sábado, 29 de fevereiro de 2020



29 DE FEVEREIRO DE 2020
ARTIGO

SATURNO EM CHAMAS

QUEM CURSOU MEDICINA NO SÉCULO 20 FOI ENSINADO A PENSAR QUE HAVIA UMA BARREIRA IMPERMEÁVEL ENTRE O CÉREBRO E O SISTEMA IMUNOLÓGICO. NO SÉCULO 21, FICA EVIDENTE QUE ELES ESTÃO PROFUNDAMENTE INTERCONECTADOS
A noção da melancolia na filosofia e nas artes medicinais da Antiguidade e da Idade Média baseava-se na Teoria dos Humores, que atribuía comportamentos e doenças ao equilíbrio dos elementos sangue, linfa, bile amarela e bile negra. A teoria perdurou entre o século 4 a.C. e o século 17 e permanece em termos, conceitos e equívocos. 

Da mitologia e da astrologia, a imagem de Cronos/Saturno - o deus e o planeta - impôs sua influência sombria. De Aristóteles (que ligava melancolia e genialidade) a Walter Benjamin, Freud, Shakespeare e Albrecht Dürer, muitos filósofos, pensadores, literatos e outros artistas debruçaram-se sobre o tema, não raro pelo peso da vivência pessoal. Do Renascimento ao Romantismo, das ligações da melancolia à criatividade até o reconhecimento da depressão como doença de importante repercussão na saúde pública, fez-se longo caminho. Ainda causa maior drama quando negada como enfermidade real e atribuída apenas a um estado de desânimo, de sujeição à falta de vontade.

A psicanalista e filósofa búlgaro-francesa Julia Kristeva questiona: "De onde vem esse sol negro? De que galáxia insensata seus raios invisíveis e pesados me imobilizam no chão, na cama, no mutismo, na renúncia?".

O século 20 viu a evolução da psicologia e da psiquiatria até a chegada de alternativas medicamentosas à extensa classificação de doenças a partir de suas apresentações clínicas. Passou-se a falar muito em doença mental, sem conhecer suas causas e o tratamento mais adequado. O estigma persiste, mas vai sendo substituído por uma maior aceitação social. Também assistimos a uma mudança de posicionamento frente às práticas de internação e suporte dos doentes, com uma evolução considerável, embora ainda acirrem-se debates em grupos antagônicos que se aproximam e se assemelham em seu anacronismo dogmático. A realidade socioeconômica também não favorece.

A circunstancial presença de um reumatologista, clínico que lida com doenças inflamatórias e autoimunes, num hospital psiquiátrico pode provocar estranhamento, mas me oportunizou a convivência com muitos pacientes e a constatação de que os serviços de saúde física e mental seguem segregados, refletindo um preconceito filosófico contrário à conexão entre mente e corpo.

Não deverá ser assim por muito tempo. É o que diz Edward Bullmore, neuropsiquiatria britânico, professor da Universidade de Cambridge, autor de The Inflamed Mind. Em recente entrevista para o The Guardian, o autor entusiasma-e com esse novo marco científico: o vínculo entre depressão e inflamação. Sugere a origem dos transtornos mentais no sistema imunológico e tratamentos específicos na ruptura de ciclos viciosos de estresse, inflamação e depressão.

O cérebro descortina-se célere como nova fronteira para o entendimento da inflamação. Quem cursou Medicina no século 20 foi ensinado a pensar que havia uma barreira impermeável entre o cérebro e o sistema imunológico. No século 21, fica evidente que eles estão profundamente interconectados.

Para os reumatologistas, essa revolução já começou com o advento dos medicamentos imunobiológicos, tornando possível o controle de artrites de forma antes apenas idealizada. O mesmo vale para muitos casos de câncer, com perspectivas animadoras. Entre doenças neuropsiquiátricas, avanços no tratamento da esclerose múltipla têm apontado direções. Novos medicamentos são projetados para proteger pacientes contra danos cerebrais causados por seus próprios sistemas imunológicos. Espera-se que o direcionamento da inflamação cerebral possa levar a avanços na prevenção e no tratamento de depressão, demência e psicose. Medicamentos já vêm sendo testados como possíveis tratamentos imunológicos para a esquizofrenia.

O horizonte parece ser bem mais amplo, afirma o doutor Bullmore. Investe-se em testes de medicamentos anti-inflamatórios para a doença de Alzheimer e o Parkinson. Mas isso não se dá somente em relação a fármacos. Revisa-se também o papel de dieta, obesidade, estresse, microbioma intestinal, doenças gengivais (que, além de porta de entrada para infecções, parecem estar associadas a uma aceleração do déficit cognitivo à medida que ficamos mais velhos) e outros fatores de risco na inflamação de baixo grau que pode ser controlada sem medicamentos. Inúmeros estudos também avaliam os efeitos anti-inflamatórios de intervenções psicológicas, meditação ou atenção plena, ou programas de gerenciamento de estilo de vida, dietas ou regimes de exercícios.

O termo inflamm-aging, que serve para designar o estado inflamatório crônico que acompanha o envelhecimento, torna-se cada vez mais condizente. Ao mesmo tempo em que nos faz lembrar a nossa condição frente à passagem do tempo, adverte para a necessidade de lutar-se preventivamente contra os fatores que aceleram os processos inflamatórios.

Na mesma linha, essa nova abordagem da inflamação e do cérebro se soma a argumentos que têm o potencial de transformar nosso pensamento sobre as doenças. A barreira entre mente e corpo, por tanto tempo alicerçada como dogma, parece estar com os dias contados.

Dentre lembranças, a da mãe de um paciente tentando compreender e justificar o que acontecia com o filho:

- É de um momento para outro, doutor. Está muito bem, até faceiro e falante e, de repente, é como se lhe riscassem fósforos, pequenas labaredas que em nada alumiam, provocam cinzas e escuridão.

Não se subestime jamais a capacidade intuitiva de uma mãe. Saturno pode estar em chamas. Que o deus do tempo não se apresse em devorar seus filhos.

FERNANDO NEUBARTH | MÉDICO E ESCRITOR

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