18/06/2024 - 15h38min
J. J. CAMARGO
Morrer é nunca mais estar com os
amigos
A leitura de uma obra pouco
reverenciada de García Márquez me trouxe uma valiosa lição
"Se tens um coração de
ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia." (José
Saramago)
De vez em quando uma revisita a Gabriel García Márquez é uma experiência rica em novas descobertas e muitas confirmações. Uma das suas heranças literárias menos reverenciadas é Doce Cuentos Peregrinos. Da primeira leitura, não lembro de nenhum daqueles contos como marcante, talvez porque durante muito tempo fiquei empacado na introdução, tão maravilhosa que Gabo poderia ter parado por ali e a edição já estaria justificada.
Nela, Gabo conta um sonho que
tivera em Barcelona, durante um tempo de autoexílio que passou por lá. Ele
sonhou com a própria morte e, durante o velório e enterro, acolheu os melhores
amigos sul-americanos, dos quais ele tinha muita saudade. No seu sonho, eles
estavam todos muito elegantes, vestidos a rigor, e felizes de estarem juntos
outra vez. Comeram, beberam, repassaram as melhores histórias, riram, choraram
de rir e, por fim, de pura emoção.
Descobri logo que ele era uma referência
afetiva sempre que algum acadêmico se dispusesse a falar sobre bom humor, afeto
espontâneo e entusiasmo por viver.
No final da tarde quente de
Barcelona, quando se preparavam para voltar, Gabo ainda continuava abraçado com
eles, quando foi advertido que não podia acompanhá-los porque ele tinha
morrido. Confessou então ter aprendido nesse momento o que significa morrer: é
nunca mais estar com os amigos.
Essa proposta original do que
significa morrer mexeu muito comigo.
Passados pelo menos 12 anos,
provavelmente estimulado por um passeio recente pelo meu arquivo
correspondência afetuosa, sonhei que almoçava em um restaurante próximo à
Academia Nacional de Medicina com o querido professor Orlando Marques Vieira.
Meu encantamento pelo professor começou na visita acadêmica, um ritual que
precisa ser cumprido por todos os pretendentes a uma vaga como membro titular
da Academia Nacional de Medicina. Quando liguei para agendar a visita, Orlando
pediu que o encontrasse na sede do Colégio Brasileiro dos Cirurgiões, então
presidido por ele.
No início da conversa, ele
comentou: "Então teremos mais um gaúcho na Academia. E gaúcho de Porto
Alegre?". Respondi: "Não, professor, eu nasci em Vacaria". E a
conversa mudou de rumo: "Então você não vai estar sozinho na Academia.
Numa viagem de carro para o sul, eu me encantei com os Campos de Cima da Serra,
e dormi na tua Vacaria".
Pronto: o gelo estava quebrado, e
como se fôssemos velhos amigos, seguimos conversando. Muitas vezes, quando nos
saudávamos na Academia ele perguntava como andava a nossa Vacaria.
Descobri logo que ele era uma
referência afetiva sempre que algum acadêmico se dispusesse a falar sobre bom
humor, afeto espontâneo e entusiasmo por viver, fosse qual fosse a motivação da
conversa.
No sonho, eu lhe contava de um
simpósio que estou preparando na Seção de Cirurgia e que envolve a seleção das
perguntas de mais difícil resposta, mesmo na opinião desse grupo de médicos
experientes e bem resolvidos.
Como era previsível, as perguntas
mais desconcertantes, seguidas das respostas mais inteligentes, brotavam da
experiência de exercer a medicina durante décadas, movidos pela insaciável
gratificação de cuidar do outro. O projeto é transformar esses relatos numa
espécie de manual para os jovens médicos, que em geral fogem das perguntas mais
difíceis por não saber como respondê-las.
Quando terminou o almoço do
sonho, e o convidei para irmos para a Academia, como fizemos tantas vezes, ele
me disse que infelizmente não poderia me acompanhar porque estava morto. E
então, com o sorriso debochado que era a sua marca, me confidenciou: "Uma
pena eu não poder participar deste teu simpósio, porque eu teria cada
pergunta".
Eu sei que sim, professor, e
tenho a dolorosa noção do quanto perdemos.
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