25 DE FEVEREIRO DE 2020
CARPINEJAR
Nossos três beijinhos
O Rio Grande do Sul, ao lado de Santa Catarina e Sergipe, é um dos últimos redutos dos três beijinhos no país. Um dos derradeiros focos de resistência de um cumprimento que mais lembra uma partida de pingue-pongue.
São as únicas mecas do exagero no país. A maior parte dos Estados se divide em um módico beijinho (SP, MT, MS, PR, RR e AP) e o educado dois beijinhos (RJ, MG, AC, AM, RO, PA, MA, PI, CE, RN, BA, PE, PB, AL, TO, GO e ES)
É muito peculiar da nossa vontade de sermos inesquecíveis já no primeiro contato, de chamar atenção, escandalosos de afeto como somos. Não queremos simplesmente conhecer alguém, mas atingir a intimidade logo de cara. Nosso interesse é estratégico: dar sinais de uma simpatia irresistível e afastar do destino qualquer resquício de distância, hostilidade e estranheza.
Percebo que a trinca de saudação expõe uma carência de fundo, o quanto o gaúcho valoriza a opinião alheia, a ponto de buscar garantir a aceitação por antecedência. Sua atitude tem um caráter preventivo, de neutralizar qualquer ameaça e desconfiança que venha a surgir para os laços. Ele torna-se imediato companheiro de fé antes mesmo da confirmação das experiências.
Da teoria do homem cordial, de Sérgio Buarque de Holanda, criamos a nossa tese de homem e mulher espalhafatosos. Existe um despudor no temperamento, uma predisposição inconsequente no momento do abraço. Não importa se está passando gripe ou resfriado, desde que fique claro o seu afeto. Ele não mensura riscos, fazendo o tipo contagioso do amor.
Também revela um tom jocoso e zombeteiro, próprio de quem se acostumou à comédia como pacto das afinidades. Ele sabe que os três beijinhos vão gerar o desconforto do excesso, afinal ir de um lado para o outro da bochecha sem parar não é nem um pouco natural. Ele cria relações a partir do vexame e do mico. Testa a paciência do seu interlocutor para descobrir se ele está sendo apenas formal ou o encontro é de verdade, sincero em sua intenção. A graça vem a ser a principal característica da nossa cumplicidade. Tirar sarro é, paradoxalmente, respeitar. Amigo mesmo é sempre motivo de piada.
Há ainda o prazer de desafiar os turistas com os mandamentos insólitos da cultura. Mente quem não sentiu indisfarçável prazer ao ver alguém de fora não entendendo o que estava acontecendo, indeciso, assustado, tendo o rosto arremessado ao vazio de repente.
O que mais gostamos de fazer é demarcar as nossas diferenças. Orgulhamo-nos de passar recibo de nossas particularidades.
Ao final, não aceitamos menos na hora do encontro. Batemos os pés com orgulho para manter a tradição:
- Desculpe, mas aqui são três beijinhos.
CARPINEJAR
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