29/05/2024 - 12h02min
J J. CAMARGO
Tragédias desnudam os cruéis e os
generosos
Eventos extremos colocam na
vitrine nossos defeitos e nossas virtudes. Por alguma razão, ficamos mais
chocados com os nossos defeitos do que encantados com as nossas virtudes
"Seja você mesmo. Todos os
outros já existem." (Oscar Wilde)
Há uma mistura de inocência e
boa-fé para justificar a tendência de se atribuir às grandes tragédias a
capacidade de modificar a índole dos envolvidos.
Na verdade, as catástrofes não
conseguem mais do que colocar na vitrine nossos defeitos e nossas virtudes. E,
por alguma razão, ficamos mais chocados com os nossos defeitos do que
encantados com as nossas virtudes.
Os cruéis e os generosos não se
fizeram assim por influências externas circunstanciais. Eles já estavam prontos
desde sempre, à espera de um acontecimento extremo que os desnudassem. E então,
com igual naturalidade, os apresentasse ao mundo para espanto dos ingênuos e
compensação silenciosa dos que já não se surpreendem mais porque viveram o
suficiente para antecipar reações em
condições adversas.
O grande mérito da internet é
garantir pernas curtas à mentira.
Quanto mais inesperado for um
evento, mais eficiente será como gatilho revelador do caráter de cada um,
porque retira a possibilidade de que o mau pareça bom, o que exigiria um tempo
para ensaiar uma postura que seja minimamente convincente de uma virtude que
não existe.
Mas mesmo com atitudes planejadas
os falsos virtuosos correm o permanente risco de desmascaramento, porque sempre
haverá alguém para desarquivar uma fala ou um vídeo, sempre haverá delatores.
Muito se tem criticado as redes
sociais, que, fomentadas pelos mais variados modelos de sociopatia, se
transformaram numa espécie de divã coletivo de uma sociedade que se esmera em
renunciar aos valores básicos do convívio civilizado. Mas isso não obscurece o
grande mérito da internet: garantir pernas curtas à mentira.
O arquivo virtual de tudo que
dissemos, pensamos ou fingimos devia, pelo menos teoricamente, tornar o nosso mundinho num
lugar mais confiável, mas essa expectativa otimista subestima a cara dura dos
cínicos, que sempre podem argumentar que aquilo dito foi retirado de um outro
contexto. Esses argumentos mais chateiam do que convencem, por subestimarem a
inteligência mediana das pessoas.
No meio de uma catástrofe como a
que estamos vivendo, creio que nada é mais eficiente na identificação do
caráter do que a emoção, um sentimento tão exigente de autenticidade, que até
na arte da interpretação rapidamente se define os que nunca serão mais do que
comediantes medíocres.
Parece também ingênua a pretensão
de amestrá-los, com a tola intenção de ostentar solidariedade com o pesadelo
coletivo, se no meio do discurso vazio os tipos não conseguem resistir à
tentação de fazer uma graça, ignorando que não há nada mais inesquecível do que
a desconsideração no sofrimento.
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