sábado, 30 de abril de 2016



30 de abril de 2016 | N° 18513 
MARTHA MEDEIROS

Adúlteros

Um adulto de verdade trai a si próprio sem um pingo de culpa. Festeja a alforria que o acúmulo de vivência lhe trouxe de bônus

Todo adulto é um adúltero. Não precisa ser fiel a mais nada.

Se ele continua apegado a antigas convicções, antigas preferências e antigas manias, é um preguiçoso que se acomodou, escolheu viver de forma repetitiva, no piloto automático, cansado para novos entusiasmos. Está aguardando a morte sem aproveitar a liberdade que a maturidade lhe daria, caso tivesse amadurecido. Se ainda está agarrado ao que lhe definia aos 18 anos, então não saiu mesmo dos 18.

Um adulto de verdade, bem acabado, trai a si próprio sem um pingo de culpa. Festeja a alforria que o acúmulo de vivência lhe trouxe de bônus. Tornou-se um condenado à morte com direito a centenas de últimos desejos.

Um adulto é um adúltero que um dia jurou fidelidade eterna aos Beatles e aos Rolling Stones, mas que um belo dia cansou de conservá-los com naftalina e que resolveu confessar que já não consegue escutar Yesterday sem enfrentar náuseas e que se sente ridículo dançando I Can´t Get No Satisfaction. Trocou o rock pelo neo soul, seja lá o que for isso. Escuta coisas que despertam sua atenção aqui e ali, estilos que gosta num dia e dispensa no outro, e segue em busca de novidades sem querer aterrissar em mais nenhuma “banda preferida” que lhe enclausure num perfil. Só não rasga a carteira de identidade porque o juízo se mantém.

Um adulto é um adúltero que adorava o verão quando era um frangote, mas que, ao abandonar as pranchas e ao se aproximar dos livros, acabou criando uma predileção pelo inverno, até que o tempo passou mais um pouco e ele entendeu que a primavera e o outono é que eram cativantes pela ausência de extremismo, e agora, neste instante, voltou a preferir o verão, mas não assina embaixo, não tem mais firma reconhecida em cartório algum.

Um adulto é um adúltero que deixou de ser fiel aos próprios gostos. Deu-se conta disso quando, ao frequentar a casa de amigos, reparava que serviam a ele sempre o mesmo prato preferido: como explicar que virou um cafajeste gastronômico chegado a outros sabores? As conversas igualmente passaram a se repetir, e ele se pegou aceitando convites de estranhos - hoje é chegado a outros amigos também.

Don Juan de si mesmo, já não tem cor que lhe assente, autor que o represente, estilo de vestir que o catalogue, pensamento que o antecipe, sonho que o enquadre, viagem que o carimbe. Só não muda de time porque restou algum caráter.

Quanto ao amor, não é tolo. Sabe que quanto mais ele se abre para o mundo, quanto mais areja e celebra a própria vida, mais seguro estará nos braços de uma única pessoa, preservando a intimidade conquistada. Amor não é cor, música, esporte, estação do ano, ponto no mapa. Ele varia a si mesmo justamente para não precisar se procurar em mais ninguém.



30 de abril de 2016 | N° 18513 
CARPINEJAR

Trabalhos de Hércules


Sua aprovação pela família da namorada depende de um demorado estudo de caso. Você pode ser tolerado, mas contar com o apoio é negócio sério. Não é porque troca sorrisos, é chamado para o churrasco de domingo e recebe lembrança nas datas comemorativas que foi aceito. Não cante vitória antes do apito final. Os sogros são craques na arte de misturar cordialidade e fingimento.

O estágio probatório não decorre da quantidade de meses da convivência, é resultado de três experiências cruciais: aniversário, casamento de parente e velório de alguém próximo. Com exceção do primeiro, o mais fácil de se prever, o segundo e o terceiro virão de sortilégios e fatalidades do reduto familiar. É comum não atravessar a trilogia da aceitação, e assim namorados permanecem no limbo do estado civil e jamais são definitivamente aprovados ou negados.

Para ser levado a sério, necessita atravessar os rituais fundamentais da maturidade, caracterizados pela passagem do tempo, pela celebração do amor e pelo respeito ao fim e à morte. Só assim entenderá a gravidade de um compromisso. Reagirá aos extremos dos encontros e das pessoas, onde tudo pode acontecer – tudo mesmo!, desde piadas de mau gosto, passando por provocações carentes, desembocando em escândalos inesquecíveis. A chance de escapar de um constrangimento é mínima. Descerá ao último círculo infernal do contato humano. Prepare-se para a chacota de primos, para indiscrições das tias, para a troca consecutiva de seu nome.

Não haverá melhor curso de noivo do que enfrentar a parentada alheia na alegria e na tristeza.

No aniversário de sua namorada, demonstrará a avareza ou a generosidade, se é capaz de fazer uma festa-surpresa, chamar os amigos e escolher um presente que simbolize que a conhece bem. Representa um momento único de discrição, em que descobrirá se está preparado para desaparecer em nome da visibilidade completa da aniversariante.

No casamento, serão testadas a sua educação e autocontrole. Não deve beber demais ou comer excessivamente, muito menos estragar a reputação na pista de dança descendo até o chão. Evite puxar estranhas para coreografias e convidar vovós a números sensuais. Trata-se da prévia do seu futuro casamento, se é habilitado a suportar o calvário das declarações românticas sem recorrer ao cinismo e ao sarcasmo.

No enterro de um ente querido daquela que ama, terá que encontrar a elegância do terno e da alma escura. Provará o gosto amargo da saudade e das cenas engasgadas da despedida. Conhecerá também a insuficiência das palavras de apoio. Por mais que ofereça colo e conforto, jamais aplacará o sofrimento de sua companhia. Secará as lágrimas do rosto dela com a ponta dos dedos, cuidando para não borrar ainda mais a sua maquiagem, consolará quem você nunca viu na vida, manterá a cabeça erguida e atenta aos gritos e uivos ao redor do caixão.

Se você sair ileso da tríade de situações-limite pode retirar a certidão de nascimento na família da sua namorada.



30 de abril de 2016 | N° 18513 
ANTONIO PRATA

CINCO SOLUÇÕES PARA O BRASIL

1.Democratizar a corrupção. O maior problema do Brasil não é que se rouba muito, é que se rouba pouco. Ou melhor: enquanto o 0,1% no Land Rover desvia bilhões, os 99,9% que tomam banho de poça no ponto de ônibus se contentam com as migalhas que conseguem agarrar.

Outro dia, a válvula da descarga estava vazando. Ari, o zelador, deu uma olhada, foi ao depósito da esquina, comprou uma borrachinha e me trouxe a nota de R$ 7,50. No dia seguinte, fui comprar pregos no mesmo depósito: a borrachinha custava R$ 3,50. Não senti raiva do Ari, senti uma profunda compaixão. Eu vou aos EUA e trago dois iPads na mala, moqueados entre a roupa suja: pilho assim uns R$ 1,5 mil da Receita Federal. Eduardo Cunha, numa única negociata, recebe R$ 4 milhões de Fernando Baiano. Enquanto ao Ari, injustiçado Ari, só são dadas condições de desviar R$ 4 da borrachinha do meu lavabo. (A Brahma no Bar e Lanches Sandoval tá R$ 7).

Só vamos realmente dividir renda neste país quando democratizarmos a bandalheira. O melhor é que pra isso não precisa ensinar a ninguém as quatro operações ou as regras de acentuação dos ditongos: o brasileiro pobre já sabe roubar como o rico, ele só precisa de igualdade de condições.

