29 DE FEVEREIRO DE 2020
MÁRIO CORSO
30 de fevereiro
A Câmara Municipal de Porto Alegre, depois de resolver todos os problemas da cidade, voltou-se para consertar os humanos. Para tanto, instituiu mais um dia no calendário de efemérides comemorativas e de conscientização. Trata-se do Dia Municipal do Amor-próprio, celebrado no dia 28 de fevereiro. Na última sexta-feira, portanto.
A minha sugestão é que seja deslocado para dois dias à frente, para 30 de fevereiro. Mas esse dia não existe, alguém dirá. Exato, por isso a efeméride coincidirá com o tema: o amor-próprio tampouco existe.
É contraintuitivo, mas veja como funciona. O eu só toma-se como objeto de amor, ou seja, ama a si mesmo, se outra pessoa se interessar por ele. Em outras palavras, se alguém apontar que ele é legal, então ele vai gostar de si. A questão que sublinho é que o processo começa fora. Ou seja, é ilusoriamente interno, pois funda-se através da alteridade. O correto seria dizer que essa satisfação consigo mesmo é uma heteroestima internalizada.
O dito amor-próprio existe porque no passado alguém nos amou, cuidou, educou e acreditou que seríamos algo. Esse passado amoroso cristaliza-se no que vem a ser chamado de amor-próprio.
Mas não dá para fazer uma ligação direta: eu e eu mesmo, sem passar por alguém? Não poderia apenas eu gostar de mim, fundando uma bolha narcísica autoalimentada? Funciona por um tempo, e é o que ensinam os livros de autoajuda, a negação da necessidade da alteridade. O problema são os efeitos colaterais delirantes que paralisam o crescimento. O que nos altera e nos enriquece são os outros, é no atrito social que crescemos, não no isolamento.
Somos seres sociais, nosso sucesso passa por nos inserirmos e sermos reconhecidos. Quando isso, por várias razões não acontece, por sermos ineptos socialmente, sermos desinteressantes, ou até por não fazermos por merecer o amor e o reconhecimento, vamos precisar driblar o problema. O correto seria verificar a razão e corrigir o rumo, crescer, mudar, ou descobrir que estamos na tribo errada.
O atalho é negar a alteridade e ficar como estamos, nos iludindo de que tudo estaria bem. Essa é a base da ideologia da autoajuda. Criar algo alucinado em que o eu seria bom o suficiente, mesmo que ninguém diga que é, assemelhando-se à loucura nas suas certezas autofundadas.
Existem momentos da vida em que apenas nós acreditamos em nós mesmos. Quando desafiamos o destino e queremos mudar nossa vida. Por exemplo, trocar de trabalho, de carreira, de cidade, buscando outros desafios. Para isso, precisamos contar com a tenacidade do nosso desejo. Nesse momentos, confundimos coragem e resiliência com amor-próprio.
A efeméride carrega o equívoco do discurso de autoajuda sobre a autossuficiência e pensa o amor-próprio como a mola central do nosso funcionamento. Os humanos não são tão simples.
MÁRIO CORSO
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