29 DE FEVEREIRO DE 2020
MARTHA MEDEIROS
Amigos imaginários
Foi das boas surpresas cinematográficas deste verão: Jojo Rabbit. O filme (que ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado) é lúdico, divertido, inteligente e ousado: dá para imaginar um garotinho que tenha Hitler como amigo imaginário?
Pequena ainda, eu me fechava no quarto e cantava para plateias que só eu enxergava, mas um amigo imaginário, nunca tive. Uma pena, pois toda criança tem múltiplas razões para providenciar um cúmplice secreto e invisível que concorde com o plano de assaltar a geladeira de madrugada e que ajude a enfrentar os monstros embaixo da cama. Crianças têm medo e não gostam de se sentir sozinhas.
Hoje, crescidos, ainda temos amigos imaginários, e acho que é por medo também. Sabe aqueles milhares de nomes que te seguem no Facebook e no Instagram? Não custa lembrar: são amigos só na sua cabeça.
Não temos mais idade para fazer xixi na cama, mas ainda ficamos apavorados só de pensar na solidão, o bicho-papão de 10 entre 10 adultos. Em vez de aceitar que ela é parte de nós e que não é tão medonha assim, preferimos disfarçá-la através de uma socialização de faz de conta. Fotografo meu congrio com batatas, posto nas redes, 42 pessoas curtem, e já não estou almoçando sozinho.
Enquanto isso, a Maria, uma das que curtiu seu peixe com batatas, está compartilhando um texto sobre política e recebendo dezenas de aprovações em forma de likes, e o João, que também curtiu seu congrio, está postando a foto da afilhada que hoje faz 15 anos. Todos com o celular na mão buscando a confirmação de que não estão sós.
É uma cachaça, eu sei, também posto. Mas temos que falar sobre isso. Ficar tanto tempo no celular, ao contrário do que parece, é a maneira mais rápida de sucumbir à solidão, pois não se está com ninguém, nem consigo próprio. Desperdiçamos um tempo que poderia ser dedicado à introspecção, à leitura, à música - à nossa insubstituível companhia.
Tem muita coisa interessante na timeline de pessoas interessantes, e muita bobagem na timeline dos bobos. Sabendo fazer uma filtragem, as redes se tornam proveitosas fontes de informação. Se, além disso, elas forem usadas para dar o pontapé inicial numa relação de amizade, profissional, romântica ou sexual, ótimo - a internet ajuda a adiantar o serviço. Mas, se a ideia é apenas colecionar milhares de seguidores, adicionar o amigo do amigo do amigo de algum conhecido, sem jamais transformar isso em alguma experiência de troca real, aí é só um exercício de ilusão para amenizar carências infantis. Serão sempre amigos imaginários que, caso você conhecesse mesmo, talvez não merecessem se sentar com você à mesa para compartilhar seu peixe com batatas.
MARTHA MEDEIROS
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