2. Há uma década se fala em trazer um técnico estrangeiro para a Seleção. E por que não trazer políticos estrangeiros para a nação? Barack Obama está se aposentando. Angela Merkel certamente gostaria de passar uns tempos nos trópicos. Mujica é nosso vizinho. O PSDB quer o parlamentarismo? Ótimo, que compremos logo um parlamento inteiro. Da Inglaterra. Da Noruega. E se nem isso funcionar, só vai ter um jeito: Guardiola para presidente. (Quem duvida que seis meses de tiki-taka na economia – com Iniesta na Fazenda – reanimariam a nossa combalida indústria e criariam uma saraivada de empregos?)

3. Vamos consultar um numerólogo. Assim como Jorge Ben estourou repetindo o começo do nome no fim, virando Jorge Benjor, quem sabe não encontremos nosso caminho ao nos rebatizarmos Brasilbra? Ia atrapalhar um pouco a métrica de Aquarela do Brasilbra: “Brasilbra, meu Brasilbra Brasilbreiro”, mas o que são uns versos tortos ao lado da felicidade de 200 milhões de patrícios?

4. Fuga pro Uruguai. Eles têm uma esquerda que funciona, direitos civis que funcionam, um vinho que funciona, uma carne que funciona, uma maconha que funciona e uma linda capital – que funciona – praticamente vazia a nos esperar.

5. Caso nenhuma das soluções anteriores dê certo, apresento aqui a saída derradeira, saída que serve não só para países em crise política e econômica como para pessoas em crise existencial, emocional, profissional etc e tal: vamos encher a cara. Vamos pegar o que nos resta das reservas nacionais e promover um churrascão contínuo com caipirinha, cerveja, Catuaba e Cynar. Mamemos nas tetas do Estado até que o déficit hepático seja maior do que o déficit orçamentário. 

Neste dia, já conformados com o fato de que isso tudo não passou de um sonho intenso, de um raio vívido de amor e esperança ao som do mar e à luz do céu profundo, nos deitaremos eternamente em berço esplêndido; as margens fétidas do Ipiranga já não ouvirão mais brado algum e o florão da América, em sempiterno silêncio, será iluminado pelo sol do novo mundo. Pátria amada, hic!, Brasil!



30 de abril de 2016 | N° 18513 
L.F. VERISSIMO

Geometria


Por que certas coisas sem importância aderem à nossa memória como craca num casco velho? Uma vez, o Barão de Itararé foi visitar meu pai. Não sei se já se conheciam ou se conheceram-se então. Eu devia ter uns 12 anos, o suficiente para saber quem era o Barão de Itararé e para não querer perder um minuto da conversa. E, no entanto, só o que me lembro daquele dia foi o Barão descrevendo como se abotoava uma camisa:

– Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho...

Eu sei, a lembrança não está à altura do grande humorista, que deve ter dito coisas memoráveis. Mas o que ficou foi isso. Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho. E o pior é que, até hoje, quando fecho uma camisa, repito mentalmente as palavras do Barão.

– Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa...

E aquelas músicas que não nos saem da cabeça? Geralmente são músicas ruins, que você tenta abafar pensando numa música boa. Em vão. A música reincidente volta sempre. Às vezes, você nem sabe que música é. Onde foi que eu ouvi isso, meu Deus? Será que eu mesmo inventei e não consigo parar de me atormentar com ela, numa espécie de suicídio auricular? Sempre imaginei que um sintoma de loucura irreversível é a pessoa não parar de ouvir o Bolero de Ravel na sua cabeça, o tempo inteiro.

Nós não nos conhecemos. Tive uma prova disso quando comecei a estudar num high school americano e me vi em território nunca explorado na minha experiência prévia de estudante brasileiro, principalmente na área da matemática. Dois mais dois também eram quatro nos Estados Unidos, mas fora isso eu estava perdido, incapaz de acompanhar os trabalhos de aula. Tudo agravado pela minha timidez e meu horror congênito a escola, qualquer escola, americana ou brasileira.

Até que um dia... Completei um trabalho de geometria e, ao entregar o trabalho para a professora, notei que era o primeiro a fazer isso e que os outros demonstravam dificuldade em terminar o que eu completara em poucos minutos. A professora elogiou meu trabalho e dali em diante, sempre que precisava de alguém para mostrar no quadro-negro a solução que escapara a todos os outros, chamava: “Mr. Verissimo...”.

O mistério dessa história é que eu não sabia que sabia geometria. Tinha uma vaga lembrança de estudar geometria no Brasil, mas nada que me transformasse, milagrosamente, naquele mestre na matéria. A geometria, em mim, era inata, um dom. Deixei de ser o estrangeiro que não compreendia nada e passei a ser requisitado para dar cola aos colegas. De onde saíra aquela sabedoria, aquela familiaridade com hipotenusas e ângulos? Eu não tinha a menor ideia.

Anticlímax. Depois que deixei o high school, e pelo resto da minha vida, nunca mais precisei usar a geometria.



30 de abril de 2016 | N° 18513 
DAVID COIMBRA

Viciado em xadrez

Meio que me viciei em jogar xadrez na internet.

Sabe o que significa isso?

Que estou me aproximando da chamada idade provecta. Sim, porque você pode medir um homem pelos seus vícios. Drogas leves? Fermentados & destilados? Mulheres de pernas longas? Prazeres inenarráveis? Ou xadrez? Cada qual com suas possibilidades.

Sartre, no fim da vida, já totalmente goiaba, imaginava que jogava renhidas partidas de xadrez com Hercule Poirot, o detetive belga da massa cinzenta. Seriam confrontos históricos entre dois homens inteligentíssimos, não fosse o desagradável pormenor de que Poirot só existiu na ficção de Agatha Christie.

De qualquer forma, o fato de Sartre ser adepto do xadrez diz muito sobre sua personalidade. Um homem que joga xadrez é dono de vasta energia agressiva, e a energia agressiva em geral é de natureza sexual. Pois em verdade vos digo: não há jogo mais violento do que o xadrez.

Já contei aquela história sobre xadrez que se passou no meu tempo de IAPI?

Contarei.

Deu-se que um desses mestres infantojuvenis de xadrez desceu ao nosso bairro a fim de enfrentar 10 jogadores simultaneamente. O desafio ocorreria na Biblioteca Pública Romano Reif, que, na época, ficava numa sala do prédio de administração da Coorigha, na Plínio Brasil Milano. Hoje a biblioteca está incrustada bem em frente ao Alim Pedro, onde o degas aqui dava lançamentos de 55 metros, estilo Roberto Rivellino, para que o Jorge Barnabé pegasse na ponta-direita e fizesse o gol, estilo Búfalo Gil.

Até entrar na faculdade, li todos os livros dessa biblioteca. Ou, pelo menos, todos os que me interessavam, algumas centenas. Uma biblioteca pública pode mudar a vida de uma pessoa. Mas que governante consideraria boa ideia comprar livros?

Seja.

Estava contando a respeito do desafio simultâneo havido na biblioteca, nos anos 1970.

Quando o guri chegou ao IAPI, o tal mestre juvenil, confesso que ri dele. Mó cara de moscão, como se dizia na época. Candidatei-me a ser um de seus adversários. Sentei em frente ao tabuleiro com confiança sorridente, mas, já nos primeiros dois ou três movimentos, comecei a ficar aflito. Ele atacava com ferocidade, jogando aqueles bispos e cavalos para frente, espetando-me com seus peões, atirando-me para as fileiras de trás da minha defesa.

