29 DE FEVEREIRO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL
Sociedade e mercado, a fábula
Sociedade era mais do que uma dama, uma família, em verdade, uma aldeia, que era um conjunto de famílias. Na aldeia Sociedade, havia de tudo, inclusive uns primos que se moviam pela ambição de riquezas e que atendiam, curiosamente, todos pelo mesmo nome: Mercado. Sociedade sabia o que queria - sobreviver em paz -, e por isso cedo criou regras que interessavam a ela, Sociedade, visando à harmonia social e ecológica. Afinal, Sociedade era o corpo maior, em que estava contido não apenas o clube dos ambiciosos, o Mercado, mas também outros clubes, dos anciãos e das crianças, dos poetas, de professoras, desportistas, gentes dos museus e orquestras, dos órgãos assistenciais, da segurança pública, isso tudo, e muito mais, eram partes da Sociedade. Mercado era não mais do que uma pequena parcela de Sociedade, porém muito vaidosa e ambiciosa.
Houve uma era, ó Lector, em que a aldeia Sociedade foi tomada de assalto, atacada e devorada. Foi uma época de desequilíbrio, quando Mercado agrediu com violência, querendo para si todos os bens e valores da Sociedade. Cada vez mais rico e poderoso, capaz de comprar, seduzir, manipular e corromper, Mercado chegou ao trono e avançou ditando para todos regras que favoreciam apenas a ele, ou a eles, membros de um clube pródigo, chamado Oligarquia Plutocrática, em que Mercado brindava seu sucesso com malignas gargalhadas. Ao ardiloso Mercado, não interessavam as razões de Sociedade; achava todas ociosas. Valia apenas o que a ele saciava, Mercado. E assim seguia a vida.
Para seduzir o povo de Sociedade, Mercado comprou todas as tipografias e os teatros e, ademais, logrou camuflar-se com o aspecto de uma ancestral muito antiga, chamada Realidade. Mercado parecia ter realizado seu sonho, confundir-se com a Realidade, e persuadir aos demais de que ele, Mercado, era a Realidade. Nisso, Mercado engoliu a Sociedade como o Lobo Mau engoliu a Vovozinha. A documentação da época é impressionante. Nos noticiosos, anunciavam-se diariamente números do corpo de Mercado, suas cotações e humores, e se falava das vontades do Mercado como se fossem os quereres de um senhor muito forte, primo-irmão do Leviatã de Hobbes, porém com cara de anjo necessário.
Convertidas em vermes na barriga do Mercado, as partes, clubes e classes da Sociedade apenas ruminavam, e muitas, ingênuas, no fundo da caverna das entranhas do Mercado, acreditavam que era mesmo a Realidade. Abandonou-se o interesse da mamãe Sociedade (onde foi parar?); interessava apenas a felicidade do Mercado. Para exaurir a Sociedade devorada, Mercado tratou de secar-lhe as veias e artérias, chamadas Esfera Pública e Espaço Público. Mercado tinha ojeriza a toda a família Pública e queria devorá-la, como voraz canibal. Escola Pública, Saúde Pública, Cultura Pública, Praça Pública ou até Mercado Público pareciam ser presas apetitosas a Mercado, para serem abocanhadas e ampliar o vigor de Sua Alteza Leviatã-Mercado. (continua)
marshall@ufrgs.br | Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS
FRANCISCO MARSHALL
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