J. J. CAMARGO
Felizmente, os imprestáveis, por
serem barulhentos, dão a falsa impressão de majoritários, mas são, e sempre
serão, insignificantes
"A coragem é a maior das
virtudes humanas porque garante todas as outras." (Winston Churchill)
Tenho dúvidas se sairemos
melhores desta catástrofe, mas tenho certeza de que sairemos diferentes. E que
ninguém que tenha tido a sorte de ser poupado pretenda recomeçar a vida como se
nada tivesse acontecido.
Foi uma prova agressiva demais
para ser considerada como uma mera intercorrência na vidinha monótona, da qual
nos queixávamos por não saber valorizar a mesmice serena e previsível de um dia
a dia, sem sobressaltos.
Entre ególatras e flagelados,
aparecem as diferenças de humanismo, maturidade e resiliência.
Claro que aqueles que moram fora
das zonas de risco não podem ser comparados aos traumatizados que viram a vida
sendo arrastada pela correnteza feroz. Mas, no contexto geral, resultaram duas
populações distintas: a dos que foram resgatados da avalanche de águas fétidas
e agradeciam sem parar, e a dos que se queixaram da falta de água e de luz, e
quando uma voltou antes da outra, tiveram que se submeter (veja só!) à tortura
desumana de um banho frio. É exatamente nessa discrepância abismal de atitudes
entre ególatras e flagelados que começam a aparecer as diferenças de humanismo,
maturidade e resiliência.
Essa, aliás, é uma das
habilidades marcantes das grandes tragédias: a separação entre os que saem de
casa em busca de algum voluntariado que lhes atenue a sensação de impotência e
os que fixam o olhar no único umbigo que lhes interessa. Como o caráter de cada
um tem um gatilho muito rápido para revelar o portador, chama a atenção a
disponibilidade dos bons para contribuir, assim como o surgimento dos
oportunistas, que só pensam em aproveitar qualquer holofote para aparecer. Um
exemplo é o autor de um bizarro comício em torno de um purificador de água, que
o divulgou empolgado e ofereceu à claque que o rodeava mas, descuidado, não
bebeu antes que o vídeo terminasse.
Como a diversidade é uma marca da
espécie, começaram a surgir algumas excrescências, como a dos que nada fazendo
se irritam com quem o faça. E há uma variante patética, a dos que esbravejaram
de uma indignação que parecia sincera ao saberem que uma milionária fretara um
avião para trazer alimentos, quando, na opinião oligofrênica do obtuso, devia
ter usado o dinheiro gasto com esse aluguel para contratar uma frota de
caminhões, mesmo que isso obrigasse a fome dos incautos a um alongamento do
jejum já insustentável.
A desgraça macroscópica já devia
ser suficiente, não precisava de tantos requintes de crueldade. Não há como não
se deprimir com gente assaltando voluntários, e voluntários sumindo com
doações, e o pobre dependente químico escolhendo os donativos mais valiosos
para trocar por crack na saída do ginásio.
Quando o caos consegue ser também
moral, nosso ânimo esmorece. E isso explica o despertar nas madrugadas de um
sono mal resolvido, só para confirmar que não foi um pesadelo, aquilo está
mesmo acontecendo. Tempos difíceis de levantar toda manhã e sair para a vida,
essa que não precisava ser sempre tão real.
Felizmente, os imprestáveis, por
serem barulhentos, dão a falsa impressão de majoritários, mas são, e sempre
serão, insignificantes. Então, fiquemos com as coisas boas, como a atitude
comovente do Atlético-MG que encheu sua arena com torcedores que naquele dia
deveriam assistir ao jogo com o Grêmio, e vendeu ingressos para 36 mil
mineiros, dispostos a ajudar gaúchos flagelados, que nunca terão a chance de
abraçá-los em agradecimento. Ou com
Wilson Paim, que com a sensibilidade incomparável do seu poema/oração,
colocou o Rio Grande inteiro a lacrimejar.
Felizmente, nós gaúchos somos
muito mais do que as coisas ruins que nos acontecem, e, forjados num histórico
de lutas, é certo que sairemos dessa. Do nosso jeito gaudério, de braços dados,
silenciosos e tristes, mas agradecidos e confiantes de que a velha garra
charrua que nos trouxe até aqui, essa nenhuma correnteza arrastará.
Nenhum comentário:
Postar um comentário