Eu olhava para ele, tentando adivinhar suas reações, mas ele jamais me encarou. Ficava fitando o tabuleiro fixamente, usando aqueles dedos gordinhos para mexer as peças com rapidez estonteante. Duvido que tivesse reparado no rosto de qualquer um de seus 10 inimigos, e, no caso, nós éramos inimigos mesmo, ele queria nos trucidar o quanto antes e com toda a crueldade possível. Enquanto ele amassava os outros, eu ficava tentando encontrar uma saída para a situação em que me encontrava, mas ele logo se punha na minha frente outra vez, não havia tempo, era uma angústia. Perdi, perdemos todos nós, em escassos minutos. Terminado o serviço, ele se foi sem nem dar tchau, nos deixando no chão, desmontados e despeitados.

Aquele rapazote era um tipo perigoso. Ou ele hoje é campeão de xadrez ou é assassino profissional.

É a tal energia agressiva de que falo. Essa energia existe em todos, mas principalmente nos homens. Oitenta por cento dos acidentes fatais, no trânsito, são causados por homens. Oitenta por cento dos crimes violentos são cometidos por homens. Homens, agora, ofendem-se e se cospem por causa da política, no Brasil.

É preciso canalizar essa energia para outras atividades. Um Michelângelo, um Picasso, um Leonardo ou um Freud canalizaram esse poder criando arte ou ciência. Hitler e Stalin canalizaram perseguindo seus semelhantes. No caso do Brasil, em que infelizmente não há muitos Michelângelos, mas felizmente também não há muitos Stalins, nós sempre sublimamos nossa energia jogando futebol. Como o futebol também faliu, restam-nos os jogos de tabuleiro. Larguem a internet, enrolem as bandeiras, parem de cuspir. Vamos jogar uma saudável e cruenta partidinha de xadrez.



30 de abril de 2016 | N° 18513
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

UM TIPO ESQUISITO

É impressionante o efeito manada sobre o comportamento de pessoas consideradas normais. Em grupo, somos capazes de atrocidades que não cometeríamos individualmente. Essas atitudes desrespeitosas são frequentemente consideradas divertidas na infância, ignorando-se que, se não forem coibidas pela educação, estarão sendo forjados os sociopatas do futuro.

Operei, em Maceió, um garoto de sorriso triste que, aos 10 anos, fora retirado da escola pela mãe, temerosa das consequências das inúmeras vezes com que seus inocentes coleguinhas cutucavam o coração do menino, pulsátil no meio do peito e recoberto apenas pela pele, na ausência congênita de fechamento do esterno.

Se a maldade espontânea ainda puder ser blindada pelo anonimato das redes sociais, então todos os limites serão ultrapassados. Vide o desespero dessa mãe australiana que, acostumada com a aparência do filho, postou uma imagem dele com a cara lambuzada de chocolate. O menino é portador da síndrome de Pfeiffer, em que há uma consolidação precoce dos ossos do crânio, deformando o rosto e afastando os olhos. O mais cruel dos comentários comparou o pobre menino a um cãozinho da raça pug. Quando a mãe recorreu à Justiça e ouviu que os responsáveis pelas redes sociais não tinham cometido nenhuma arbitrariedade, a vilania foi liberada.

Um dia desses, encontrei o Rudimar, e bastou ele se apresentar para que eu lembrasse da circunstância constrangedora em que nos conhecemos, décadas atrás, num curso de extensão de inglês. Como em todas as épocas, havia uma tendência de que anualmente alguém fosse “escolhido” para ser a vítima da turma. Não lembro por qual critério, naquele ano, tinha sido ele. Lembro-me do coro com que o recebíamos na sala de aula: “Rudi, Rudi, freak, freak!”. Tudo bem, ele era meio estranho com aquelas meias brancas e a calça curta o suficiente para mostrá-las, mas freak, freak?

Quando ele se identificou e disse o quanto estava feliz de me encontrar e do orgulho que sentia de dizer que me conhecia, mais eu me mortificava pelo bullying ridículo que lhe impusemos naqueles tempos remotos. Convidou-me para um café na sobreloja do supermercado porque queria me contar uma história e por ela me agradecer. Ao vê-lo orgulhoso da sua vida de avô amoroso e empresário bem-sucedido, fui ficando aliviado ao descobrir que, no máximo, ele devia lembrar daquela turma de falsos malandros como um bando de idiotas, e era bem assim que eu me sentia. Queria me contar que cuidara do pai diuturnamente durante os últimos três anos de sua vida e, nessa tarefa, uma crônica que escrevi sobre o efeito carinhoso e relaxante da massagem o ajudara muito.

Um dia, enquanto lhe friccionava os cotovelos enrijecidos, o velho lhe disse: “Tomara que teus filhos prestem atenção no jeito que cuidas de mim, porque o mundo é redondo!”.

Ele, então, improvisou: “Pai, vire de bruços para que eu possa massagear-lhe as costas”. Foi a maneira que encontrou para ocultar o choro que não conseguia mais conter e não queria que o velhinho interpretasse como uma despedida. “Passados três anos, ainda sinto vontade de chorar quando lembro da lambança silenciosa que foi a mistura de lágrimas com creme Nívea!”.

Feito o agradecimento, ele seguiu empurrando o carrinho de compras em direção ao estacionamento. A turma dos babacas tinha acertado o diagnóstico: que tipo esquisito!

sexta-feira, 29 de abril de 2016


MARCO A. BIRNFELD

Mais duas semanas e

Alguns contam os dias nos dedos; muitos, no calendário. Para outros, a ficha ainda não caiu. Mas - segundo transmite a bem-informada "rádio-corredor" do Conselho Federal da OAB - pelo andar da carruagem, a tendência é encerrar, dentro de duas semanas, uma longa etapa da História brasileira que começou em 1 de janeiro de 2003. Tal foi a data da posse do operário e retirante nordestino Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente da República.

Em 12 de maio próximo, terão se completado 13 anos, quatro meses e 11 dias de um período - de acertos e erros - que será muito estudado pelos historiadores.

A menos que ocorra alguma grande reviravolta.

Eleição presidencial só em 2018

O ministro Gilmar Mendes, presidente eleito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - mas ainda não empossado - rechaçou, em um evento para celebrar a adesão do Brasil ao Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea internacional), a possibilidade de convocar novas eleições gerais antes de 2018.

Para Mendes, "a proposta é inviável porque nem a bancada petista tem apoio para aprovar a medida no Congresso, nem a corte eleitoral tem tempo hábil para cumprir os prazos eleitorais".
Abuso de poder

O Conselho Nacional de Justiça determinou a abertura de três processos administrativos disciplinares e o afastamento do juiz Marcelo Testa Baldochi, da 4ª Vara Cível de Imperatriz (MA), por "reiterado comportamento arbitrário e abuso de poder". Em um dos casos, que teve ampla divulgação no País, o magistrado deu voz de prisão a dois funcionários da TAM, por - após ter chegado atrasado ao aeroporto - não conseguir embarcar em um voo que já estava com o check-in encerrado.

A corregedora Nancy Andrighi considerou que "os indícios caracterizam abuso de autoridade de Baldochi pela utilização do cargo para violar o direito à liberdade dos funcionários da companhia aérea, submetendo-os a constrangimentos e a situações vexatórias". (Reclamação disciplinar nº 000612926.2015.2.00.0000).

