sábado, 15 de fevereiro de 2020


15 DE FEVEREIRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

GIORDANO BRUNO E A CENSURA


Em 17 de fevereiro de 1600, ardeu em uma fogueira no Campo dei Fiori, em Roma, o corpo ainda vivo de um dos maiores pensadores da História, Giordano Bruno (1548-1600). Acusado de heresia, foi preso por autoridades católicas em Veneza, em 1592, e transferido para Roma, em 1593, onde foi mantido preso, torturado e julgado pelo tribunal da Santa Inquisição. Em 20 de janeiro, o Papa Clemente VIII o declarou herege, e logo o colégio de 8 cardeais-juízes proferiu a sentença de morte e o entregou às autoridades civis de Roma, em 8 de fevereiro. 

Na manhã daquela quarta-feira de cinzas, Giordano foi conduzido à praça com a língua presa (ou cortada), atado em uma estaca, nu e de cabeça para baixo, e incinerado, enquanto um coro cristão cantava litanias diante do povo. O cardeal Bellarmine, líder da acusação a Giordano Bruno, foi canonizado pela Igreja Católica em 1930. O Vaticano jamais desculpou-se por esse assassinato, e ainda sustenta que estavam certos ao condenar o pensador à morte e executá-lo com requintes de crueldade.

Esse destino pavoroso fez de Giordano Bruno o maior mártir do livre pensar, e o mais veemente sintoma da intolerância contra a ciência e a cultura. Entre as 12 acusações apresentadas (e refutadas por Giordano), predominavam temas religiosos, mas causava escândalo sua tese cosmológica sobre o infinito do universo e dos mundos (planetas), enunciada em um livro publicado 1584, em Londres, um admirável diálogo filosófico. 

Giordano herdara a tese sobre o infinito do erudito cardeal alemão Nicolau de Cusa (1401-1464), mas dera a ela renovado e vigoroso argumento. Familiarizado com a teoria heliocêntrica de Copérnico (1473-1543), Giordano acrescentava argumento teológico: se deus é infinito, sua obra deve ter a mesma natureza. Apontava, então, para o que é hoje uma das metas da astronomia, a busca de planetas similares à Terra (exoplanetas) orbitando em torno de outras estrelas do universo, tema de projeto concebido por Carl Sagan (1934-1996) e realizado pela Nasa. Giordano Bruno, um precursor, sofreu a incompreensão de sua era e pagou com sua vida pela ignorância de seus contemporâneos.

Em 1603, a obra de Giordano Bruno foi inscrita no Índice de Livros Proibidos da Igreja Católica. Iniciada em 1557, essa lista complementou o trabalho repressivo da Inquisição e condenou milhares de obras e autores por muitos séculos. Em sua última edição, em 1948, censuravam-se 4.327 obras, de autores como Thomas Hobbes, René Descartes, Immanuel Kant, Émile Zola e Simone de Beauvoir. Em 1966, o Vaticano concluiu que, dada a imensa quantidade de publicações na atualidade, já não teriam como controlar, e descontinuou a lista, mas manteve-se a condenação moral a todas as obras listadas até então.

O estudo da História costuma revelar o quão terrivelmente atuais são muitos fatos do passado. Todavia, indiferentes à estupidez dos censores, autoras e autores escrevem sempre visando ao futuro de ideias, que chegam aos seus sentidos, e animam a perpetuação da inteligência, da beleza e da liberdade.

Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS | marshall@ufrgs.br - FRANCISCO MARSHALL

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