06/06/2024 - 12h49min
J. J. CAMARGO
As perdas na infância doem mais
Pais precisam ter tempo e
sensibilidade para ouvir os filhos. Senão a narrativa própria pode ser pior do
que a realidade
"Quando era criança, meu avô
segurava a minha mão. Depois que envelheci, nunca mais soltei a mão dele."
(Affonso Tarantino)
Verdade que, se conservássemos
intactas a inocência e a ingenuidade das crianças, naufragaríamos no mundo
hostil e competitivo que a idade madura nos reserva. Mas seria ótimo que, num
mundo ideal, pudéssemos evitar essa "evolução" que, com o rótulo de
maturidade, nos embrutece.
Por fantasia, as crianças têm
pressa em se tornarem adultos, porque ignoram as maravilhas que deixarão pelo
caminho. E os pais, que festejavam vê-los adolescentes responsáveis, logo
descobrirão que a partir da conquista da autonomia pela prole toda a
contribuição deles estará limitada à torcida silenciosa para que as crias deem
certo e, por favor, não repitam todos os erros que cometemos.
Os relatos que se seguem poderão
ser entendidos como uma exaltação à espécie humana, na sua condição mais pura,
a infância.
Circulando por um abrigo da
prefeitura, onde se acomodavam quase 200 flagelados da enchente, surpreendi um
menino com um peixinho morto num copo d'água, que ele segurava com as duas
mãozinhas de unhas sujas. O peixe, trazido pela enxurrada, tinha sido lavado da
lama, e colocado num copo de água limpa. De quando em quando, ele cutucava o
dorso do peixinho, na expectativa de que ele reagisse, e a falta de resposta
explicava a tristeza do olhar quando ele perguntou: "A gente não pode
soltar a mão da mãe, não é, tio?". Fiquei imaginando quantas vezes aquele
pingo de gente ouviu essa recomendação desesperada enquanto eram resgatados da
correnteza, na noite escura.
Um casal porto-alegrense, com a
filha de quatro anos, abandonou o caos em que se transformou a cidade. Foram se
refugiar no sossego da casa da praia. No segundo dia, impressionado com o
silêncio que contrastava com o burburinho da cidade agitada pelo ruído
frenético dos helicópteros e da sirene das ambulâncias, a garotinha comentou:
"Acho que agora as pessoas pararam de morrer".
Mário Corso, que contou essa
história com sua sensibilidade habitual, reforçou a importância de que os pais
tenham tempo e sensibilidade para ouvir os filhos, porque senão eles
construirão uma narrativa própria, com frequência pior do que a realidade.
Nesta história, foi redentora a informação dos pais ao explicarem à filhota que
o ruído na cidade, na verdade, significava que pessoas estavam sendo salvas.
Com essa mensagem, o luto inevitável depois de qualquer perda se encerrará com
a euforia do fim da catástrofe. E sem recaídas.
O menino, na solidão multiplicada
pela orfandade, fantasiava que a morte era o único jeito de reencontrar o pai.
Em contraste, a persistência das
fantasias ficou reverberando no Duda, um garotinho que, na fragilidade
emocional de seus oito aninhos, viveu o horror da orfandade com a morte do pai
num acidente, justo na idade em que o pai é o super-herói insubstituível.
Tempos depois, caiu do telhado, fez um trauma abdominal severo, foi operado às
pressas pelo doutor Octávio Vaz, um brilhante cirurgião carioca, e se recuperou
rapidamente.
Passou a ser acompanhado no ambulatório pelo cirurgião que se encantara com a inteligência luminosa escondida atrás daquela carinha linda. Numa dessas revisões, a mãe confessou ao doutor Octavio estar preocupada com a frequência com que o Duda vinha sofrendo acidentes de gravidades variáveis. Levantada a suspeita pela percepção de um médico sensível, o Duda foi encaminhado a uma psicóloga. E então, o distúrbio emocional, sequela torturante de um luto não resolvido, escancarou-se: o menino, na solidão multiplicada pela orfandade, fantasiava que a morte era o único jeito de reencontrar o pai.
Envelhecer só é festejado porque a alternativa consegue ser pior. Na profilaxia da depressão diante da evidente decrepitude, recomenda-se fortemente a negação
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