Sinal dos tempos (1)

As inusitadas e hilárias cenas fotográficas e de entronização da curvilínea "primeira-dama do Turismo brasileiro" são mais um lamentável sinal de que a "Casa Toda" está, mesmo, sem dono.
Segundo a "rádio-corredor" do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, trata-se de um prenúncio de que breve será colado um cartaz nos corredores: "O último a sair, apague a luz, para ajudar na economia da conta".

Sinal dos tempos (2)

A decisão do STF de suspender por 60 dias a decisão sobre os juros simples ou compostos - que serão acrescidos aos débitos dos Estados para com a União - tem um enfoque de calendário político.
É que, na segunda-feira 27 de junho de 2016, o Brasil já terá seu novo ministro da Fazenda com um mês e meio de trabalho. É a ele que caberá a sentar com todos os governadores, para discutir o tamanho e os detalhes do "pepinoduto" financeiro.

Repetitivo (1)

A 1ª Seção do STJ decidiu que não há incidência de PIS e Cofins sobre atos cooperativos típicos aqueles praticados entre cooperativas ou entre elas e seus associados.
A decisão unânime foi proferida em julgamento de recursos repetitivos. Portanto, servirá de orientação para as instâncias inferiores.

Repetitivo (2)

A 2ª Seção do STJ entendeu que as empresas não precisam pagar danos morais em caso de inscrição indevida de inadimplente já incluído em cadastro de proteção ao crédito.
A decisão foi dada em um recurso repetitivo e serve, portanto, de orientação para as instâncias inferiores.


29 de abril de 2016 | N° 18512 
NÍLSON SOUZA

A POESIA DO TÍTULO


Um dia, lá no pretérito imperfeito da minha existência, marquei Pelé. Minha tarefa como jovem repórter de esportes era acompanhar o craque desde sua saída do hotel até o gramado. Depois (eram outros tempos aqueles), fiquei à beira do campo anotando cada movimento seu, as corridas, os dribles, os toques sutis, os chutes e até mesmo os gritos com companheiros e adversários. 

Escrevi, entusiasmado, duas páginas de jornal e fiquei ansioso para conferir no dia seguinte como meu editor trataria o assunto, que título daria para a minha reportagem. Ele resolveu o problema com simplicidade: Pelé sem a bola, para o primeiro relato; Pelé com a bola, para o segundo. Ficou preciso, objetivo e atraente.

Tempos depois, já como editor, fui desafiado por uma colega a tornar mais atrativa a capa de um caderno especial que retratava o resultado de um concurso de beleza na praia. A vencedora era bela (recatada e do mar, se quisermos fazer trocadilho com outro título famoso). Sua foto, desfilando sorridente com a coroa na cabeça, ocupava quase toda a página. Não havia muito mais a dizer. Resolvi o problema colocando no lugar do título uma poesia de Cecília Meireles, de cujo início ainda lembro: “A menina translúcida passa/ vê-se a luz do sol dentro de seus dedos/ brilha em sua narina o coral do dia...” Modéstia à parte, ficou bonito, delicado e, acredito, adequado.

Em jornalismo, o título tanto pode reter quanto afastar o leitor. Ele tem a função básica de despertar o interesse pela leitura, mas nem sempre precisa ser uma síntese do que vem a seguir. Claro, não deve também enganar o leitor, mas pode, por si só, provocar a surpresa, o sorriso, a curiosidade, a conquista da atenção. Quando o humorista Chico Anysio morreu, o jornal O Dia, do Rio de Janeiro, publicou uma capa em que ele aparecia cercado por seus múltiplos personagens e mancheteou: Morreram Chico Anysio. Síntese perfeita.

Antigamente os títulos de jornais eram restritos a um número limitado de toques. O editor sofria para dizer alguma coisa em três linhas de 10 batidas (assim se chamava) ou às vezes menos. É célebre um título do Jornal do Brasil em que o capista tinha que resumir, em três linhas de três toques, a recusa do então presidente da República, Juscelino Kubitschek, em recorrer ao Fundo Monetário Internacional. O homem lascou: JK:/FMI/NÃO/.

E resolveu o problema.

Nem sempre dá para fazer poesia.

29 de abril de 2016 | N° 18512 
DAVID COIMBRA

A moça da Palestina


Conheço uma moça que é da Palestina. Ela é bem jovem, tem uns 20 anos. Há cerca de ano e meio, quando ainda morava perto da cidade três vezes santa de Jerusalém, o pai a chamou e comunicou que um rapaz lhe havia pedido a mão em casamento. Ela nunca o vira antes, mas, como o pai afiançou tratar-se de boa pessoa, o noivado foi acertado no mesmo dia. Casaram-se meses depois e, hoje, ela garante amar o marido com devoção.

Essas coisas do coração são realmente incontroláveis.

Os ocidentais sentem repulsa pelo velho sistema de casamentos arranjados por terceiros, mas esse critério não é inferior ao da paixão, tão incensada na literatura, na música e no cinema, cá nessa parte do mundo. É até o contrário: a escolha racional e impessoal de um cônjuge não sofre a interferência nociva de sentimentos inquietantes e pouco inteligentes, como o desejo sexual.

Tomar decisões com base no desejo quase sempre descamba em erro rotundo. É o que os consultores econômicos dizem sobre supermercados. Eles alertam: jamais, jamais!, vá ao supermercado com fome. Você acabará comprando o que não precisa.

O desejo é péssimo conselheiro.

Por isso, se você pretende se casar, não faça nenhum movimento antes de apagar-se o fogo da paixão, que arde sem se ver, mas arde. Lembre-se de que nenhuma paixão dura mais do que um ano e meio. Se durar mais, é obsessão, é doença, pode procurar um analista.

Minha amiga palestina é muçulmana, como a maioria dos palestinos. Só que não é radical. Não usa burca, nem nada. Ainda assim, seus cabelos estão sempre pudicamente envoltos por um lenço. Jamais vi um único fio de seu cabelo, embora, sou forçado a confessar, tente. Fico olhando para aquele lenço, mas ele está amarrado à perfeição na cabeça. Não faço ideia se ela é morena, loira ou ruiva.

Para os muçulmanos, os cabelos da mulher são de uma sensualidade perturbadora. E, pensando bem, eles têm razão. Uma cabeleira farta faz diferença. Imagine a Gisele Bündchen de cabelo Joãozinho. Como Sansão tosado por Dalila, ela perderia todo o seu poder. Por isso, sou contra o coque. O Temer deveria proibir o coque.

Quanto à minha amiga, pedi desculpas por minha ousadia e continuei a entrevistá-la. Cogitei se ela poderia usar o cabelo solto, se quisesse. A moça respondeu que sim, mas disse que não queria. Obviamente, quis saber por quê. E ela observou, com calma e candura:

– Porque esse é um presente que só dou ao meu marido.

Achei bonito. Sorri.

Então, pedi licença para fazer uma última pergunta. Ela acedeu: claro, sem problemas. Lembrei-lhe que os homens muçulmanos podem ter quatro esposas, se as puderem sustentar, e questionei:

– E se o seu marido quiser ter outra mulher? Ele pode?

Ela apertou os olhos. Virou a cabeça coberta para um lado. E falou bem baixinho:

– Ele pode. Mas eu me separaria dele.

