terça-feira, 25 de fevereiro de 2020


25 DE FEVEREIRO DE 2020
ARTIGOS

A ciência e as palavras

Peço desculpas antecipadas pela longa citação, mas ela é fundamental para a nossa hipótese: "As ciências reformularão nosso meio ambiente ou o contexto de lazer e subsistência no qual a cultura é viável. Contudo, embora tendo inesgotável fascinação e constante beleza, as ciências naturais e matemáticas só raramente são de interesse fundamental. Com isso quero dizer que acrescentaram pouco a nosso conhecimento ou controle das possibilidades humanas, que comprovadamente existe mais compreensão da questão do homem em Homero, Shakespeare ou Dostoievski do que em toda a neurologia ou estatística".

É do crítico literário George Steiner, recentemente falecido. Está em seu livro de ensaios sobre a crise da palavra. Estranha que tenha sido escrito nos anos 50 do século passado, pois o tempo lhe fez mais atual. Já são ínfimas as reações críveis contra a realidade do aquecimento do planeta e seus efeitos devastadores. Habitamos um mundo degradado em seu invólucro, hoje desprotegido, e o mostrando nos atos de enchentes, queimadas, derretimentos. Sem palavras.

Steiner previu faz meio século. A ciência é cada vez mais capaz de explicar o fenômeno tintim por tintim, em palavras objetivas e praticamente irrefutáveis, ainda que as refute uma onda de governos conservadores, retrógrados, incluindo o nosso, incapazes de lidar com o maior desafio de todos os tempos, que é a sobrevivência.

Mas Steiner foi além e concedeu-nos uma compreensão: não falta ciência para explicar os fenômenos. Faltam subjetividade e palavra com escuta para evitar o seu avanço. E, como ele mesmo vaticinou, faltam Homero, Shakespeare e Dostoievski. E Chico, Caetano e Zeca Pagodinho. Falta a poesia de uma palavra verdadeira que existe nas mães (não só), nas artes (em todas) e precisa ser trabalhada desde cedo. Paradoxalmente, faltam as humanidades, hoje ameaçadas nos currículos.

Quanto a Steiner, não parece ter faltado nada: "A luz que temos sobre nossa condição essencial e íntima ainda é concentrada pelo poeta.".

Psicanalista e escritor | celso.gut@terra.com.br - CELSO GUTFREIND

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