o mote de A Barata, a curta novela mais recente do autor inglês Ian McEwan, uma sátira mais do que aberta, apaixonada ao processo do Brexit, plenamente concretizado no último dia 31 de janeiro, e que determinou a saída da Inglaterra da União Europeia.
Em seu conto que mistura farsa agressiva e ironia ácida, McEwan substitui o Brexit por outra ideia ainda mais polêmica: devido à decisão da votação popular, a Inglaterra precisa adotar em pouco tempo o "reversalismo": a ideia de inverter a direção do fluxo de dinheiro: "Ao fim de uma semana de trabalho, uma funcionária entrega dinheiro à empresa por todas as horas que labutou. Mas quando ela vai às lojas é generosamente compensada pelos preços de varejo de todos os artigos que leva". Uma alteração tão radical em um mundo globalizado em que o comércio com outros países é tão intenso pode jogar o país no caos e em um isolamento econômico, mas Sams, a barata-primeiro ministro, não se importa. Ele é parte de uma horda de insetos infiltrados com um plano - e que McEwan associa diretamente à onda política de extrema direita que varreu o mundo nos últimos anos.
Em um posfácio ao livro, incluído nesta edição, McEwan esclarece que a ideia original, claro, só poderia ser tributária de A Metamorfose, de Kafka (1883-1924), que "se impõe diante de qualquer tentativa de recorrer à troca física entre um homem e um inseto". Ao mesmo tempo, ele diz que, após essa necessária reverência, ele se volta mesmo é para Uma Modesta Proposta, uma das joias da sátira na língua inglesa na qual Jonathan Swift (1667-1745) apresenta a sugestão de que a pobreza na Irlanda poderia ser solucionada se os miseráveis irlandeses fossem autorizados a vender seus recém-nascidos como comida para os mais ricos.
McEwan é um escritor brilhante, isso já se sabe. Mas muitos de seus melhores trabalhos casam um ponto de vista individual e humano com o quadro maior que ele decide pintar. É por isso que Sábado, por exemplo, seu livro sobre a paranoia pós-11 de setembro, é tão melhor que Solar, sua farsa cômica sobre aquecimento global. Nesta nova obra, sua raiva palpável, em vez de ser o combustível, prejudica o casamento entre as duas formas de absurdo que ele quer combinar, a de Kafka, sutil, ancorada no surpreendente e no inesperado, e a de Swift, que defende uma ideia grotesca usando a mais irrepreensível lógica, chamando a atenção para o absurdo do processo, e não do fato. Tal incompatibilidade compromete o conjunto.
A barata
De Ian McEwan
Tradução de Jorio Dauster. Companhia das Letras, 104 páginas, R$ 39,90 (papel) e R$ 27,90 (e-book).
CARLOS ANDRÉ MOREIRA
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