Pisquei, entre surpreso e admirado. Essas coisas do coração são mesmo incontroláveis.


29 de abril de 2016 | N° 18512 
MÁRIO CORSO

Minoria incompreendida


Sempre gostei de nossos índios, sofro pelo descaso brutal que temos para com eles, mas nunca senti uma identidade próxima, até descobrir como eles se referem a nós em língua bororo. Nos chamam de kidoe-kidoe, papagaio-papagaio seria a tradução literal, mas a duplicação é para dar ênfase ao sentido: aqueles que, como esses pássaros, falam muito.

Definição perfeita, somos uma civilização tagarela, temos aversão ao silêncio, nossa falação é quase um esporte. Ao contrário, nossos índios, de todas as três Américas, revelam uma postura mais econômica com as palavras. São breves, falam apenas quando devem. Enquanto nós gastamos e inflacionamos o verbo, eles mantêm uma postura reverencial à fala.

Duas civilizações e duas maneiras de se relacionar com a palavra. Cada uma com suas vantagens e desvantagens. Difícil dizer qual a melhor, afinal são estratégias de encarar a vida e o mundo. A questão é que existem muitos índios entre nós, como deve haver papagaios entre eles. Esses índios deslocados são uma minoria incompreendida: os silenciosos.

Eu sou um deles. Falo pouco, não raro levando meu interlocutor à exasperação. O Carpinejar é quem mais enlouqueço com meu silêncio. Minha família já está acostumada, aprendeu a conviver com meu laconismo. Por outro lado, não me importo quando falam, sou um bom ouvinte, posso escutar durante horas qualquer tagarelice. E não é de hoje, minha mãe conta que só com dois anos eu pronunciei minha primeira palavra.

A questão é que nós, os silenciosos, não temos um impulso à fala. O silêncio não nos angustia. Não nos faltam palavras, nem ao menos as procuramos, apreciamos a poesia do silêncio. Somos índios extraviados e, como eles, respeitamos as palavras e não as gastamos em vão. Não se trata de negar algo a alguém, negar uma fala. Trata-se de apreciar a pausa entre elas. Quando usada com parcimônia, a palavra ganha outra densidade.

Poderíamos colocar isso de outra forma: a vida necessita ser narrada ao vivo? Para algumas pessoas, sim. Muitas parecem que só existem se estão falando. Falar as ancora na vida, precisam colonizar o espaço sonoro com seus detalhes mínimos sobre tudo. Parece uma saudável gula de viver duas vezes, quando fazem e quando contam. E, afinal, é assim que entendemos nossos caminhos.

Uma observação de uma pessoa que viveu no Japão: eles ligam o prazer à quietude, enquanto nós, ao barulho. Uma festa aqui necessita ser ruidosa para ser considerada boa, enquanto para eles o luxo é o silêncio. Talvez nós, os silenciosos, além de índios cercados de caras-pálidas, sejamos japoneses nascidos no lugar errado.

Mais uma questão: quando dois índios se encontram, como fica? Sem dramas, sou amigo do Mauro Fuke, e, como ele é ainda mais silencioso, eu fico ligeiramente tagarela.

quinta-feira, 28 de abril de 2016



28 de abril de 2016 | N° 18511
EDITORIAIS

A PRESSÃO DAS DÍVIDAS

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de conceder um prazo de dois meses para que União e Estados se entendam em relação à questão do endividamento amplia o desafios dos dirigentes públicos neste momento tão grave para o país sob o ponto de vista político e econômico. A própria judicialização de um tema que expõe a falência dos Estados e do próprio pacto federativo demonstra a dificuldade dos chefes do Executivo de chegarem a um acordo que já deveria ter ocorrido há mais tempo. 

Mas os governantes não podem simplesmente transferir essa responsabilidade de buscar uma solução negociada. Um acerto amplo é impositivo e não pode ser adiado por muito mais tempo do que o definido agora, com o cuidado, obviamente, de aliviar as contas das unidades federativas sem agravar as da União.

Desde a constatação de que, pelos termos acordados ainda em 1998, quanto mais Estados como o Rio Grande do Sul pagavam, mais a dívida crescia, a situação econômica do país nunca foi considerada propícia para uma revisão, pelo impacto fiscal que qualquer alteração tende a provocar. Um momento de transição como o atual, em que mudança de comando no governo central se mostra cada vez mais iminente, tende a parecer ainda menos oportuno.

De um lado, porém, estão Estados importantes que, sufocados pelo endividamento, se mostram sem as mínimas condições de atender financeiramente a áreas essenciais para a população. De outro, o próprio governo federal, que prevê perdas superiores a R$ 400 bilhões com a simples substituição de juros compostos por simples, como reivindicam Estados endividados. 

Não há como enfrentar um impasse dessas proporções na base de decisões liminares e sem custos, assim como não faz sentido postergar uma solução definitiva, sem a qual Estados como o Rio Grande do Sul ficam praticamente ingovernáveis.


28 de abril de 2016 | N° 18511 
CARLOS GERBASE

INSTRUÇÃO


O ano era 1978. O Brasil era presidido pelo general Geisel. A abertura era lenta, segura e gradual, mas ninguém estava seguro quanto ao futuro da democracia. Contra minha vontade, eu era um soldado raso na Companhia de Comando da III Região Militar e, ao lado dos demais recrutas, recebia a Instrução – um conjunto de ensinamentos que nos habilitariam a servir à pátria de forma adequada.

Naquela tarde, o sargento Guasseli discorria sobre o Movimento Comunista Internacional e explicava que o mundo estava ameaçado por uma ideologia exótica, que não media esforços para subjugar todas as nações, exterminando a liberdade e instalando em seu lugar a ditadura do proletariado. Neste instante, não sei por que – um coágulo cerebral?, uma manifestação do caos?, um irresistível instinto suicida? – levantei o braço e pedi licença para falar. O sargento permitiu, e eu disse: “Na Itália, o Partido Comunista existe há muitos anos e participa das eleições. Ou seja: lá os comunistas têm vida política legal num contexto democrático”.

Senti 60 pares de olhos pousados sobre mim. Eles não precisavam falar nada para que eu entendesse: tinha cavado minha sepultura. O sargento disse: “Soldado, vou te responder, mas só no fim da aula”. Pronto, eu estava ferrado. Imaginei meu destino: um interrogatório minucioso, alguns dias na prisão, quem sabe um acidente durante um exercício de tiro... Ao final da Instrução, o Guasseli levou-me para um canto, olhou bem dentro dos meus olhos e disse: 

“Isso que tu falou é verdade. Não estou acostumado com soldados que estão na universidade. Vou te pedir: não fala mais essas coisas. Dispensado!”. Bati continência e voei para o alojamento, onde fui recebido como um Lázaro, um ressuscitado. Cumpri o restante do meu serviço militar sem enfrentar qualquer consequência da minha manifestação.

Passados 38 anos do incidente, é incrível constatar que, hoje, muitos civis não conseguem conviver com quem pensa diferente deles. Ao contrário dos pequenos Hitlers que se multiplicam por aí, o sargento Guasseli, um homem simples, um militar em pleno sistema ditatorial, tinha noção exata do que significa a palavra tolerância.

Em tempo: nunca fui e nunca serei comunista. Meu coração é anarquista. Mas isso eu não contei para o sargento.


28 de abril de 2016 | N° 18511 
DAVID COIMBRA

Errei, sim


O neto de Ruy Barbosa chamava-se... bem, Ruy Barbosa Neto. Era advogado de bom prestígio, sobretudo por causa do avô.

Fico pensando se esse Ruy Barbosa Neto não seria o avô da Marina Ruy Barbosa, a bela atriz de cabelos vermelhos e carinha de nenê, que é tetraneta do velho Ruy Barbosa, a Águia de Haia. Como o primeiro nome de Ruy se transformou em sobrenome de Marina, isso não sei de que jeito funciona, mas li em algum lugar que é assim.

Essas questões de parentesco me confundem.

De toda maneira, falava de Ruy Barbosa Neto, embora talvez fosse mais agradável falar de Marina Ruy Barbosa.

O fato é que, em meados do século passado, Ruy Barbosa Neto comprou um apartamento em Copacabana. Estava feliz com a aquisição, até descobrir que ali perto havia uma boate que tinha como grande atração a apresentação de cantores famosos da época. O som rolava até de manhã e o “impedia de pensar”, segundo alegou à Justiça, para a qual pediu o fechamento do lugar.

O pior de tudo, explicou Ruy Barbosa Neto, era que várias vezes, durante a noite, os cantores repetiam a música Errei, Sim, que Ataulfo Alves fizera para Dalva de Oliveira afrontar o ex-marido, o também compositor Herivelto Martins. Em Errei, Sim, Dalva confessava para Herivelto:

“Errei, sim

Manchei o teu nome

Mas foste tu mesmo o culpado

Deixavas-me em casa, me trocando pela orgia

Faltando sempre com a tua companhia”.

É assim. Os homens são sempre os culpados, até quando elas admitem que erraram.

Ruy Barbosa Neto ouvia Errei, Sim tantas vezes, todas as noites, que, volta e meia, pegava-se assobiando a melodia. Estava enlouquecendo. A Justiça, sensível ao drama do advogado, fechou a boate, mas logo voltou atrás, e Ruy Barbosa Neto seguiu com Errei, Sim lhe reboando no cérebro por ainda muito tempo.

Gosto dessa história. Foi contada por outro Ruy, o Castro, em seu último livro, A Noite do Meu Bem, em que ele traça a, digamos assim, biografia do samba-canção.

Entendo o desespero de Ruy Barbosa Neto. Quando meu filho era pequeno, letra e música de A Galinha Magricela ficaram impressas em meu cérebro durante meses a fio, sem que conseguisse encontrar um minuto de paz. Tentava ouvir outras melodias, algo mais nobre, sei lá, não precisava nem ser um Beethoven, um Mozart, servia algum clássico dos Beatles, mas não adiantava, ele logo ouvia de novo A Galinha Magricela e os meus neurônios começavam a entoar em coro: “Bota ovos pela sala, no banheiro e na cozinha, ela bota, bota, bota sem parar...”.

A Galinha Magricela tornou-se a trilha sonora dos meus dias. Eu podia estar no momento mais solene, entrevistando o governador ou quem sabe o arcebispo, não importava, o que me vinha à mente era a imagem da Galinha Magricela virando cambota e botando quatro ovos de uma vez. Se estivesse no funeral da mãe de algum amigo, no momento em que fosse cumprimentá-lo, corria o risco de balbuciar algo como:

– Meus pêsames. Ela era magrela de botar.

Felizmente, aquele tempo passou. Mas se hoje você me ouvir dizer, com voz rouca, “I’m BATMAN!”, não ligue. Passa.

28 de abril de 2016 | N° 18511 
L. F. VERISSIMO

A segunda vítima


Era improvável que a Dilma usasse alguns dos poucos minutos da sua participação na conferência sobre o clima nas Nações Unidas para falar no golpe que ameaça seu governo, mas o pânico se instalou mesmo assim. Ela iria denegrir a pátria diante do mundo! Houve uma mobilização geral para contestar o ainda não dito. Os ministros do Supremo Celso de Mello e Gilmar Mendes se apressaram a declarar que, ao contrário do que a Dilma poderia dizer na ONU, o impeachment em curso estava longe de ser um golpe. 

Estranho açodamento de quem, cedo ou tarde, terá que julgar questionamentos jurídicos do que está ou não está acontecendo no Brasil. Mas não importava a inconfidência espontânea dos magistrados, importava a negação do que a Dilma diria. Antes que ela dissesse.

O Senado mandou o senador Aloysio Nunes atrás da Dilma, com a missão de rebater o que ela falasse, fosse o que fosse. E a Câmara, que não tinha dinheiro para pagar a passagem de uma testemunha de acusação do Eduardo Cunha na sua Comissão de Ética, subitamente encontrou uns trocados no bolso de outra calça e mandou dois deputados a Nova York, também para desmentir a Dilma. Não se sabe exatamente o que os dois fariam se Dilma pronunciasse a palavra “golpe”. Pulariam das suas cadeiras e gritariam “Mentira!”? 

Começariam a cantar o Hino Nacional para abafar a voz da traidora? Nunca saberemos. Dilma não disse o que todos temiam que ela dissesse. Depois, em particular e para jornalistas, falou em golpe à vontade. Mas na ONU, diante do mundo, frustrou a expectativa de todos. O pânico foi em vão. Os dois deputados brasileiros teriam sido barrados na entrada do plenário da ONU, mas isto eu não sei se é verdade. Teria sido um final adequado para a farsa.

Dizem que a primeira vítima de uma guerra é sempre a verdade. Se for assim, a segunda vítima é certamente o senso do ridículo.

quarta-feira, 27 de abril de 2016


27 de abril de 2016 | N° 18510 
MARTHA MEDEIROS

Dress code


Ela estava em frente à tevê, na sala, assistindo a mais uma excitante edição do Jornal Nacional, que naquele momento mostrava a entrevista feita com o porteiro de um prédio de luxo cujos apartamentos haviam sofrido um arrastão. Nisso, surge o filho vindo do quarto, enfiando a carteira no bolso da calça e se aproximando para dar um beijo de tchau.

– Tchau, mãe.

– Onde é que você vai?

– Vou pegar a Ana e vamos a um bar encontrar uns amigos.

– Você não está pensando em ir pra rua nesse estado.

– Não entendi.

– Com essa roupa, não vou deixar você sair de casa.

– O que tem minha roupa?

– Vão confundir você com um bandido, meu filho. Vai lá dentro se trocar, a Ana espera.

– Bebeu, mãe? Vou trocar nada. O que tem de errado com a roupa? Comprei esta camisa ontem, custou uma nota.

– Pois é.

– E a calça? É a melhor que eu tenho.

– Tô dizendo. Parece um fora da lei.

– Engraçadinha, virou piadista agora. Tchau, não volto tarde.

– João Guilherme, eu não estou brincando. Não criei filho para ser parado em blitz no meio da rua, colocando mão pra cima de capô de viatura. Vai lá dentro e te desarruma um pouco.

– Mãe...

– Tá me olhando com essa cara por quê? Você não viu essa reportagem que acabou de passar? Eram quatro os assaltantes, um mais engomadinho que o outro. E a Aline, a vizinha aqui do 302, você não soube? Trouxe um meliante pra casa achando que tinha encontrado o príncipe encantado. Maior pinta de deputado. Na manhã seguinte, quando acordou, descobriu que o príncipe havia feito a limpa no apartamento. O retrato falado dele poderia estampar a capa do catálogo do Giorgio Armani. E você querendo sair na rua nessa beca.

– Você tem que parar de ver televisão.

– E você tem que parar de ser tão alienado, João Guilherme. Parece que não sabe em que mundo vive.

– Tchau, mãe, quanto mais cedo eu sair, mais cedo eu volto. Tenho reunião amanhã de manhã no banco.

– Não inventa de ir de gravata. Juízo.


27 de abril de 2016 | N° 18510
REPORTAGEM ESPECIAL

ALÍVIO PARA O PIRATINI, APERTO NO PLANALTO



SUPREMO DEVE DEFINIR qual é o cálculo a ser utilizado na renegociação de dívidas dos Estados com o governo federal. A decisão pode zerar o débito do Rio Grande do Sul com a União

Questão essencial para a saúde financeira do setor público brasileiro, a renegociação da dívida dos Estados com a União entrará na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) na sessão de hoje, a partir das 14h. De um lado, unidades à beira da falência, com atrasos nos pagamentos de salários, casos do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro. De outro, o endividado governo federal, que enfrenta recessão e uma das maiores crises econômicas da história do país.

A decisão sobre o futuro dos contratos ficará sob responsabilidade dos 11 ministros da Corte depois de anos de negociações frustradas entre governadores e o Palácio do Planalto – um pedido de vista pode levar ao adiamento. As duas possibilidades postas à mesa são antagônicas. Uma autorizaria a adoção de juro simples para recalcular descontos retroativos. Com isso, RS e SC, por exemplo, já teriam quitado integralmente a dívida. O governo da presidente Dilma Rousseff diz que a tese dos Estados traria rombo de R$ 313 bilhões, em valores de 2013, e pleiteia a manutenção do juro composto – ontem à noite, o Ministério da Fazenda atualizou as perdas para R$ 402 bilhões.

De largo alcance, a decisão preocupa até mesmo o vice-presidente Michel Temer, que poderá herdar o comando do país nos próximos dias se avançar no Senado o processo de impeachment de Dilma. Interlocutores de Temer procuraram ministros recentemente para tentar desarmar a chamada “bomba fiscal”.

PREOCUPAÇÃO COM ASPECTOS POLÍTICOS QUE TEMA ADQUIRIU

Dez Estados chegam à sessão com liminares vigentes que os autorizam a pagar as parcelas com base no juro simples, conforme previsão das leis 148/2014 e 151/2015. Essas decisões proibiram a União de aplicar sanções como o bloqueio de contas, o que vinha acontecendo com o Rio Grande do Sul. Após as derrotas nas liminares, o Planalto elevou o tom do discurso. Passou a apontar que o juro simples causará severo impacto em período de crise. Outro argumento é de que esse método poderá gerar insegurança jurídica, já que a maioria dos contratos feitos pelo mercado adotam o modelo composto, que implica juro sobre juro.

– A maneira correta de fazer isso (renegociação) é adotar interpretação dos contratos que não crie incerteza jurídica para contratos privados, que não crie desequilíbrio federativo em que os Estados mais endividados, cuja folha de pagamento cresceu mais, sejam mais beneficiados do que Estados que fizeram seus ajustes – declarou o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, em recente reunião com o relator do caso no STF, Edson Fachin, e governadores.

A análise de Barbosa tem a simpatia de Fernando Ferrari Filho, professor de Economia da UFRGS. Para ele, a renegociação deve se limitar a deságios em troca de medidas de controle de gastos e à redução do percentual de comprometimento da receita com o pagamento da dívida, atualmente fixado em 13%:

– Se analisarmos estritamente questões técnicas e econômicas, não há possibilidade de o STF atender ao pleito dos Estados. Via de regra, qualquer negociação usa o juro composto. Mudar isso criaria um círculo vicioso em que nenhum contrato mais seria respeitado.

O governador José Ivo Sartori passou o dia de ontem em reuniões com ministros da Corte para apresentar argumentos. A justificativa é de que o Estado já pagou mais do que devia originalmente, mas o débito continua a crescer em decorrência dos juros. Sartori diz ainda que o Piratini apenas quer que seja aplicada a determinação das leis 148/2014 e 151/2015, que obrigam a adoção do juro simples. O governo federal, percebendo a iminência do rombo, editou decreto posterior para regulamentar as normas. No texto, retomou a lógica do juro composto. Uma das preocupações do governo gaúcho é o contorno político do tema.

– Acreditamos bastante na robustez da nossa tese, mas existem questões que podem interferir. A União fala em rombo de R$ 313 bilhões como se fosse algo imediato, mas, na verdade, isso seria diluído em um período de 12 a 22 anos, algo em torno de R$ 20 bilhões ao ano. Isso representa 0,7% do orçamento da União. Esses argumentos vieram com o viés de criar um clima de terrorismo – reclama Euzébio Ruschel, procurador-geral do Estado, que fará sustentação oral no STF ao lado de Santa Catarina e Minas Gerais.

O consultor econômico Raul Velloso indica que, com a adoção de juro simples, a União herdaria um pedaço da dívida que é dos Estados. Para fazer frente, teria de ampliar o superávit primário. Velloso discorda da tese de que o modelo pleiteado pelos governadores causaria insegurança jurídica:

– Isso é uma questão entre governos. Não tem nada a ver com o mercado. Isso não é argumento.

Não está descartada a possibilidade de que os ministros do STF tentem chegar a uma alternativa mais equilibrada e menos dolorosa para ambas as partes.

carlos.rollsing@zerohora.com.br

Solução para o caixa, diz Feltes


Secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, Giovani Feltes avalia que a eventual confirmação do juro simples no cálculo dos descontos retroativos no estoque da dívida com a União equacionaria significativa parcela dos problemas financeiros do Estado. Ele viaja hoje a Brasília para acompanhar a sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que irá deliberar sobre o caso. 

– Resolveria a metade dos nossos problemas de rombo mensal. Aliada a ações que estamos tomando e junto da saída da recessão e retomada do crescimento da economia, seria uma medida que nos aproximaria mais rapidamente do equilíbrio – afirma. 

Feltes destaca que o Rio Grande do Sul tem registrado mensalmente déficit de cerca de R$ 550 milhões, o que leva ao parcelamento de salários. Com o juro simples, o Estado teria quitada a dívida com a União. Isso o livraria de pagar as prestações mensais de, aproximadamente, R$ 270 milhões. 

– Estou otimista porque a nossa tese é vigorosa. O que queremos é somente o cumprimento do que está determinado nas leis 148/2014 e 151/2015 – diz.

CARLOS ROLLSING

27 de abril de 2016 | N° 18510 
PEDRO GONZAGA

O DENTE AMARELO


Nas ruas desertas do bairro da infância não havia ainda o risco das armas de fogo das movimentadas ruas do bairro da maturidade. Seria exagero falar em violência lírica, embora a arte há muito tenha confirmado tal possibilidade, mas era ao menos uma violência com a qual podíamos lidar. Um dente quebrado, um olho roxo, joelhos e cotovelos ralados por rolar no areião em luta corporal. Um mundo de regras rígidas: se alguém estivesse sozinho, os combates eram mano a mano, cusparadas e mordidas expunham ao opróbrio o seu perpetrador.

À época, assombrava a região uma gangue autodenominada “a maloqueirada”, senhora da praça João Bergmann e arredores, cuja missão era surrar garotos burgueses e, ao cabo, arrancar-lhes o dinheiro da merenda (temor extremo para um gordo).

Gordo e burguês, eu lhes era um alvo fácil, pois não tinha as pernas leves de meus amigos à hora da fuga. Entre meus 10 e 13 anos, restava-me apanhar e ouvir calado a uns xingamentos que hoje inflamariam as redes sociais. Um dos chefes, não sei por que, assim que me via, avançava para me dar um soco no braço ou no peito. Era mais alto do que os outros, os olhos bem separados e um dente todo amarelo que se revelava antes de cada ataque.

Aos 14, troquei de escola e fui estudar no centro. Lá espichei e engordei um pouco mais (incapaz de resistir às promoções de chocolate das Lojas Americanas). Como passei a andar de ônibus, deixei de cruzar com a maloqueirada e meu algoz.

Somente aos 16 o reencontrei. Eu ia a pé, sozinho, ele também. Logo o reconheci, agora um palmo mais baixo do que eu. Segui em sua direção. Ao me encarar, mostrou-me timidamente o asqueroso dente amarelo. Fechei a mão. Preparei o soco da glória, um soco pesado de Foreman, mas ele desviou os olhos e, desvirtuado, encolheu-se ao passar por mim.

Às vezes volto a esse soco que não dei. Quando vaidoso, penso em como venci o primitivo desejo de vingança; quando nobre, em como pratiquei o lema de que a violência não leva a nada; quando honesto, contudo, em como perdi a chance de acertar uma porrada na cara da vida, quando ela não era mais do que uma singela aventura de bairro.



27 de abril de 2016 | N° 18510 

DAVID COIMBRA

O tempero do bife

Esses dias fui a Vermont. Lugar lindíssimo, no alto das montanhas. Chega-se lá através de estradas lisas e desimpedidas, você roda durante quatro horas e parece que foi ali na esquina. E o pedágio é até engraçado: 1 dólar na ida, 1 dólar na volta.

Foi em Vermont que se estabeleceu a Família Trapp. Você provavelmente conhece a Família Trapp de tanto assistir ao filme A Noviça Rebelde, na Sessão da Tarde.

O patriarca da verdadeira Família Trapp, o barão Von Trapp, era austríaco. Consagrou-se como herói da I Guerra Mundial, conhecido como um invencível comandante de submarinos. Às vezes, antes de afundar um navio, Von Trapp subia ao tombadilho e, com um megafone, avisava à tripulação inimiga para correr aos botes salva-vidas. Por fim, dava instruções sobre como remar até a praia e, em seguida, disparava o torpedo.

Quando Hitler anexou a Áustria, porém, Von Trapp decidiu que preferia o exílio a lutar em nome daquele homem. Pegou os sete filhos e a babá que cuidava deles (sua mulher já havia morrido de escarlatina), cruzou a fronteira a pé e homiziou-se nos Estados Unidos. Escolheu Vermont porque a paisagem é parecida com a da Áustria. Construiu, com suas próprias mãos, uma grande casa da qual se vê todo o vale no entorno, teve mais três filhos com a babá, que é a tal noviça rebelde, e ficou famoso como o chefe da família cantora retratada no filme, que, você sabe, é estrelado por Julie Andrews no auge do frescor juvenil.

Hoje, a mansão dos Trapp foi transformada em um belo hotel, frequentado sobretudo por quem gosta de esquiar. Há várias pistas de esqui na região. Os Trapp ainda estão lá, ou o que resta deles, enterrado num pequeno cemitério familiar que foi plantado ao lado da casa.

Vermont seria, talvez, um Vale dos Vinhedos multiplicado por dez. Com uma diferença básica: no Vale dos Vinhedos a comida é muito melhor.

Esse é um grave defeito dos Estados Unidos. Os americanos não sabem cozinhar. Ah, você já veio aos Estados Unidos e comeu muito bem. Óbvio: este é um país continental, formado por gente do mundo inteiro, inclusive os melhores cozinheiros italianos, franceses, espanhóis, portugueses, alemães e brasileiros. Mas eles, os americanos, eles não conseguem. Ou eles exageram no molho, ou a comida sai insossa.

Falta-lhes mão, entende?

Mão é tudo.

Pegue, por exemplo, os 20 elementos químicos essenciais para a vida: carbono, oxigênio, hidrogênio etc. Se você os juntar em quantidades exatas, não conseguirá criar um ser vivo. O que lhe faltou?

Mão. No caso, a mão de Deus.

Assim é a comida. Você pode seguir a receita direitinho, e não vai sair tão bom. Por quê? Porque você não tem mão.

No Brasil, você chega a um boteco com balcão de fórmica e cadeira de plástico. Pede lá um completo. E o que vem é uma refeição perfeita como a Dieckmann, o feijão cremoso, o arroz soltinho, a batata frita enxuta, o contrafilé macio e, dominando tudo, a gema amarela do ovo reluzindo como um farol.

Quanto custa essa maravilha?

Dez reais. Hoje talvez 15.

Os americanos têm gênio para tantas coisas, eles mandam o homem à Lua, eles inventam a internet, o celular, o rock’n’roll e o blues, eles têm estradas escorreitas e recantos de paraíso, como Vermont, mas falta-lhes a centelha criativa para temperar um bom bife. É impossível ter tudo na vida.

terça-feira, 26 de abril de 2016


26 de abril de 2016 | N° 18509 
CARPINEJAR

Os dois lados da intimidade


A intimidade facilita a comunicação quando estamos bem, mas dificulta quando estamos mal.

Há uma predisposição para revelar o que incomoda para quem não se conhece e a de não evidenciar as falhas para quem se ama.

Não foram poucas as vezes em que um completo estranho me contou o que fez de errado no relacionamento numa mesa de bar, segredos que jamais dividiu com o seu marido ou a sua esposa, a parte envolvida e interessada na questão. Para mim, que era de fora, não teve nenhum receio de expor humildemente os seus erros. Do nada, chorou garrafas de cerveja e abriu as portas de suas angústias. Já para quem valorizava, não se sentia pronto para falar: travava, balbuciava, gaguejava e, pressionado pela ânsia de ser julgado, trocava de assunto. 

Não conseguia formular o pensamento e pedir desculpas. Poderia ser uma bobagem, que se agravava com o tempo. Poderia ser uma pequena mentira, uma omissão, uma distorção, que aumentava de importância pelo constante adiamento.

Somos capazes de confidências com quem não mais veremos no dia seguinte, e incapazes de passar a limpo os problemas com quem acordamos ao lado.

Taxistas e garçons acabam sendo padres involuntários, confessionários sem penitência, condicionados a ouvir desabafos surpreendentes e a opinar sobre o destino amoroso de passageiros e fregueses em minutos. Escutam relatos de infidelidade e deslealdade que nunca foram ditos antes.

A fluência com estranhos acontece pela ausência de cobrança e de expectativa. A resistência com os íntimos vem do temor das consequências e da obrigação de mudar e pagar as dívidas sentimentais.

Com medo de perder quem se gosta, cultiva-se a arrogância da covardia. Protege-se o outro da verdade que mostrará a nossa fragilidade e imperfeição, que destruirá a idealização e colocará a nossa conduta em xeque. A ameaça da separação sempre é maior do que a sinceridade.

É preciso entender que a intimidade é amar com todos os sentimentos, bons e ruins, não apenas com as melhores intenções. Ao esconder partes significativas e desagradáveis da personalidade, estaremos traindo o futuro a dois. Não adianta ser cúmplice somente naquilo que nos favorece, e boicotar o que nos prejudica.

A vergonha de sofrer na hora trará mais sofrimento depois. Ser inteiro significa também decepcionar.